terça-feira, 23 de julho de 2019

BOTECO – Rafael Rocha



Do livro “Felizes na
Dor – Tributo ao poeta Carles Bukowski” – 2016
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a dona amara tem um boteco
debaixo do viaduto
das cinco pontas
onde os homens malditos
deixam seu dinheiro e suas mágoas
com copos de cachaça
entre os dedos
nas mesas sujas
escutando músicas vulgares
vindas de um rádio movido à pilha

a dona amara tem uma garçonete
o melhor tira-gosto da casa!
marinalva de vez em quando
desaparece do boteco
e dona amara se apoquenta
e grita três vezes merda
por onde anda essa puta?
e lá atrás do boteco
sob a sombra do viaduto
marinalva e severino
dão a primeira trepada da noite.



CANTO LIVRE – Rafael Rocha

Do livro “Loucura” - 2018
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Não abraço as pretensões dos outros.
Agressivas ilusões!
Ando liberto pelas ruas deste mundo
de olhos abertos para o efêmero.
Comportados
homens e mulheres gritam:
“Vem conosco!”
Mas não quero as pretensões dos outros
nem ilusões de vida.
Tenho alegrias e tristezas.
Dores amargas convivendo
à minha passagem no planeta.
Eu não vou!
Eu não irei!
Meus caminhos para as andanças são outros.
Apenas eu que os conheço.
Não vou seguir ninguém!
Vou caminhar como um vadio errante
com as palavras e com os sonhos.
Escreverei poemas estranhos
como aquele das conchas do mar
quando escutei as vozes dos peixes
e os ciciares dos mariscos
e os odores das algas oceânicas.
“Vem conosco!”
Eu não irei!
Eu não vou!
Prefiro meu caminho malicioso
nos orgasmos das mulheres
e nos gozos dos homens.

Para as crianças
posso ofertar ofícios lúdicos
fazendo-me Gepeto
a criar pinóquios.
Eu vou
sentar às mesas dos botecos
e beber com os homens
e com as mulheres
cheios de tempo para sonhar.
Eu vou escrever em guardanapos
nos bares da vida
os versos loucos e contumazes
gêmeos irmãos dos bêbados
e das suas solidões.
Vou amar olhos verdes ou azuis
ou castanhos ou negros
e neles pontilhar
estrelas vagabundas
escondidas por detrás
de algum quarto minguante.
“Vem conosco!”
Chamam os que pensam
ter bom senso.
Eu não vou!
Eu não irei!
Vou abraçar as putas da cidade!
Vou beijar as bichas da avenida!
Vou dormir com o mundo marginal!
Darei uma banana para os governantes
na minha glória anárquica
e no redemoinhar do vento
pretendo rodopiar feito um ciclone.

“Vem conosco!”
Essa insistência enraivece!
Não querem entender
a necessidade de meus passos livres.
Vou para o lugar que eu quiser!
Meu caminho é outro!
Pretendo descobrir pecados
e realizar minhas loucuras
nas bucetas
nos lábios
nas mãos
nos corpos
das multidões.
Não vou ao lugar que tantos desejam!
Não sou pessoa comportada!
Minha intenção é a liberdade!
Meu voo é aquele do condor:
           - asas abertas no ar! –

CAOS COLETIVO – Rafael Rocha

Do livro “Farol” – 2019
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O caos coletivo nasce
cumprimentando medos,
alterando paisagens antigas,
deteriorando emoções.
O caos coletivo espreita
o habitat humano,
escravizando reflexos
da vida nos espelhos.

O homem não é mais...
A mulher não é mais...
A criança não é mais...
Todos agora são servos
da entidade infernal.

As aparências enganam mundos
e todos se fazem de surdos.
O caos coletivo mata a ética.
O caos coletivo cria o pânico.
Nada se é mais determinante
do que as reações anormais:
– Homens ruins abrem alas
para um novo roteiro do mal!

A ÚLTIMA DAMA DA NOITE – Rafael Rocha


Quarto capítulo do romance lançado no ano de 2002
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Diário de Jurandir Farias

Não sei definir o motivo pelos quais as coisas acontecem.
Não sei o significado da palavra destino.
Não sei por que homens e mulheres adoram procurar a companhia uns dos outros. Nunca fui uma pessoa muito estudiosa da mente humana. Escrevo estas linhas para o mundo saber o quanto desconhece o amor, enquanto outros sentimentos menores, hipócritas e nocivos vivem e fazem seus bulícios dentro do mundo.
Não conheci meu pai nem minha mãe, porém fui muito bem criado. E, se hoje tenho condições para escrever estas linhas, é graças à mulher que me tirou da rua e me fez um homem de bem. Não vou dizer: amei essa mulher. Mas tive por ela um grande respeito. De um mísero ladrão de galinha, ela fez um engenheiro. De um safado fornicador, um pai de família responsável. Não sei e jamais quis saber o objetivo e o ganho dela nisso tudo. Basta entender: tive uma vida diferente das dos outros e devo isso a ela.
Acostumado como estava a viver no meio dos caranguejos, dos siris e da lama dos rios Capibaribe e Beberibe, no início não entendi quando me vi posto em roupas limpas e matriculado numa escola.
Não gostei nada disso.
Perdi um pedaço de minha liberdade de bicho-homem-.
Fui obrigado a esquecer as galinhas que roubava dos quintais das chácaras do bairro de Santo Amaro, e até as mulheres vadias que enrabava nos matagais dos engenhos e nas plantações da Caxangá. No princípio, revoltei-me, mas as mãos que me prenderam nesse novo método e estilo de vida eram mãos de ferro apesar de femininas, belas, brancas e sinuosas.
Não vou dissertar muito sobre os meus primórdios de vida. Só alguns pormenores. Quando ficava longe dos estudos, vivia no meio da mulherada do Bairro do Recife e era acarinhado e ensinado como um cachorro de madame, ganhando carinhos surrealistas, cheios de fantasias lúbricas nas noites chuvosas, quando homem algum se aventurava a procurar amores de minutos. Posto a servir ao Exército, fui convocado para a guerra e fiz parte de uma das primeiras levas da FEB a lutar em terras europeias.
 O instinto de assassino veio-me à tona nessas lonjuras, e talvez tenha sido isso que me colocou a salvo e me trouxe de volta. Talvez também tenham sido as mulheres italianas e francesas que me resgatavam dos campos da guerra para suas camas, terminando por seguir meus rumos e cheiros no retorno ao Recife.
A madame Zuzu del Piero D’Annunzio que o diga, bem como suas afilhadas francesas e italianas – Dalva, Sophie, Malena, Isabelle, Dorita, Cassandra, Téreze, Anabelle, Beatrice, Renée, Selena, Helóise, Sabrina, Margot, incluindo o safado frangote da Bretanha, Hely D’Anjour –, todas dizendo-se presas por um louco feitiço existente nos meus olhos. Instalei essa troupe no prédio da boate Chantecler, onde deram para fazer a noite.
Minha mãe adotiva, a madame Maria Rosa, ficou enraivecida ao ver a concorrência de alta classe a chegar comigo do estrangeiro, mas não deixou a sua raiva transparecer, mesmo que após meu retorno da guerra tenha posto um ferrolho e um índex ao redor de minhas aventuras.
Quem conseguir este caderno, e se por acaso ler o que nele está escrito, faça bom uso.
Não o querendo, procure passá-lo a algum entendedor da matéria, um jornalista, um escritor, um homem de letras. Talvez dele saia alguma história que preste.
Só um conselho: não desvirtuem seu conteúdo, pois a verdade para ser verdade tem de se apresentar nua e vazia de artifícios que a façam parecer bela e agradável.
Simplesmente, assinalo a verdade como uma mulher muito feia e desencantada, mas necessária tanto às outras mulheres como aos homens.
Ela existe e está presente para guerrear a beleza da mentira.
A história de minha mãe adotiva é fantástica e, ao mesmo tempo, simples. Porém, ainda assim, é a história de uma mulher.
É a história de quem se entregou por inteiro à vida e dela soube tirar respeito e renome.
Não sei se a amaram. Mas sei que foi odiada. Muito odiada! Porém, do mesmo jeito, foi temida. No entanto, ela amou. Numa idade quando muitas mulheres já estão se preparando para casar os filhos, ela teve seu amor. Sei do seu filho. E a separação dela desse filho. Sei seus mistérios, só revelados no leito de morte.
Algumas coisas incomodam e são difíceis de dissertar. Nunca fui um bom escrevinhador. Meus ídolos eram e são os números, os cálculos infinitesimais, os logaritmos, a álgebra. Mas acho que posso colocar no papel fatos contados por ela, e trazer à tona os retalhos de sua vida.
Dores. Tristezas. Coisas malbaratadas ou escondidas em seus escrínios pessoais para ninguém gerar consigo responsabilidade de espécie alguma. 
Em seu leito de morte, Maria Rosa, a famosa, temida e tresloucada madame da Rua Vigário Tenório, contou-me...

OLHOS ABERTOS PARA A MORTE – Rafael Rocha

Quarto capítulo do livro homônimo lançado no ano de 2012 – Agraciado com Menção Honrosa pela Academia Pernambucana de Letras (APL) – Prêmio Vânia Souto Carvalho (2011)
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O homem magro de nariz adunco, de óculos escuros, estava sentado a uma das mesas de um bar, numa rua transversal a um dos portões da Faculdade de Direito do Recife, a beber cerveja. Seus olhos por trás das lentes navegavam de um lado para outro, observando a área. Parecia esperar algum acontecimento específico. Ou alguém. Do outro lado, em frente à Praça Adolfo Cirne, um jipe escuro se encontrava estacionado. Ao volante, um homem gordo e suado. Recostado em um dos lados do jipe, dois altos e musculosos rapazes conversavam.
Uma meia hora já se tinha passado desde a chegada do grupo àquele local. Mas seus integrantes continuavam pacientes, como se outra coisa não tivessem a fazer a não ser esperar, quando um vozerio soou pelos lados de dentro do portão. Um rapaz e duas moças riam e soltavam pilhérias uns a outros. Uma das garotas beijou o rapaz no rosto, dando-lhe a seguir uma palmada carinhosa. “Cuide-se, viu?”, disse, ela partindo em seguida.  A outra, logo após, encostou seu corpo contra o corpo do jovem e o enlaçou pelo pescoço com os braços para a seguir colar os lábios nos dele. O beijo foi demorado. Sob os olhares do grupo de homens recostados no jipe.
“Ainda tenho aula. Depois a gente se encontra, certo?”, disse a garota, olhando nos olhos do rapaz. “Certo! Vou à tua casa de noite. Vamos vê se ficamos mais sozinhos. Quero te beijar muito, pegar muito em você”, respondeu o rapaz. “Deixa de ser safado. Tudo tem seu tempo. Espero você em casa”, respondeu a jovem. Beijaram-se outra vez e a seguir ele se afastou dela, acenou um até logo e rumou para o portão da universidade. Já na saída, voltou a olhar para trás. Não vendo mais a garota, sorriu e começou a caminhar em direção à Rua do Riachuelo. Não notou o homem de nariz adunco e de óculos escuros acenar para os dois musculosos rapazes que estavam encostados ao jipe, cujo motorista, gordo e suado, deu partida na máquina, seguindo também em direção à mesma rua.
Logo ao chegar nessa artéria, uma mão pesada caiu sobre os ombros do rapaz, enquanto outras mãos roubavam sua valise cheia de livros e cadernos. Tentou reclamar e reagir, mas sua cabeça explodiu em estrelas e em dor ao ser alcançada por um porrete. Sentiu seu corpo içado por dois braços fortes e jogado dentro de um veículo, cujo motor roncou, fazendo o carro dar um pulo à frente e depois sair em velocidade moderada pela rua. Do outro lado, Zé Borges, dono de um fiteiro foi a única testemunha do sequestro. Ficou a olhar o jipe desaparecer entre outras dezenas de carros, coçou a vasta cabeleira castanha com alguns fios grisalhos, encolheu os ombros e voltou sua atenção para um homem magro, nariz adunco e de óculos escuros parado à sua frente. “Uma carteira de cigarros, por favor. Sem filtro”. Rapidamente, o dono do fiteiro esqueceu o que tinha visto.

BUSCA – Rafael Rocha

Do livro “Abismo das Mascaras” - 2017
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De um mandacaru
ou de um ipê roxo
até o encontro dos rios
e à desembocadura
no Atlântico
conheci vazios
e pessoas recitando
salmos e orações
para fugir do medo e da solidão.

Só um nada inclemente
oferece respostas
ainda que nas mesas postas
seres de cérebros mutilados
agradeçam em altas vozes
refeições, amores e dinheiros.

Do mandacaru ao ipê roxo
só a realidade existe
e o desejo de um corpo por outro corpo.
O anseio de uma boca por outra boca.
A busca frenética de uma ilusão.

MULHER MORENA – Rafael Rocha

Do livro “Meio a Meio” - 1979
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Mulher morena que se estende
nos lençóis brancos da vida.
És o motivo maior deste poema.
Tremores nas areias dos meus rios.

Mulher morena que se entrega
mórbida como quase que obrigada.
És a fruta madura que mata minha fome
e pacifica a aridez das minhas origens.

Mulher morena que incendeia
a víscera do pecado original.
És a abertura que suga o meu sangue
e tonifica os meus nervos de animal.

Mulher morena que se desmorona
em contrações de cavalgadura.
És a cama, o pão, a agonia
onde consigo esquecer as amarguras.