terça-feira, 10 de dezembro de 2019

OLHOS ABERTOS PARA A MORTE - Rafael Rocha


Décimo capítulo do livro homônimo lançado no ano de 2012 – Agraciado com Menção Honrosa pela Academia Pernambucana de Letras (APL) – Prêmio Vânia Souto Carvalho (2011)
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A noite não foi boa para Sérgio. Acorrentado no catre sem condições de se mover, sentia os insetos noturnos rastejando pelo seu corpo. Na escuridão podia jurar que até pequenas ratazanas também tiveram o gosto de percorrer sua carne de cima a baixo, lamber seu suor, tentar morder ou invadir seus orifícios. Sentia vontade de gritar. Pedir socorro. No entanto, descobrira em seu íntimo que ninguém iria atender a esses rogos.
Quando conseguiu fechar os olhos e entregar o corpo ao sono foi brutalmente despertado por um dos musculosos encapuzados. Tiraram as correntes e o puseram de pé. Com algumas bofetadas conseguiram despertar o rapaz para a realidade. Atrás dos dois homens encapuzados Sérgio descobriu o homem magro de nariz adunco e de olhos de serpente a olhá-lo. Seu dedo mindinho não mais doía. Nem mesmo estava sentindo o dedo. Baixou o olhar para a mão direita e viu o grande inchaço. A voz do homem de nariz adunco chegou aos seus ouvidos. “Basta você falar. Basta você dizer quem lhe deu aquele livro que seu dedo será examinado, ganhará uma tala de gesso e poderá ir para casa. Seremos até amigos. O que acha disso?”
Sérgio não tinha sido preparado para nada daquilo. Recebera o livro de um professor amigo de uma colega, para estudar um tema referente ao capitalismo e socialismo. Desde alguns dias tinha o exemplar nas mãos, porém nem sequer se dera ao trabalho de lê-lo. Estava até pensando em devolver... “Você leu esse livro, meu jovem?”, escutou a pergunta feita pelo homem magro. Parecia que ele também lia pensamentos. “Não. Não li. Nem sei o conteúdo. Há dois meses que estou com ele. Não li.” “Meu rapaz, meu rapaz! Tanto tempo com um livro sem ler. Que rapaz preguiçoso você está me aparecendo. Quer que eu acredite nisso? Quer?” “Falo a verdade. Ainda não li o livro. Digo a verdade”. “Tudo bem. Tudo bem. Eu acredito em você. Vou acreditar em você. Não me custa nada isso. Já vi que você não é um rapaz dado a essa safadeza de comunismo. É? Você é comunista, meu jovem?”
O medo tomou conta do semblante de Sérgio. Olhava para o homem vestido de negro e de olhos de serpente e não sabia o que dizer. Gaguejou: “Não.. Não sei... Não... Eu... Eu..” O homem sorriu, olhou para os encapuzados e com um gesto ordenou que eles saíssem do cubículo. Após a saída dos dois homens, ele puxou um banco e sentou-se em frente de Sérgio. “Sente aí na cama. Sente! Somos dois homens conversando. Aliás, até agora... Você pode continuar sendo homem e ter muitas namoradas. Por falar nisso, sua namorada é muito bonita, sabe meu jovem? Muito bonita!”
O homem abriu uma cigarreira de prata e dela sacou um cigarro. Após acendê-lo e dar uma baforada para o teto, voltou a olhar fixamente Sérgio. “É tudo muito simples, meu jovem. Muito simples. Nós estamos em guerra, entendeu? A democracia contra o comunismo. Deus contra o Diabo. O Brasil e seu povo cristão contra os ateus da foice e do martelo. Está escutando?” Sérgio fez que sim com a cabeça. Não queria olhar para o homem. Imaginava que pousando seus olhos nos do homem podia morrer. “Claro. Ótimo. Você é um rapaz inteligente. Você sabe disso. E sairá daqui para os braços de sua namorada. Com o dedinho medicado. Tranqüilamente. Isso eu garanto, meu rapaz. Basta que diga apenas uma coisa.”
A promessa despertou Sérgio para a vida. Queria sair daquele local nojento o mais depressa possível. Não interessava como. Desejava voltar aos braços de Camila. Sentir os beijos dela, a suavidade da pele dela. Desejava novamente o calor e o aconchego de sua casa. As conversas com seus pais e seus irmãos. Dessa vez olhou o homem de nariz adunco nos olhos. ”Voltarei para casa? Vai me deixar sair daqui? Posso acreditar nisso?” “Meu rapaz, meu rapaz, eu só tenho uma palavra. Sempre fui um homem de palavra. Quando digo uma coisa é para acontecer. Cumpro com o que digo. Não fico insultado com sua falta de confiança, pois se estivesse no seu lugar perguntaria a mesma coisa. Claro, meu jovem. Você vai voltar para casa. Vai voltar a ver seus pais. Vai voltar a beijar sua linda namorada. Claro. E também vai se tornar meu amigo. Ah, ah, ah... Você vai ser meu amigo, rapaz! E juro que você nunca terá um amigo tão leal como eu. Ah, ah, ah....” 
Sérgio estava louco para deixar de escutar as risadas do homem. Baixou os olhos, olhou para sua mão direita. O dedo mindinho inchado e roxo. E descobriu como era grande o seu desejo de sair daquele local. “O que você quer? O que você deseja saber?”, perguntou. O homem de nariz adunco e de olhos de serpente ficou em pé, deu um último trago no cigarro e jogou a guimba no chão, pisando-a. “Muito simples. Quero saber aquilo que você sabe. Quem deu a você aquele livro? Foi um professor, já sei. Você disse. Quero o nome dele. Quero saber onde posso achar esse professor. Diga o nome, onde eu posso achar o homem, e você dentro em pouco estará em casa, curativo no dedo e prontinho para cair nos braços de sua amada. Diga. Ou, muito melhor do que isso escreva neste papel”.
Dizendo isso o homem magro colocou uma folha de papel sobre a mesa defronte ao catre onde Sérgio se achava sentado, junto com uma caneta esferográfica. “Tome uma atitude. Escreva. Assim poderá jurar que nada saiu de sua boca”, exclamou. Sem perder tempo, esquecendo o dedo mindinho quebrado, Sérgio pegou a caneta e escreveu o nome e o endereço de trabalho do professor. A seguir, ele se afastou viu o homem pegar o papel. Viu o sorriso largo e demoníaco a se alastrar pelo rosto dele. “Que beleza! Ótimo! Você me deu uma alegria muito grande, meu rapaz. Você foi precioso.” Logo a seguir abriu a porta e fez um gesto para os dois encapuzados que se achavam do lado de fora. “Façam um curativo no dedo desse meu amigo e depois deixem que ele volte para casa. E não se esqueçam que ele é meu amigo! O que acontecer de ruim com ele a partir de agora é da responsabilidade de vocês. Rápido! Façam o que estou mandando!”
 Sérgio teve os olhos vendados. Sentiu que era colocado em um banco duro de jipe. O veículo partiu. Demorou algum tempo e retiraram a venda de seus olhos. Tentou se acostumar com a luz do dia que descambava para a noite. Não reconheceu o local onde estava. Os encapuzados tinham desaparecido. Um homem gordo e suado o levou até uma farmácia, onde colocaram uma tala no dedo mindinho e o aconselharam a procurar imediatamente um hospital para engessá-lo. A seguir, o gorducho devolveu sua carteira. O dinheiro continuava lá. “Pegue um ônibus e volte para casa. E fique de bico calado. O capitão ainda pode procurar você. Se falar demais deixará de ver a luz do dia. Entendeu isso?” Sérgio tinha entendido muito bem. Agora apenas uma coisa importava. Sua vida. Estava vivo e isso interessava mais. Notou-se parado na Rua do Imperador, no bairro de Santo Antônio. Suspirou fundo e começou a caminhar em busca de transporte para casa. 
Enquanto isso, o capitão Clemens lia e relia o nome e o endereço que Sérgio escrevera no pedaço de papel. Seus olhos de serpente iam e viam pelas letras. Um sorriso frio, hediondo e calculista se desenhava em seus lábios. “Quem diria! Quem diria! Como este mundo é pequeno!” Na folha de papel estava escrito: professor Eric Souza – Grupo Escolar Joaquim Nabuco.