domingo, 30 de junho de 2019

VIA-CRÚCIS – Rafael Rocha

Do livro “Meio a Meio” - 1979

Ah, como ela parece que tem medo...
Ela e seus pobres
(coisas que dão pena).
Olhos de doente
enganadores da medicina.
E chega um que diz
ter o poder da cura,
pronunciando palavras ásperas de conforto
e eis que, acionando
poderes miméticos e eletrônicos
desconhece as estranhezas
e diz ser uma bênção.

E a palavra?...
E o desejo de mudar?...
E o desejo de transmudar?...
Tantas coisas fáceis de serem ditas
burlam as vigilâncias e somem.
Apelidam-nas:
as vulgares sombras proibidas
depoentes contra os tribunais corruptos.

Ah, como ela é pobre
e como é oferecida gratuitamente
desde os seus ouros das profundezas
negociados em mesas de nácar
ou até por dentro dos bolsos
de coletes delfinescos
que nem posso mais dizê-la
como berço esplêndido
(talvez túmulo onde voejam aves de rapina)
onde do amanhã nada se sabe
(e do hoje?).
Onde gemidos e gritos cortam a luz do cruzeiro
e nem são mais ouvidos.
– A dor já é banalidade!

Onde estás?
Onde estás, pobre pátria?...
Virgem deflorada e medrosa de si mesma?
Os que lhe amam morrem sob os ferros
e a luz da candeia que alumia
o velho pendão da esperança
rui desnorteada e aflita
e expira e grita:

“Deus! Ó Deus!
Onde estás que te escondes
embuçado nos céus?”

POTENCIALIDADES E EMOÇOES – Carlos Benevides

Prefácio do livro “Meio a Meio” (1979) do poeta Rafael Rocha

Rafael Rocha, o primeiro contato em sala de aula, início de uma grande amizade e descobertas. Descobri suas potencialidades e emoções, agora entregues às pessoas, não para comparações ou julgamentos (não se deve julgar o que sai das entranhas do poeta), mas para que possam ser sentidas e repartidas.
Posso calcular, sem, no entanto, medir, a emoção do poeta ao ver o seu trabalho traduzido em livro. Livro que deverá ser tomado por outras mãos que não sejam as das pessoas do seu mundo, numa dimensão maior do se repartir.
Eis, portanto, de Rafael, a poesia.
Uma poesia intimista, por vezes sensual, por vezes naturalista ou social, muito verdadeira.
Essa verdade será vista e sentida de maneira diferente por quantos tenham a oportunidade de ler este livro, e a importância está justamente nessa diferenciação de alcance das pessoas. Cada uma delas representa um mundo particular pensante.
Para alcançar a verdade interior de Rafael, me despi de tudo que pudesse fazer barulho e penetrei no seu mundo, tragando todos os sentidos e emoções.
Depois chorei o mundo sem tempo para a poesia. 
Não apresento mais um poeta ou um novo poeta, mas o poeta Rafael Rocha, ao qual agradeço por ser poeta e meu amigo.


PARANOIAS DE LEONARDO – Rafael Rocha

Do livro “Contos Delirantes com Versos em Bolero” - 2017

Leonardo tinha um problema grave. Era paranoico e sofria de Transtorno Obsessivo Compulsivo. Ele tinha muito cuidado com a própria sombra e com os caminhos por onde andava e pisava.
Se as calçadas fossem lisas e sem riscos ele caminhava por sobre elas normalmente. Se visse alguma fissura ou algo quebrado, tinha o cuidado de não pisar nessa fissura ou risco, passando os pés cuidadosamente por cima até alcançar o outro lado.
O maior cuidado era com a própria sombra. Por onde andasse, a sombra tinha sempre de ficar atrás dele e jamais na frente. Achava que se desse um passo com a sombra na frente poderia cair em um buraco negro.
Assim quando saía do trabalho, à noite, sempre estava armado com uma lanterna a iluminar o caminho onde a sombra aparecesse.
O horário de meio-dia era o que ele mais gostava, porque não via a sombra nem atrás nem à sua frente.
Isso tudo junto criava para Leonardo problemas variados.
As calçadas do Recife não eram de confiança, pois muitas delas destacavam-se por terem fissuras e outros riscados.
Mas gostava de caminhar durante o dia pela Avenida Guararapes por baixo daquelas marquises dos prédios afrancesados, já que a sombra não aparecia de jeito algum para incomodar.
Leonardo viveu cerca de setenta e cinco anos.
Foi cliente de muitos psicólogos e psiquiatras do Recife, município onde morava.
Mas não era louco. Tinha apenas uma paranoia generalizada com a própria sombra e uma obsessão compulsiva com as fissuras das calçadas da cidade.
Um dia Leonardo morreu. 
Seu enterro ocorreu exatamente quando um eclipse total do sol escureceu por completo o céu do Recife em pleno meio-dia.

ARITMÉTICA FINAL – Rafael Rocha

Do livro “SANGRAMENTO” incluído na coletânea “POETAS DA IDADE URBANA” - 2013

A passagem do tempo enruga e tortura
Aperta saudades e lembra a loucura
Do ontem perdido onde não mais se faz.
A passagem do tempo é madrasta da vida.
Subtrai sonhos! Torna a alma dividida
Entre o fim e o jamais.

Que merda esses cálculos impostos
A nossos corpos a trazer desgostos
Como querendo imitar ciência e arte!
Nada mais de perder tempo na paisagem
O ideal é matar essa miragem
Onde a morte nos reparte.

Sentar à mesa de um bar e sorver a noite
Nos goles das cervejas e em pernoite
Na primeira mulher a nos chamar.
Cigarro nos lábios acendendo a vida.
Antes que ela diga-se consumida
Melhor se embriagar.

Idiota o homem a não saber o caminho
E a levar o corpo em oração até o ninho
Do mármore frio, branco e sepulcral.
Sábio o homem a se fazer semente
Vivendo a dizer ao seu mundo demente:
A vida é casual!

Tão estranhos são esses logaritmos
Todos dançando fora dos ritmos
Da raiz quadrada universal.
Nem o filho nem a virgem nem o deus
Explicam esses motivos de adeus
Na aritmética final!

Assim eu chamo amigos e amantes
Venham até junto a mim como bacantes
À orgia da cerveja e do prazer.
Daremos vivas e tilintar a nossos cálices
De mortais deslizando até os ápices
Dos anseios de viver.

GOSTO DE LIBERDADE - José Carlos Gomes da Silva

Prefácio escrito pelo jornalista José Carlos Gomes da Silva para o livro “SANGRAMENTO” do poeta e escritor Rafael Rocha, incluído na coletânea “POETAS DA IDADE URBANA” (2013)

Nervo exposto este catálogo de poemas de meu amigo Rafael Rocha.
Crítico espelho da realidade solitária do poeta hoje. Espelho deste tempo em que os homens vivem sozinhos em meio às multidões e à moderna tecnologia.
Espelho da vida! Sempre!
Um trabalho desperto em suas caminhadas entre anseios e esperanças e na busca de retroagir no seu mesmo e necessário “Sangramento”. 
Acho, sim, que se deve beber da mesma fonte que Rafael Rocha neste recanto poemático, onde pontifica o ser humano liberto de rédeas. Nele podemos sentir o gosto da liberdade no jorrar dos versos.
Realistas... Um pouco também tristes, e quem não o é na agonia e no desdobramento de um poema como “Aritmética Final?
Cristalinos como só a alma de um grande poeta, mesmo quando perscrutador de seus sentimentos mais profundos. Afinal de contas, quem não sofreu de solidão, desamor, quem não experimentou o desespero de sonhos combalidos?...
Universais como o medo da morte que habita dentro de todos nós. E é bom observar mais: sua negação poemática acerca de deus e do diabo no poema Iconoclastia, onde o poeta nega a existência de qualquer tipo de divindade e de demônio. E posiciona-se claramente ao dizer que: “Púlpitos têm de abrigar vozes de poetas / Para a liberdade do homem amanhecer”.
Claridade, amor e força. A poesia de Rafael Rocha mostra, mais uma vez, que não basta ordenar palavras, antes de tudo precisamos ter emoções concretas e livres e o coração comum, sangrando por entre os versos.