quinta-feira, 1 de agosto de 2019

TREZE ESTRELAS – Rafael Rocha

Do livro “Farol” – 2019
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No céu dos homens famintos
treze estrelas iluminaram
rios/planaltos/corcovados.

Até as vidas dos homens ímpios
receberam seus brilhos.

Hoje o céu está sem as estrelas
e meteoros incendiários
preparam a pulverização
dos rios/planaltos/corcovados.

Os famintos ficam mais famintos
na escuta do riso dos ímpios
a se fazerem donos dos céus,
apagando as luzes das treze estrelas.

A ÚLTIMA DAMA DA NOITE – Rafael Rocha

Quinto capítulo do romance lançado no ano de 2002
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Marco Cícero soube da proximidade do encantamento de Maria Rosa exatamente quando deslizava em sua cadeira de rodas do quarto para a sala de estar em busca do café da manhã.
A fumaça branca o alcançou na sala e um cheiro adocicado de ameixas invadiu suas narinas. As lembranças o acordaram ainda mais.
Adiantou a cadeira de rodas até a varanda e ali se deixou ficar imóvel com as lembranças.
Sua filha Marly o alcançou e ficou a seu lado. Ao olhá-la, ele viu nos olhos da moça o espanto de quem não entende mistérios e muito menos realidades fantásticas. Um sorriso bailou imperceptivelmente nos lábios e fê-lo acariciar as mãos da filha. Assim, ambos ficaram envoltos pela fumaça e por odores estranhos exatamente às seis da matina.
O semblante de Marly buscava enfrentar os olhos de Marco, mas ele os fechara para mergulhar nas reminiscências. Respeitando o pai e sua história de vida, ela acariciou levemente o rosto do homem e o deixou solitário na varanda.
Recordava...
Quem eu quero não me quer/ Quem me quer mandei embora / E por isso já nem sei / O que será de mim agora...
Os dedos percorriam o violão com grande intimidade. O instrumento musical era o corpo da mulher amada, e as cordas os sentidos.
A música a voejar no ar se esvaía no prazer de ter sido criada, manipulada e acariciada com a experiência de dedos e mãos tão mágicas.
Os frequentadores do bar se deixavam levar pela voz de Marco Cícero, como hipnotizados.
As mulheres da vida esqueciam, por instantes, que estavam a vender o corpo e se entregavam por inteiro ao prazer da melodia triste e plangente, levada às janelas dos puteiros, onde desaparecia sobre os clamores de gemidos, ais e uis e dos rangidos das molas das velhas camas patentes.
Passo as noites meditando / Revivendo meu castigo/ No meu quarto de saudade / Solidão mora comigo...
Os olhos de Marco pousaram na linda mulher de pele branca e grandes olhos castanhos a espiá-lo na mesa defronte, e seus dedos quase esqueceram a melodia a dar sequência nas cordas do violão.
Soube naquele instante: tinha alguém para usufruir a noite consigo.
Viu, num relance, os olhos da fêmea oferecendo a mensagem de que seria sua companhia noturnal até as estrelas desaparecerem do firmamento.
Por onde anda quem me quer? / Quem não me quer onde andará?/ O que será da sua vida? / Da minha vida o que será?..
Levantou-se e, dedilhando o violão, dirigiu-se para os olhos de Maria Rosa que o fitavam embevecidos, com brilhos insinuantes de lubricidades inconfessáveis. Ambos saíram do bar lado a lado, dobrando numa das ruas transversas à Avenida Marquês de Olinda, em direção à Vigário Tenório.
Os fregueses do boteco de Tião Marinheiro ficaram a escutar a voz de Marco Cícero a se distanciar, e depois deram vazão aos seus instintos, levando os copos cheios de cerveja às bocas, acendendo cigarros, dando risos pueris e fazendo sinais às meninas da noite, que só então começavam a “fazer sala” para eles.
Não sou capaz de ser feliz / Nos braços de um amor qualquer/ Ah, se uma fosse a outra/ Que eu amo tanto e não me quer.
Porém, os desvarios sexuais na grande cama de casal da madame quase põem Marco Cícero em pandarecos. Acordou na manhã seguinte com os raios do sol a entrar pela janela do quarto da pensão.
Vendo-se sozinho e nu, com a carne do corpo lacerada pelas unhas cortantes da mulher, amaldiçoou a hora em que a conhecera e se deixara levar pelos seus encantos.
“Devia estar muito bêbado! Ora, porra! Que papel de burguês de merda estou fazendo! Caralho!”
A porta se abriu inundando de luz o aposento, e Marco Cícero ficou embevecido com a aparição.
Nua, com os seios de mamilos pontudos e arrebitados, Maria adentrava o quarto com uma bandeja cheia de comida nas mãos, onde também se via um estojo de primeiros socorros.
A pele macia e branca da fêmea mostrava ao homem que ele não tinha se enganado na escolha da beleza para aquela última noite.
E, ainda mais, o cheiro a sair do corpo feminino começava a deixá-lo em transe ou, melhor dizendo, como um animal no cio.
Maria Rosa notou tudo isso.
− Coma primeiro pra ficá mais forte. Que ôme! Quase me mata na noite passada. Fudedô do cacete tu é, visse?
− Esquece a comida. Não tenho fome alguma. É você...
− Eu sei... Sei... Mas será muito mió cumê o que eu trouxe e deixar que eu faça uns consertos nesses arranhões. Desculpe, mas fui obrigada a enfiar as unhas em tu antes da minha perseguida cair abaixo, visse?
− Você é linda! Você é...
Dispois... dispois... dispois... Seje bonzinho e coma pra fica fortinho. Sou tua sobremesa, certo?
A sobremesa, na realidade, foi um “repasto” nunca experimentado por Marco Cícero.
As carícias feitas em seu corpo pela experiente mulher colocaram o rapaz em estado de excitação tão desesperado, que via até formigas deslizando nas paredes e entrando em trabalhos sexuais.
Quando se compenetrou que deveria dar sequência aos trâmites da verdadeira paixão, sentiu a mulher tentando por todos os meios fugir do seu contato. Mesmo assim ele a buscava, sedento e faminto, querendo conhecer seus ardilosos segredos, mergulhar nos recônditos mistérios. Sabia-se um bom amante, mas naqueles instantes matutinos estava se superando em todos os sentidos. O desejo escorria por suas vísceras como as águas do Capibaribe no encontro com as do Beberibe, buscando as espumas do mar.
De repente, notou como a mulher enfraquecia suas defesas, enfiava-se com tudo e quase toda dentro dele, agoniada, molhada, deslizante, suada e praticamente vencida.
Escutou o grito furioso de fêmea no cio, o gemido longo e gutural, seguindo-se o orgasmo mais fantástico que ele nunca vira na vida. Pela boca, pelos olhos, pelas narinas e pelos outros orifícios do sinuoso corpo, Maria Rosa soltava longos e odoríficos vapores de fumaça branca e o envolvia num abraço mágico e atordoante.
Voltando de suas reminiscências, Marco Cícero, antes de chamar sua filha e pedir que pusesse a mesa para o café da manhã, exclamou: 
− E agora ela está morrendo! Como é que pode morrer uma mulher como essa? Como é que morre uma mulher como essa?...

OLHOS ABERTOS PARA A MORTE – Rafael Rocha


Sexto capítulo do livro homônimo lançado no ano de 2012 – Agraciado com Menção Honrosa pela Academia Pernambucana de Letras (APL) – Prêmio Vânia Souto Carvalho (2011)
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“Como é seu nome?” “O que você quer de mim, hein?” “Diga-me seu nome”. “Merda! Onde é que estou? Quem é você?” “Confirme seu nome”. “Tira essa luz de minha cara! Tira!” “Você não tem poder aqui dentro. Diga seu nome”. “Sérgio. Meu nome é Sérgio”. “Quero o nome completo. Diga”. “Que diabo é isso? Que é que você está querendo comigo?” “Seu nome, rapaz. Seu nome todo”. “Sérgio Lira. E agora? Pode explicar o que significa isso?” “Se você for inteligente vai descobrir logo. O que é isso aqui?”
Uma valise foi jogada sobre a madeira carcomida da mesa que se encontrava em frente ao rapaz. Ele tentou sair da cadeira, mas naquele instante notou que estava acorrentado a ela. As mãos presas nos braços do móvel. Sua cabeça começou a doer devido à pancada que tinha levado. Assim, um tanto zonzo, buscava entender o significado daquilo.
De repente, as luzes foram acesas. Incomodado com a claridade repentina, ele piscou os olhos. Viu três homens. Dois deles eram altos e cheios de músculos. Estavam sem camisas, mas tinham os rostos escondidos por capuzes negros. Sérgio começou a imaginar que tudo aquilo era um sonho. Estava habitando algum pesadelo, vendo imagens de carrascos da Idade Média. Logo a seguir, descobriu que tudo era real. O homem sem máscara - magro e totalmente vestido de negro - se aproximou dele e o esmurrou no queixo. Viu milhares de pontos estelares. “Isso não é brincadeira. Não pense que é brincadeira”.
Pôde ver então quem era o homem a interrogá-lo. Magro. Olhos grandes e frios como os de uma ave de rapina. Sentiu um sabor quente a deslizar pelas comissuras dos lábios. Sangue. Seu sangue. Um dos homens pegou um livro de capa azul que estava sobre a mesa e mostrou para ele. “O que é isso?”, perguntou o homem magro. “Um livro”, respondeu Sérgio. “Sei que é um livro. Não sou cego. Diga que livro é esse. Diga”. Com os olhos ofuscados devido à claridade da sala, ele fitou a capa do livro. Quase deixa escapar uma gargalhada. “O livro não é meu. É emprestado”, salientou. “Não quero saber disso! Quero que você diga que livro é esse”. Os olhos de Sérgio piscaram, olhando do livro para o homem magro. Notou que além dos olhos de ave de rapina, seu interlocutor tinha um nariz adunco, parecido com o bico de algum pássaro maldito. Observou que os olhos do homem permaneciam fixos nele. “Que livro é esse?”, escutou outra vez a pergunta. “História da Riqueza do Homem”, respondeu. “É para um trabalho da faculdade”. “Uma faculdade de Direito recomenda um livro desses? O tema não tem nada a ver com Direito.” “Não, não recomendou. Tomei emprestado de um professor”. “Qual professor? Esse professor tem nome?”
Sérgio baixou os olhos. Ficou calado. Dessa vez o homem não foi complacente. Fez sinal a um dos musculosos encapuzados, que, num átimo, agarrou o dedo mindinho da mão direita do rapaz e violentamente o dobrou para trás, quebrando-o na base. O grito de Sérgio balançou até as lâmpadas da sala. Um brado animal de dor como ele nunca tinha dado. O suor começou a escorrer por sua testa. A dor subia pelos músculos do braço até alcançar o cérebro, que começou a latejar de medo. Sua cabeça parecia que ia explodir para dentro.
“Vocês, estudantes de hoje, são engraçados. São uns otários alienados. Tanta gente por aí pedindo a obediência e respeito e vocês jogando fora a obediência e o respeito”, exclamou o homem magro. A dor impedia Sérgio de falar. Lágrimas escorriam dos seus olhos e se misturavam com o suor do rosto. A imensa dor que estava sentindo fazia com que ele deixasse de entender os fatos, as palavras, e tudo o que aquele homem dizia.
“Gostaria de saber que tipo de trabalho a faculdade manda vocês fazerem em cima de um livro assim”, continuou o homem magro a dissertar. “Também gostaria de saber sobre esse professor amigo seu. Aquele que emprestou a você o livro. Gostarei muito de conhecê-lo”.  Sérgio não conseguia juntar palavra com palavra, mas já estava começando a entender alguma coisa. “Merda!”, pensou. “Que desastre! Preciso sair dessa! Preciso!”
“Eu também gosto muito de ler, sabe? Tenho muitos livros em casa. Acho que você gostaria de saber que meu livro de cabeceira é um livro especial. Adoro ler esse livro, mas não vou dizer o nome dele. Você vai descobrir por si mesmo quando eu começar a trabalhar em você, rapaz”. O homem magro acendeu um cigarro e fez a fumaça escapar de encontro ao rosto de Sérgio. Depois, acenou para os dois outros homens encapuzados. Estes aquiesceram. Pegaram Sérgio pelos braços e o desacorrentaram. A seguir, levaram o rapaz para um catre existente no canto da sala, deitando-o no mesmo e novamente prendendo-o, com os braços abertos para cima, pernas também abertas. Tanto os braços como as pernas foram algemados nas cabeceiras do leito. O corpo ficou com a forma de um grande X. Depois, despiram o rapaz. 
“Dentro de algumas horas a gente vai conversar muito, meu jovem”, escutou a voz do homem magro ao pé de um dos seus ouvidos.  “Espero que você seja inteligente e responda bem direitinho a tudo que eu vou perguntar. Caso contrário os seus outros dedos vão sofrer mais, muito mais do que esse”. Dito e feito, o homem magro agarrou o dedo mindinho quebrado de Sérgio e ficou a mexer com ele para lá e para cá. O rapaz começou a gritar feito um alucinado. A urrar de dor como um endemoninhado. O homem magro riu e soltou o dedo mutilado. A seguir deu uma tragada forte no cigarro, jogando a fumaça novamente de encontro ao rosto do jovem. “Fique pensando no que vai contar para mim. Voltarei daqui a pouco”.

ESPERA – Rafael Rocha

Do livro “Abismo das Máscaras” – 2017
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Aguardo que uma mulher
com parecença de deusa
passe perto de mim a qualquer hora.
Que seja bela como uma Afrodite
e musical como um tema de Beethoven.
Espero o desfraldar de suas bandeiras
quando eu erguer um brinde à sua vinda
ainda não sabendo quem ela seja
se boa ou se má ou se estranha ou excêntrica.

Aguardo uma mulher bastante propensa
a se imiscuir nas minhas linhas paralelas
a qualquer hora do dia ou da noite.
Que deixe a virtude de lado
e seja mais uma puta
deglutindo minhas ideias provisórias
e recriando meus poemas
nas embalagens do nascer do sol.

Estarei disposto a ser a nova experiência
de seus espaços molhados
e de propagar para outros homens dispersos
suas loucuras de conquistadora
e fazer o mundo se vestir a rigor
homens/pinguins no gelo
a esperar, a esperar, a esperar...

ÓCIO DO SÁBADO LOUCO – Rafael Rocha

Do livro “Meio a Meio” - 1979
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Meu humor está mal-humorado
neste sábado...

Por onde andam as amigas
que não vêm bem-humorar o meu humor?
Andam por aí, bêbadas de cama?
Bêbadas de orgasmos?
Bêbadas de suor?

Por onde andam meus amigos
que vêm bem-humorar o meu humor?
Andam por aí, bêbados de vertigens?
Bêbados do vazio?
Bêbados do só?

Meu humor está cheio de bile neste sábado...

Não há cerveja.
Não há boemia.
Nem poesia de cama.
Nem poesia de bar.

Este sábado está louco.
Vai matar-me de ócio este sábado.