domingo, 30 de junho de 2019

VIA-CRÚCIS – Rafael Rocha

Do livro “Meio a Meio” - 1979

Ah, como ela parece que tem medo...
Ela e seus pobres
(coisas que dão pena).
Olhos de doente
enganadores da medicina.
E chega um que diz
ter o poder da cura,
pronunciando palavras ásperas de conforto
e eis que, acionando
poderes miméticos e eletrônicos
desconhece as estranhezas
e diz ser uma bênção.

E a palavra?...
E o desejo de mudar?...
E o desejo de transmudar?...
Tantas coisas fáceis de serem ditas
burlam as vigilâncias e somem.
Apelidam-nas:
as vulgares sombras proibidas
depoentes contra os tribunais corruptos.

Ah, como ela é pobre
e como é oferecida gratuitamente
desde os seus ouros das profundezas
negociados em mesas de nácar
ou até por dentro dos bolsos
de coletes delfinescos
que nem posso mais dizê-la
como berço esplêndido
(talvez túmulo onde voejam aves de rapina)
onde do amanhã nada se sabe
(e do hoje?).
Onde gemidos e gritos cortam a luz do cruzeiro
e nem são mais ouvidos.
– A dor já é banalidade!

Onde estás?
Onde estás, pobre pátria?...
Virgem deflorada e medrosa de si mesma?
Os que lhe amam morrem sob os ferros
e a luz da candeia que alumia
o velho pendão da esperança
rui desnorteada e aflita
e expira e grita:

“Deus! Ó Deus!
Onde estás que te escondes
embuçado nos céus?”

POTENCIALIDADES E EMOÇOES – Carlos Benevides

Prefácio do livro “Meio a Meio” (1979) do poeta Rafael Rocha

Rafael Rocha, o primeiro contato em sala de aula, início de uma grande amizade e descobertas. Descobri suas potencialidades e emoções, agora entregues às pessoas, não para comparações ou julgamentos (não se deve julgar o que sai das entranhas do poeta), mas para que possam ser sentidas e repartidas.
Posso calcular, sem, no entanto, medir, a emoção do poeta ao ver o seu trabalho traduzido em livro. Livro que deverá ser tomado por outras mãos que não sejam as das pessoas do seu mundo, numa dimensão maior do se repartir.
Eis, portanto, de Rafael, a poesia.
Uma poesia intimista, por vezes sensual, por vezes naturalista ou social, muito verdadeira.
Essa verdade será vista e sentida de maneira diferente por quantos tenham a oportunidade de ler este livro, e a importância está justamente nessa diferenciação de alcance das pessoas. Cada uma delas representa um mundo particular pensante.
Para alcançar a verdade interior de Rafael, me despi de tudo que pudesse fazer barulho e penetrei no seu mundo, tragando todos os sentidos e emoções.
Depois chorei o mundo sem tempo para a poesia. 
Não apresento mais um poeta ou um novo poeta, mas o poeta Rafael Rocha, ao qual agradeço por ser poeta e meu amigo.


PARANOIAS DE LEONARDO – Rafael Rocha

Do livro “Contos Delirantes com Versos em Bolero” - 2017

Leonardo tinha um problema grave. Era paranoico e sofria de Transtorno Obsessivo Compulsivo. Ele tinha muito cuidado com a própria sombra e com os caminhos por onde andava e pisava.
Se as calçadas fossem lisas e sem riscos ele caminhava por sobre elas normalmente. Se visse alguma fissura ou algo quebrado, tinha o cuidado de não pisar nessa fissura ou risco, passando os pés cuidadosamente por cima até alcançar o outro lado.
O maior cuidado era com a própria sombra. Por onde andasse, a sombra tinha sempre de ficar atrás dele e jamais na frente. Achava que se desse um passo com a sombra na frente poderia cair em um buraco negro.
Assim quando saía do trabalho, à noite, sempre estava armado com uma lanterna a iluminar o caminho onde a sombra aparecesse.
O horário de meio-dia era o que ele mais gostava, porque não via a sombra nem atrás nem à sua frente.
Isso tudo junto criava para Leonardo problemas variados.
As calçadas do Recife não eram de confiança, pois muitas delas destacavam-se por terem fissuras e outros riscados.
Mas gostava de caminhar durante o dia pela Avenida Guararapes por baixo daquelas marquises dos prédios afrancesados, já que a sombra não aparecia de jeito algum para incomodar.
Leonardo viveu cerca de setenta e cinco anos.
Foi cliente de muitos psicólogos e psiquiatras do Recife, município onde morava.
Mas não era louco. Tinha apenas uma paranoia generalizada com a própria sombra e uma obsessão compulsiva com as fissuras das calçadas da cidade.
Um dia Leonardo morreu. 
Seu enterro ocorreu exatamente quando um eclipse total do sol escureceu por completo o céu do Recife em pleno meio-dia.

ARITMÉTICA FINAL – Rafael Rocha

Do livro “SANGRAMENTO” incluído na coletânea “POETAS DA IDADE URBANA” - 2013

A passagem do tempo enruga e tortura
Aperta saudades e lembra a loucura
Do ontem perdido onde não mais se faz.
A passagem do tempo é madrasta da vida.
Subtrai sonhos! Torna a alma dividida
Entre o fim e o jamais.

Que merda esses cálculos impostos
A nossos corpos a trazer desgostos
Como querendo imitar ciência e arte!
Nada mais de perder tempo na paisagem
O ideal é matar essa miragem
Onde a morte nos reparte.

Sentar à mesa de um bar e sorver a noite
Nos goles das cervejas e em pernoite
Na primeira mulher a nos chamar.
Cigarro nos lábios acendendo a vida.
Antes que ela diga-se consumida
Melhor se embriagar.

Idiota o homem a não saber o caminho
E a levar o corpo em oração até o ninho
Do mármore frio, branco e sepulcral.
Sábio o homem a se fazer semente
Vivendo a dizer ao seu mundo demente:
A vida é casual!

Tão estranhos são esses logaritmos
Todos dançando fora dos ritmos
Da raiz quadrada universal.
Nem o filho nem a virgem nem o deus
Explicam esses motivos de adeus
Na aritmética final!

Assim eu chamo amigos e amantes
Venham até junto a mim como bacantes
À orgia da cerveja e do prazer.
Daremos vivas e tilintar a nossos cálices
De mortais deslizando até os ápices
Dos anseios de viver.

GOSTO DE LIBERDADE - José Carlos Gomes da Silva

Prefácio escrito pelo jornalista José Carlos Gomes da Silva para o livro “SANGRAMENTO” do poeta e escritor Rafael Rocha, incluído na coletânea “POETAS DA IDADE URBANA” (2013)

Nervo exposto este catálogo de poemas de meu amigo Rafael Rocha.
Crítico espelho da realidade solitária do poeta hoje. Espelho deste tempo em que os homens vivem sozinhos em meio às multidões e à moderna tecnologia.
Espelho da vida! Sempre!
Um trabalho desperto em suas caminhadas entre anseios e esperanças e na busca de retroagir no seu mesmo e necessário “Sangramento”. 
Acho, sim, que se deve beber da mesma fonte que Rafael Rocha neste recanto poemático, onde pontifica o ser humano liberto de rédeas. Nele podemos sentir o gosto da liberdade no jorrar dos versos.
Realistas... Um pouco também tristes, e quem não o é na agonia e no desdobramento de um poema como “Aritmética Final?
Cristalinos como só a alma de um grande poeta, mesmo quando perscrutador de seus sentimentos mais profundos. Afinal de contas, quem não sofreu de solidão, desamor, quem não experimentou o desespero de sonhos combalidos?...
Universais como o medo da morte que habita dentro de todos nós. E é bom observar mais: sua negação poemática acerca de deus e do diabo no poema Iconoclastia, onde o poeta nega a existência de qualquer tipo de divindade e de demônio. E posiciona-se claramente ao dizer que: “Púlpitos têm de abrigar vozes de poetas / Para a liberdade do homem amanhecer”.
Claridade, amor e força. A poesia de Rafael Rocha mostra, mais uma vez, que não basta ordenar palavras, antes de tudo precisamos ter emoções concretas e livres e o coração comum, sangrando por entre os versos.

sábado, 29 de junho de 2019

CANTARES – Rafael Rocha

Do livro “Marcos do Tempo” - 2010

Cantares (I)

Cheguei até este limiar cheio de mim
Profetizando a dor escondida dos homens.
E delimitando no infinito do horizonte
Marcos e marcas para todos os viajantes
E neste limiar que pretende ser eterno
Profetizo o verso ainda não posto à mesa.
(1)
O povo não é mais pescador dele mesmo.
Arrasta a maldição da dor
devido aos gestos estudados
de quem ocupa a tribuna
e se diz autoridade.
O povo vive de restos malditos
e nasce em berço muito pouco esplêndido.
Não pretendo atirar a primeira pedra.
Prefiro denunciar ao mundo
a ganância dos chefes.
Não pretendo aceitar
os ditames da última era.
Debruçarei meu corpo
nos balaustres das pontes.
Atentarei meu olhar nos rios sujos da cidade
e tentarei falar a voz humana:
“Sou pobre, mas honesto”.
Nem mais isso os meus queridos
devem no balcão da vida.
(2)
Hipócritas
outros homens dizem possuir a voz de Deus
e abrem um livro dito sagrado
para fundar igrejas
e corromper a mente dos ingênuos,
vendendo a fé como uma sopa
e a crença como um pão adocicado.
A justiça fica adormecida em seus palácios
fazendo ouvidos moucos à pregação
inconveniente da ideia do Senhor.
Eles consagram os vendilhões do templo
e beijam a moeda retirada do bolso do pobre.
Este é um novo ritual
a fazer do inalcançável a ilusão alcançada
e comprada como um sapato
ou um trago de cachaça.
Ladrões da inocência!
A espada dos honestos ainda irá perfurar
seus imensos corpanzis de mentira e sujeira.
(3)
Ah, terra minha!
Ah, gente minha!
Vamos agitar nossa força nas estradas!
Vamos subir aos mais altos andares!
Vamos agarrar nossas aspirações na marra!
Túmulos não foram feitos apenas
para quem não tem onde morrer de fome.
E a terra ainda não foi de todo
descoberta como ela merece.
Escuta, ó gente minha!
As areias e os seixos dos rios
ainda estarão aqui pelos próximos séculos
e elas devem crer que nossos guerreiros
souberam agir com mente firme
e mão generosa.
(4)
Nem Cristo.
Nem Guevara.
Nem Buda.
Nem Maomé.
Nem Ocidente ou Oriente.
A salvação é criar um tempo definitivo.
Agitar!  Lutar! Sangrar!
Não vamos mendigar
aos pastores da mentira
a ideia de um deus de bordel.
Para que essa cegueira?
Nós somos o Reino!
Nós somos os tímpanos da vida!
(5)
Meu verso está sendo posto à mesa
às mãos dos semeadores da palavra.
Não deem as costas ao poema!
Não estilhacem o sangue do poema!
Não quero ver meus queridos agonizando
sob a oratória dos corruptos
e dos compradores da fé!
(6)
Lotadas as estradas
com a esperança
e seu verde brilhante,
os homens golpearão seus inimigos
dentro do mais curto espaço do tempo
e meu espírito vestirá a pele dos libertos,
desvendando as traições
dos compradores de almas.
(7)
E todos irão saber
que o Senhor da Liberdade
é um Senhor que respira e vive
na alma do homem da terra.
Ele é forte e tem seu livro sagrado
escrito na palma de suas mãos
e em sua pele enrugada.
Com igrejas, templos
e palácios derrubados,
com os falsos senhores desgrenhados
o homem real da terra
poderá desfrutar a vida
e aprisionar parasitas
que de nada cuidam,
mas apenas solicitam
a presença da morte.
(8)
Caminhemos!
Caminhemos!
A estrada é longa!
Vamos buscar mulheres e homens!
O Senhor da Liberdade respira
e tem seu livro sagrado
escrito na pele enrugada
dos homens tristes e pobres.
(9)
Quando o verdadeiro vento nordeste
varrer o semi-árido,
as fogueiras das vaidades
terão de ser apagadas,
mas acender-se-ão luzes de águas
e as chuvas ficarão plantadas
nas almas dos guerreiros da vida.
E dos livros rasgaremos as páginas
das histórias oficiais
escritas pelos opressores.
(10)
Ah, meu verso profético!
Que beleza!
Aqui chegaste para extravasar a tua ira.
Aqui estás para render homenagem
ao homem de nossa gleba Nordeste.

Cantares (II)

Profetizo o verso ainda não posto à mesa.
E neste limiar que pretende ser eterno
Crio marcos e marcas para todos os viajantes
E delimito no infinito do horizonte
A dor escondida guardada dentro dos homens
Até alcançar este infinito cheio de mim
(11)
Agora fiquemos sós.
Ainda temos muito tempo.
Nossos refúgios são seguros.
Estou olhando para a terra
e nela vejo uma força radiante.
Não preciso que você olhe para mim.
Não sou forte nem tenho intento insidioso.
Mas não estou assim tão adormecido.
Quero atrair você para uma missão conjunta
aos momentos em que trocamos
ideias e argumentos.
“Qual será a missão?” - eis a pergunta.
Olhe: as ruas estão perigosas
e os seres humanos
têm suas almas sonâmbulas programadas
por vídeos televisivos e mentiras oficiais.
Não se preocupe.
O mundo tem conserto.
Vamos entrelaçar nossas ideias
como cordas emaranhadas
a amarrar os navios do porto.
(12)
Fiquemos sós.
Tenho a intenção de amar
a sua ideia esplêndida
nos nascentes e nos poentes
dos marcos deste planeta.
E desejando olhar
bem para dentro de mim
você verá minha postura de guerrilheiro
cumprindo um caminho evolutivo
sem precedentes.
“Quem és?” - eis outra pergunta.
Olhe: na amplidão das nossas madrugadas
sempre aparecem as cinzas de um outrora.
Jogo-as pela janela do meu quarto.
Mas não se preocupe.
Não vou jogar fora as cinzas de amanhã.
Quero fazê-las voar célere ao seu encontro
como a luz daquela estrela
que somente hoje alcançou a terra.
(13)
Em verdade, em verdade vos digo:
a vida dos melhores humanos
está jogada na sarjeta
e é por esse motivo
que precisamos ficar a sós
e fazer um estudo dinâmico
daquilo que somos.
Hoje é uma noite de agosto.
Ela é fria.
A ventania entra pela janela do meu quarto
trazendo os gritos dos guerreiros iguais a nós.
Em verdade, em verdade vos digo:
somos muito mais
do que habitantes das sarjetas
e por essa questão temos de ficar a sós
para recriar os sonhos dos grandes profetas.
(14)
Em verdade vos digo:
Quando os deuses da terra eram outros
o homem era muito mais feliz do que hoje.
Mas ainda há tempo
para moldar uma nova mística
e para plantar uma semente
mais formosa de planta.
Por isso temos de ficar a sós. 
Eu e você.
Somos os únicos a compreender a nudez,
a beleza, a dor, a alegria e a verdade das coisas.
Em verdade, em verdade vos digo:
podemos fazer o vento
carregar mensagens otimistas
para todos os deserdados do planeta.
(15)
Fiquemos sós.
Vamos enrodilhar nossos dedos uns nos outros.
Vamos amalgamar nossos cérebros para a luta.
Ao longo das grandes avenidas
ninguém se fala mais.
Ninguém mais se olha para entender
as substâncias dos rostos e dos corpos.
O homem hoje ri ao matar seus semelhantes
e ao olvidar seus ancestrais,
sem chorá-los pelas suas perdições nas multidões.
“Que faremos?” - eis outra questão.
Nada! Não faremos nada!
Ficaremos sós para profetizar o novo tempo.
Ficaremos sós para ver
a verdadeira história ir e voltar.
(16)
A luz de sua imagem na plena madrugada
é uma condensação de paixão para meus olhos.
Em verdade, em verdade vos digo:
haverá um tempo em que nos encontraremos
arrependidos de nada termos sido
tanto um para o outro
e de nada termos feito de bom
do outro para o um.
Assim é necessário ficarmos sós,
criando tempo de mim e tempo de você,
tentando ser ousados na criação e nas decisões.
Nos palácios, os opressores de hoje
riem de nossos anelos,
mas nós daremos rédeas à imaginação
quando ficarmos sós.
(17)
Nosso ficar a sós servirá
para perturbar todo o universo.
Servirá para acabar
com as leis dos “dinossauros”.
Para uma olhadela melhor às auroras.
Servirá para um mergulho fundo
dentro de cada poro nosso.
Em verdade, em verdade vos digo:
iremos implodir milhões de silêncios
e criar novas estrelas para iluminar
nossas futuras madrugadas.
(18)
Fiquemos sós.
“Queres ficar a sós comigo?”
Venha então!
Conheceremos melhor
as vitórias e as derrotas.
Nas nossas rugas saberemos quem somos,
para onde vamos
e qual o objetivo desta missão.
Em verdade, em verdade vos digo,
ó homem simples:
o saber dos sonhos
cria em mim o dom da palavra.
O saber das lutas
cria em mim o desejo da vida.
Em verdade vos digo:
ao ficarmos sós
entraremos em contato
com todas as raças do mundo.

Cantares (III)

Delimito no infinito do horizonte
A dor escondida guardada dentro dos homens
Crio marcos e marcas para todos os viajantes
E profetizo o verso ainda não posto à mesa.
Até alcançar este limiar cheio de mim
Limiar que pretende ser eterno
(19)
As esperanças ainda estão vivas nas ruas
apesar de os olhos dos homens
não brilharem como nos dias de antanho.
Quase todos estão trêmulos
e sozinhos e ansiosos
um tanto esquivos das suas realidades.
Talvez pensem que tudo esteja perdido
e que o reinado da dor
e da morte tenha se revigorado.
Em verdade, em verdade vos digo:
não devemos nos esquivar
daquilo que vivemos.
É preciso reunir nossas forças
na beira de todos os rios
antes que as sombras da morte
derrubem a estrela perpétua
do seu altar de sonho.
(20)
Meus queridos, a gleba Nordeste
não é uma terra morta
cheia de cactos selvagens.
Ela é a imagem dos olhos das crianças.
Das nossas mulheres
e dos homens voluntariosos.
Não deixemos que o lampejo da liberdade
se deixe ficar agonizante
nas mãos dos fascistas que beijam
as correntes da escravidão,
as bandejas dos desvarios
e das loucuras do ouro.
No reino de dentro de cada um de nós
não devem existir disfarces.
Em verdade vos digo:
temos de nos comportar
como se o vento nordeste
seja um frêmito de guerra
com garras flamejantes.
(21)
Não somos homens esclerosados.
Não somos fantoches nem marionetes.
Estamos amparados uns aos outros pelo suor
a escorrer através dos poros
quando trabalhamos a terra.
E, quando gritarmos juntos e unidos,
o sussurro da vitória será um trovão
que de tão formidável abalará
as entranhas dos comensais da morte.
Caminhemos!
Caminhemos!
A estrada é longa!
Vamos buscar mulheres e homens!
O Senhor da Liberdade respira
e tem seu livro sagrado escrito
na pele amarfanhada
dos humanos tristes e pobres.
(22)
Os queridos que escolheram andar
na outra margem
deixaram de aceitar
a realidade destes tempos.
“Ah, como é violenta essa vida!” – pensaram.
Eles entregaram gratuitamente
as almas ao deus do bordel
e aos homens que usam
um livro de capa negra
para fundar igrejas.
Foram empalhados
como espantalhos e programados
para vender a fé como um trago de cachaça
e para roubar a moeda do bolso do pobre.
Será contra essa nação de hipócritas
que iremos lutar.
Não vamos dizer que possuímos
a voz da divindade.
Possuímos nossa verdade e nossa fome.
Nossa pobreza e nossa honestidade.
(23)
Em verdade, em verdade vos digo:
o vento nordeste
está cantando solenemente o hino
da mais cruel realidade da nossa vida.
Que os hipócritas fiquem longe,
não se aproximem,
nem mais um passo deem.
Estamos em frêmito de concepção,
pois somos a raça dos escolhidos
antes que as águas cubram as planícies.
Em verdade vos digo:
antes que a vontade dos corruptos
seja cumprida
os brotos das árvores
serão muitos mais novos
que as sementes plantadas
pelas mãos dos opressores.
(24)
Eis aqui: nosso maior anseio.
Eis aqui: nossa ideia essencial.
Eis aqui: a explosão de nossos suspiros.
Pétalas de flores se abrem
quando ganhamos mais uma vez o dia
ao rufar dos tambores da vitória
dos nossos heróis.
(25)
Qual caminho você escolhe, meu amigo?
Não, nada disso!
Eu não estou fazendo papel de místico.
Eu sou um guerrilheiro espirituoso.
Sou um peregrino a viver
das minhas explosões verbais.
Não vou obrigar ninguém a seguir caminhos.
Se você prefere a derrota, siga!
Também é muito bom sofrer derrotas.
Com elas aprendemos o sentido da vida.
(26)
Eu falo porque quero falar.
Gritarei quando desejar gritar.
Faço parte do mundo e o mundo é meu.
Os hipócritas que nos governam
não são donos do mundo.
Está envergonhado de mim?
Que assim seja!
Mas em verdade, em verdade vos digo:
ao ficar envergonhado de mim
você estará mais do que nunca sendo covarde
e como um leproso pensando não ter cura
esconder-se-á nas cavernas do próprio medo.
Em verdade vos digo:
não ando pelo mundo
a derramar lágrimas de lástima.
Nem vou gemer e me acovardar
para ganhar as honrarias
dos chefetes de última classe.
(27)
E então eu pergunto outra vez:
quer ficar a sós comigo?
Este ficar a sós não significa esconderijo.
Significa guerra.
Significa luta.
Significa que iremos tocar fogo
nas histórias oficiais
escritas pelos que se dizem donos da verdade.
Quer ficar a sós comigo?
Mostraremos o quanto somos válidos
e não iremos criar leis
para termos desculpas
a serem descumpridas.

Cantares (IV)

Crio marcos e marcas para todos os viajantes
E delimito no infinito do horizonte
A dor escondida guardada dentro dos homens
Até alcançar este limiar cheio de mim
E neste limiar que pretende ser eterno
Profetizo o verso ainda não posto à mesa.
(28)
Eis-me aqui na terra completamente seca...
Um rosto enrugado de homem
olha para o céu
buscando as águas da chuva.
Nas suas pequenas e rústicas casas,
as crianças brincam com a sopa
de suas próprias fomes.
Mas o homem tem o olhar da esperança
mergulhado até o fundo da retina no horizonte,
esperando e contando nos dedos
os poucos grãos de feijão que poderá ter
após umas poucas gotas de água
caírem por sobre a terra.
(29)
E eis nas igrejas e templos e palácios dourados
a safadeza de quem se diz autoridade,
prometendo mundos e fundos
para florir a terra seca
e preparando o corpanzil para voar
até as paisagens europeias,
onde poderá gastar o dinheiro do suor do outro
e desovar em algum recanto
de Wall Street
no Manhattan inferior
a sabedoria que julgam
apenas eles a possuir
por serem governo.
Em verdade vos digo, ó párias do dólar:
há de chegar o dia
em que suas casas serão invadidas
pelas almas mais simples desta nação.
Há de chegar o dia em que vocês ficarão
olhando tristes para os remendos
de suas calças e de suas casacas.
(30)
A voz dos deserdados
ainda não é forte o bastante
para rugir o trovão da guerra nas caatingas,
mas os espíritos hoje são outros.
Não são adolescentes
seguindo uma coluna vermelha.
Eu também não pretendo ser um líder.
O homem da salvação
chegará no momento certo
marcado há muito tempo na história da raça.
Ele virá quando as águas dos rios
começarem a cobrir as praças.
Quando o mar ocupar
os vazios do espaço a ele tomado.
E ele será muito mais que um Enviado.
Não será um Guevara nem um Cristo.
Não será um Maomé nem um Buda.
Será simplesmente ele:
o homem do tempo definitivo.
O homem da agitação.
O homem da luta.
O homem vindo para sangrar.
(31)
Em verdade, em verdade vos digo:
O devir não mais será
como está nos “livros históricos”
escritos pelas classes dominantes.
O homem a surgir será
o mais forte de todos os homens.
Beberá terra para matar a sede.
Comerá vento para matar a fome.
E estará dando seu sangue
a todos os companheiros
postos ao seu lado
na perseguição da verdadeira vida.
Em verdade vos digo:
ele não vai enveredar
pelos ardilosos caminhos
da história oficial escrita
pelos vendilhões dos templos.
(32)
Portanto, querem ficar a sós comigo?
Ao pé de qualquer rocha deste Nordeste
esculpida pelo vento rebelde das fronteiras
veremos o verdadeiro significado do tempo.
A palavra medo será riscada do dicionário.
E nunca mais iremos
enveredar pelos labirintos
engendrados pelos ladrões da inocência
para dar uma ilusão de vida aos nossos filhos.
Em verdade, em verdade vos digo:
Será para sempre e será logo!
Ele virá a nós para o povo
voltar a ser pescador dele mesmo.
Ele estará ao nosso lado
designando como será a luta
para aprisionar os homens
que dizem representar
o poder de um deus
e que vendem ilusões como se vende cachaça.
Ele chegará para extravasar
a ira mais honesta
e para render tributo
ao homem do Brasil nordestino.
(33)
Marcos e marcas.
Vermelha é a cor das almas dos homens.

Cantares (V)

Para todos os viajantes e caminheiros
A dor escondida fica no infinito do horizonte.
Cria marcos e marcas no limiar cheio de mim
Até alcançar o vazio que pretende ser eterno
Profetizando o verso ainda não posto à mesa
Escondido dentro das almas dos homens
(34)
Eis que ele está chegando:
O homem do tempo definitivo!
O homem da agitação!
O homem da luta!
Em verdade vos digo:
ele vem para agitar as almas e ganhar o dia.
No grande encontro dos rios da cidade
encaminhará ao fundo do oceano as dores
e as tristezas dos menos aquinhoados.
E nos abismos abissais fará naufragar
as estratégias dos governos opressores.
Eis que ele vem: definitivo como a morte!
(35)
E você que por aqui passa,
qual será o rumo a escolher?
Você diz não possuir rumo e caminha
como se a vida estivesse escrita
desde seu nascimento.
Em verdade, em verdade vos digo:
a vida vai começar a ser escrita no futuro
e você deverá fazer parte dessas escrituras
ao lado da maior força jamais vista na terra.
Não tenha medo e não tenha vergonha.
São teus filhos que necessitam de espaço
e de novos verdes e de lares mais calmos.
(36)
“Para que isso?” - pergunta o pobre de espírito.
“Eu já tenho o que preciso
e nada devo aos outros
e meus filhos retratam a minha vida.
Para que esse místico homem definitivo?
Tudo que construí eu fiz e nada mais.
É necessário deixar de curtir o realizado?”
Em verdade vos digo,
ó, pobre humano ingênuo,
não há misticismo no homem definitivo.
Ele é o que é e o que são todos.
Ele não é o retrato da lástima nem da miséria
e muito menos covarde para se esconder
por detrás dos ombros
dos exploradores da terra.
(37)
Ah, quando os queridos do Nordeste
empunharem o mastro
do emblema do homem
a terra irá tremer desde
o Itapicuru ao Capibaribe.
E então será tarde para
os fascistas tomarem tento
de tudo que foi dito e ficou escrito.
Em verdade, homens da terra, eu assinalo:
será criado um vácuo aos pés dos opressores
e grandes caminhos
de salvação para os oprimidos.
O chão será de lama para muitos
e de podridão para outros.
Mas os escolhidos serão os enérgicos
fincando com teimosia a bandeira da luta
pela grandeza da vida.
(38)
Nossa será a terra.
Nosso será o reino absoluto
ao lado do emblema rubro da vida.
Serão nossos os rios
e as vegetações das margens.
E poderemos possuir
todos os recursos minerais
e lavrar em prata e cobre
nossas próprias moedas.
Porém, o homem definitivo não terá efígie
a ser desenhada em notas monetárias.
Ele será a imagem permanente
de todos os homens
e mulheres e crianças
e animais e plantas.
Em verdade vos digo, verdugos da vida:
chegará o tempo em que subirão ao cadafalso
e aos gritos verão suas cabeças
entregues aos carrascos.
(39)
E os hinos de força
sairão das gargantas libertadas
ressoando por toda a extensão da pátria
do Itapicuru à desembocadura do Capibaribe.
“Sou o predestinado
para traduzir a nova língua.
Os sabores da liberdade
estão em mim e sobre mim
e os oferto para vocês, queridos da terra.
Os horrores dantescos dos infernos
serão entregues
aos infiéis e aos habitantes
dos grandiosos templos e palácios”.
Em verdade vos digo, em verdade proclamo:
os hinos de força da vitória maiúscula
sairão das gargantas
dos mal vestidos e dos famintos.
E serão traduzidos em uma nova língua
dentro das noites nordestinas,
das grandes luas cheias
e das brilhantes estrelas.

Cantares (VI)

Escondido dentro das almas dos homens
Profetizo o verso ainda não posto à mesa
Crio marcos e marcas no limiar cheio de mim
Até alcançar o vazio que pretende ser eterno
E para todos os viajantes e caminheiros
Trago a dor escondida no infinito do horizonte
(40)
Todos deverão ficar a sós comigo
quando os rios e o mar
levarem de roldão as terras
e quando os grandiosos
templos e palácios na ruína
desabarem para sempre
no lodo e na lama.
E aquele que virá
com a amplidão da noite ou a da aurora
terá uma imensa multidão para escutar
seus hinos de liberdade.
Em verdade vos digo,
ó homens simples:
Ele trará a permanência
da agonia para os donos do ouro
e para os homens
que vendem a fé como cachaça.
E o deus que estará ao seu lado
terá parecença
com a verdadeira imagem
dos humilhados e perseguidos.
(41)
Eu sou apenas a voz
a clamar no deserto de hoje
para mostrar aos homens o tempo a vir
Não sou aquele conjugado no pretérito.
Sou apenas a voz
a gritar do meio das caatingas
a mesma coisa que vocês poderão ver e dizer
aos filhos e aos netos e os netos aos filhos.
Pois a história irá marcar o homem definitivo
no que ele sempre é e no que sempre será.
Ele é o tempo futuro a abrir portas e janelas
a todos os futuros tempos dos homens.
(42)
Ao chegar perto dos escolhidos
a voz retumbará:
“Sou aquele pelo qual
o sangue do Nordeste do Brasil
pediu com urgência à majestade superior.
Sou aquele que possui
a noite amarrada ao dia.
Eu sou o que sou.
Homem e poeta peregrino.
Guerrilheiro e abençoada matriz do mundo.
Eu vim e vou e não passo.
Estou aqui para matar a sede de justiça.
Estou aqui para alegrar os desafortunados.
Em verdade vos digo:
eu vim, vou e continuo indo.
Sou a emoção verdadeira e o rubi brilhante
da bandeira empunhada
pelos corações dos homens simples”.
(43)
E aos opressores e aos corruptos virá o clamor:
“Valerá a pena ver
minha chegada bem de perto.
Valerá a pena ver os vossos jardins
com as flores murchas.
Eu sou o incriado que saiu
dos parafusos das vossas fábricas
e das fumaças poluidoras.
Sou o redivivo da vingança
e vim trazer a vós outros a agonia absoluta.
Minha espada está sendo colocada à prova
desde algumas centenas de anos, ó infiéis.
E agora que cheguei aos vossos jardins
não haverá perdão
para a exploração do homem pelo homem.
Eu sou aquele
a quem o beijo da traição republicana
molhou as ruas com o sangue
dos meus inocentes.
Eu vim.
Eu vou.
Eu não passo.
Sou o homem definitivo
para rir de vossos remorsos”.
(44)
“Tirarei a paz de espírito
dos governos gananciosos
e ninguém mais em toda
a confusão das galáxias
tornar-se-á partícipe
da inclemência dos corruptos.
Eu vim.
Eu vou.
Eu fico e não passo.
Sou o imortal a viver
dentro das casas de taipa.
Sou o espírito redivivo
das árvores derrubadas.
Sou a mente elementar
da terra nordestina
assaltada e violada
pelos vendedores de deuses
e pelos ditos grandes filósofos
visitantes de Wall Street
no Manhattan inferior.
Vou mostrar quanto valho.
Verão meu entendimento
no expirar do vosso mundo
e na chegança do reino
permanente dos famintos e deserdados”.
(45)
Depois, ele não mais irá
precisar revogar palavras.
Os crepúsculos serão de todos,
bem como as tardes,
e as manhãs e as noites quentes ou frias.
Depois, ele não mais precisará
repetir a voz
deste cantador que profetiza
nas caatingas a sua vinda.
Em verdade vos digo:
ele será a palavra e a voz finais
para decidir e revisar
todos os horários do reino.
Será a mulher mais bela
e desejada da pátria
e o homem másculo e enérgico
em busca da vida.
Eu digo:
ele habitará os becos e as vielas escuras
e será uma luz a iluminar
os corações dos homens
Eu digo:
ele foi, é e será o homem definitivo
a empunhar a bandeira
da liberdade e da vida.
(46)
Na espera da ressuscitação
marcos e marcas.
Vermelha é a cor da liberdade dos homens.

Cantares (VII)

Do infinito do horizonte trago a dor escondida
E profetizo o verso ainda não posto à mesa
No limiar cheio de mim crio marcos e marcas
E alcanço o vazio que pretende ser eterno
Para todos os caminheiros e viajantes do mundo
Escondidos dentro de suas almas de homens
(47)
Eis o clamor daquele
que profetiza nas caatingas:
Em um tempo
não muito mais longe que um tempo
todos irão conhecer a todos sob as matizes
das vermelhidões dos crepúsculos
e das auroras.
Eis o clamor definitivo da nossa raça!
Eis o clamor profético
vindo dos leitos secos dos rios:
A vida de cada um será julgada
pelo ganho e pelo roubo.
E o homem e a mulher nascidos na miséria...
E o homem e a mulher que não possuem terra...
E o homem e a mulher sem face corruptora...
terão lugar ombro a ombro,
braço a braço, mão a mão,
junto ao homem definitivo.
(48)
E a terra deixará de pertencer
aos fascistas e às suas corjas.
Os padres e pastores vendilhões da fé
deixarão de violar as mentes,
usando uma cruz
ou um livro de capa negra,
e os herdeiros do homem definitivo
alcançarão o topo
e trarão para o resto do mundo
a cura do câncer maligno.
Em verdade, em verdade vos digo:
os humildes não sobrevivem nos dias de hoje
porque existe um grande câncer
corroendo a República.
Em verdade, em verdade vos digo:
hoje a escravidão do homem
tem outro nome
escrito nos dossiês de RH
dos gananciosos patrões.
(49)
As vozes dos humildes tomarão outros rumos
lado a lado, mão a mão, braço a braço
com o homem definitivo.
Eu vos digo:
Os dias serão medidos com calma e vagar.
Os governos pagarão caro
a desdita do homem da terra.
Eis o clamor do profeta das caatingas:
O maior mentiroso é quem governa o país!
Esse é um cancro hereditário
vindo da raça dos lusitanos.
Cancro que precisa ser extirpado com urgência,
juntamente com os outros cancros da mentira
a se esconder nas vestes
e nos ornamentos das religiões.
Padres mentem!
Pastores mentem
para o bem dos cofres das igrejas!
(50)
O que devemos fazer com essa gente
que não nos respeita?
Precisamos retirar do arquivo morto
as cores da liberdade
pois elas serão os futuros
e grandiosos marcos da vida.
Em verdade, em verdade vos digo,
ó homens simples:
não será mais necessário
fazer a marcha de uma coluna.
Todos estarão ombro a ombro,
peito a peito, mão a mão,
com a ideia concreta do homem definitivo,
trazendo do infinito do horizonte
a dor escondida
para todos os caminheiros
e viajantes do mundo.
(51)
Valerá a pena retirarmos
as cabeças dos travesseiros.
Comprimir os neurônios dos gananciosos
numa bola de papel.
Valerá a pena dizer:
“Estou dizendo isso, porque assim deve ser.”
“Estou fazendo assim
para que meus filhos possam viver.”
Valerá a pena cortar
a voz dos políticos pela raiz,
antes que eles comecem a colocar
emblemas de promessas em nossos ouvidos.
Valerá a pena dizer:
“Não! Isso é mentir!.
Eles mentem!
A única verdade está conosco e dentro de nós
e essa verdade é nosso reino”.
Em verdade vos digo,
homens humildes da terra:
nós ressuscitaremos nossa ideia
como Lázaro ressurgiu de entre os mortos,
mas nem mortos estávamos
e nem mortos estaremos.
Retornamos para o cumprimento da ação final
e valerá a pena ver
a chegada do homem definitivo
dentro dos corpos de todos
os homens e mulheres do mundo.
(52)
Eu já vos disse e mais uma vez repito:
meus queridos, a nossa gleba
não é uma terra morta
cheia de cactos selvagens.
Ela é a imagem dos olhos das crianças,
das nossas mulheres
e dos homens voluntariosos.
Não deixemos
que o lampejo da bandeira rubra
se deixe ficar agonizante
nas mãos dos césares que beijam
as bandejas dos desvarios
e das loucuras do ouro.
No reino de dentro de cada um de nós
não devem existir disfarces.
Em verdade vos digo,
mais uma vez e outra vez:
temos de nos comportar
como se a alma do Nordeste
seja um frêmito de guerra
com garras flamejantes.

Cantares (VIII)

No limiar cheio de mim crio marcos e marcas
E alcanço o vazio que pretende ser eterno
Do infinito do horizonte trago a dor escondida
Para todos os caminheiros e viajantes do mundo
E profetizo o verso ainda não posto à mesa
Escondido dentro das almas de homens
(53)
Está perto o momento em que
os arquivos de RH dos gananciosos
receberão a visita daquele que nunca veio,
mas que sempre está e sempre renasce.
Ele irá rasgar as atas e os estatutos
das mentiras oficiais
que regem a ideia dos salários.
Porque o homem definitivo sabe:
a escravidão nunca acabou
sobre a face da terra.
Apenas ganhou outro nome
e outro eufemismo.
Agora a escravidão é chamada de trabalho
e quem lucra são os vendilhões dos templos,
são os patrões e os corruptores
das nossas verdades.
(54)
Bem-aventurados aqueles que acusam.
Bem-aventurados os que ousam dizer:
“A história escrita da pátria
é uma grande mentira.
É a lavagem dos cérebros
para o uso das máquinas.
É o beneplácito dos governos
para o uso do dinheiro
ganho pelo suor dos homens da terra
durante séculos.”
Estes estarão lado a lado
com o homem definitivo
quando ele quebrar as correntes
e libertar os escravos
e rasgar as atas e os estatutos
das mentiras oficiais.
E, ainda:
bem-aventurados aqueles que sofrem
por não possuírem casas de pedra
para abrigar os filhos.
Também serão herdeiros da ideia.
Eles farão o reino
brilhar como a luz solar
alimentando o oxigênio da terra.
(55)
E o profeta das caatingas
continua seu clamor:
Mentiroso é quem governa!
Mentiroso é quem eleva um deus
acima do ser humano
e aos altares dos templos
em busca do ouro dos pobres.
Eles são muitos,
mas são covardes, ímpios e corruptos.
Matam para calar o verbo.
Assassinam a verdade.
Mas eu vos digo, ó homens simples:
a ideia do homem definitivo
será a salvação da nossa gleba.
E ela virá cedo ou tarde,
ainda que o sol deixe de nascer
ou a lua seja desviada
para outros recantos do universo.
Em verdade vos digo:
a única salvação é essa ideia
e ela está escrita
nas palmas das mãos dos humildes.
(56)
E mais uma vez repito:
a voz ressoará o clamor
a ser ouvido do Itapicuru ao Capibaribe:
“Eu vim.
Eu vou.
Eu fico e não passo.
Sou o imortal a viver
dentro das casas de taipa.
Sou o espírito redivivo
das árvores derrubadas.
Sou a mente elementar
da terra nordestina
assaltada e violada
pelos vendedores da fé
e pelos ditos grandes filósofos
visitantes da Wall Street
do Manhattan inferior.
Vou mostrar quanto valho.
Verão meu entendimento
no expirar do vosso mundo
e na chegança do reino permanente
dos famintos e deserdados”.
(57)
“Não sou Cristo.
Não sou Guevara.
Não sou Maomé.
Não sou Buda.
Não sou Oriente.
Não sou Ocidente.
Sou Norte e Nordeste.
Sou o espírito do grande chefe de Canudos
redivivo nas almas
e nos olhares dos famintos.
Eu chego.
Eu vou.
Eu passo.
Eu fico e transmito
a glória de cada um possuir o que merece
e repartir com o outro
aquilo que ao outro falta.
Recebo com carinho
todos os bem-aventurados,
todos os que acusam os vendilhões.
Estarei lado a lado com os sem-teto.
Bem-aventurados são esses homens de bem
que não roubam o suor do outro
nem a vida do irmão.
Todos estes farão parte do reino que há de vir.
Todos farão o Belo Monte das cidades libertas.
E cedo ou tarde estaremos nas culminâncias,
quando o mar cobrir os grandes arranha-céus
e quando os rios ocuparem
seus leitos roubados.”
(58)
“O vazio se encherá de mim
e eu serei todos.
O verso estará posto à mesa
para matar a fome.
A dor escondida
desaparecerá no horizonte.
e os marcos e as marcas
do mundo serão outros,
pois nascerá um novo céu
e uma nova terra,
anseio antigo a viver escondido
nas almas dos homens.
Já estou entre vocês, ó meu povo,
Já estou voando entre vós, queridas aves.
Beijo minhas arvores e deito em meus campos.
Aceitai o meu retorno!
Aceitai minha vinda!
Vinde aos meus braços, meus queridos da pátria!
Vinde para meu lado, homens sem-teto!
Vinde até mim, pequeninos artesãos!
Não há vitória sem luta
e as batalhas serão muitas.
A guerra não acabou em 1897.
Os tabuleiros nordestinos
ainda estão banhados em sangue.
Vinde a mim, guerreiros voluntariosos!
Eu sou o homem definitivo
e vocês serão os definitivos homens e mulheres
donos dos rios e das planícies.
Serão os definitivos a apascentar no futuro
os animais e as plantas
que habitam o céu e a terra.
Está escrito!
Assim seja!”