Quarto capítulo do romance lançado no ano de
2002
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Diário de Jurandir Farias
Não
sei definir o motivo pelos quais as coisas acontecem.
Não
sei o significado da palavra destino.
Não
sei por que homens e mulheres adoram procurar a companhia uns dos outros. Nunca
fui uma pessoa muito estudiosa da mente humana. Escrevo estas linhas para o
mundo saber o quanto desconhece o amor, enquanto outros sentimentos menores,
hipócritas e nocivos vivem e fazem seus bulícios dentro do mundo.
Não
conheci meu pai nem minha mãe, porém fui muito bem criado. E, se hoje tenho
condições para escrever estas linhas, é graças à mulher que me tirou da rua e
me fez um homem de bem. Não vou dizer: amei essa mulher. Mas tive por ela um
grande respeito. De um mísero ladrão de galinha, ela fez um engenheiro. De um
safado fornicador, um pai de família responsável. Não sei e jamais quis saber o
objetivo e o ganho dela nisso tudo. Basta entender: tive uma vida diferente das
dos outros e devo isso a ela.
Acostumado
como estava a viver no meio dos caranguejos, dos siris e da lama dos rios
Capibaribe e Beberibe, no início não entendi quando me vi posto em roupas limpas
e matriculado numa escola.
Não
gostei nada disso.
Perdi
um pedaço de minha liberdade de bicho-homem-.
Fui
obrigado a esquecer as galinhas que roubava dos quintais das chácaras do bairro
de Santo Amaro, e até as mulheres vadias que enrabava nos matagais dos engenhos
e nas plantações da Caxangá. No princípio, revoltei-me, mas as mãos que me
prenderam nesse novo método e estilo de vida eram mãos de ferro apesar de
femininas, belas, brancas e sinuosas.
Não
vou dissertar muito sobre os meus primórdios de vida. Só alguns pormenores.
Quando ficava longe dos estudos, vivia no meio da mulherada do Bairro do Recife
e era acarinhado e ensinado como um cachorro de madame, ganhando carinhos
surrealistas, cheios de fantasias lúbricas nas noites chuvosas, quando homem
algum se aventurava a procurar amores de minutos. Posto a servir ao Exército,
fui convocado para a guerra e fiz parte de uma das primeiras levas da FEB a
lutar em terras europeias.
O instinto de assassino veio-me à tona nessas
lonjuras, e talvez tenha sido isso que me colocou a salvo e me trouxe de volta.
Talvez também tenham sido as mulheres italianas e francesas que me resgatavam
dos campos da guerra para suas camas, terminando por seguir meus rumos e
cheiros no retorno ao Recife.
A madame Zuzu del Piero D’Annunzio que o
diga, bem como suas afilhadas francesas e italianas – Dalva, Sophie, Malena,
Isabelle, Dorita, Cassandra, Téreze, Anabelle, Beatrice, Renée, Selena,
Helóise, Sabrina, Margot, incluindo o safado frangote da Bretanha, Hely D’Anjour –, todas dizendo-se presas por
um louco feitiço existente nos meus olhos. Instalei essa troupe no prédio da boate Chantecler, onde deram para fazer a noite.
Minha
mãe adotiva, a madame Maria Rosa,
ficou enraivecida ao ver a concorrência de alta classe a chegar comigo do
estrangeiro, mas não deixou a sua raiva transparecer, mesmo que após meu
retorno da guerra tenha posto um ferrolho e um índex ao redor de minhas
aventuras.
Quem
conseguir este caderno, e se por acaso ler o que nele está escrito, faça bom
uso.
Não
o querendo, procure passá-lo a algum entendedor da matéria, um jornalista, um
escritor, um homem de letras. Talvez dele saia alguma história que preste.
Só
um conselho: não desvirtuem seu conteúdo, pois a verdade para ser verdade tem
de se apresentar nua e vazia de artifícios que a façam parecer bela e
agradável.
Simplesmente,
assinalo a verdade como uma mulher muito feia e desencantada, mas necessária
tanto às outras mulheres como aos homens.
Ela
existe e está presente para guerrear a beleza da mentira.
A
história de minha mãe adotiva é fantástica e, ao mesmo tempo, simples. Porém,
ainda assim, é a história de uma mulher.
É
a história de quem se entregou por inteiro à vida e dela soube tirar respeito e
renome.
Não
sei se a amaram. Mas sei que foi odiada. Muito odiada! Porém, do mesmo jeito,
foi temida. No entanto, ela amou. Numa idade quando muitas mulheres já estão se
preparando para casar os filhos, ela teve seu amor. Sei do seu filho. E a
separação dela desse filho. Sei seus mistérios, só revelados no leito de morte.
Algumas
coisas incomodam e são difíceis de dissertar. Nunca fui um bom escrevinhador.
Meus ídolos eram e são os números, os cálculos infinitesimais, os logaritmos, a
álgebra. Mas acho que posso colocar no papel fatos contados por ela, e trazer à
tona os retalhos de sua vida.
Dores.
Tristezas. Coisas malbaratadas ou escondidas em seus escrínios pessoais para
ninguém gerar consigo responsabilidade de espécie alguma.
Em
seu leito de morte, Maria Rosa, a famosa, temida e tresloucada madame da Rua Vigário Tenório,
contou-me...