Conto inserido no livro “O
Espelho da Alma Janela e outros Contos” - 2009 - Livro agraciado com o
Prêmio Leda Carvalho - em 1988 - pela Academia Pernambucana de Letras (APL)
...........................
O seu
trabalho será fácil. Não se preocupe. Consistirá simplesmente em juntar estes
papéis datilografados a qualquer uma destas pastas de cor azul. Um conselho:
você não deve ler o conteúdo datilografado. Por quê? Ora, não é da sua conta.
Depois de juntar os papéis às pastas azuis, numere-as com o número de ordem e
arquive-as na estante possuidora do número. Apenas isso. Muitas vezes não terá
nada o que fazer e, nesse caso, fique esperando. Sempre aparecerá algum serviço
para você. Mas não durma. Espere acordado pois, com toda certeza, digo-lhe isso
por experiência própria, você sempre terá algo para fazer, nem que seja pensar
nos seus próprios pensamentos”.
– Que papel estarei representando?
“Simples.
Você estará guardando coisas impossíveis de serem renovadas hoje. Vamos dizer:
você é um Vigia da Renovação. Algo assim como um guardião de objetos que
poderão ter uma serventia em outros dias, mas que hoje não prestam para nada.
Você, porém, nessa função, procurará manter em ordem, sem poeira, que é o
envelhecer do tempo. Tudo em ordem para ser usado em alguma ocasião específica.
Essa ocasião específica aparecerá de uma forma ou de outra e você um dia terá
de prestar contas de seu serviço. Por isso, faça-o com perfeição. Será bem pago
todos os meses. Não haverá motivos para reclamações”.
– Estarei sempre só neste cubículo?
“Sim,
estará sempre só. Todos os dias quando chegar, encontrará novos papéis
datilografados sobre sua mesa. Seguirá a regra já exposta, que é muito fácil.
Não há possibilidade de erro. Note que o próximo número a arquivar está na casa
dos quatrilhões, mas não se incomode com isso. Siga a seqüência que tudo dará
certo. Não há nem haverá motivos para preocupações”.
– Mas, estando eu sozinho, não cederei à
tentação de ler o que vem escrito nos papéis?
“Você
foi escolhido dentre muitos porque temos a certeza de que é incapaz de fugir a
uma regra. Sua mente não comporta coisas acima dos conhecimentos que possui.
Muito menos uma fuga da ordem estabelecida, porque você é obediente e, por ser
assim, temos como certo que é incapaz de penetrar nas sendas contrárias. Por
isso confiamos em você. No dia que cismar e tomar ao pé da letra a vontade de
ler o conteúdo destes papéis, saberá de antemão o que acontecerá consigo”.
Portanto, doutor, eis todo o retrospecto do
caso. Não vá agora pensar coisa ruim de minha pessoa se, hoje, após tudo isso,
eu tenha desobedecido às regras estabelecidas, tornando-me inconveniente ao meu
próprio trabalho. Após dez anos exercendo a profissão dentro daquele estreito
espaço, arquivando papéis que não sabia quem colocava na mesa toda manhã, já
que como foi dito, não era da minha conta, deu-me um dia vontade de conhecer o
conteúdo dos mesmos. Lembro-me bem doutor, foi numa sexta-feira, quando fiquei
absolutamente sem fazer nada. Não podia dormir, era proibido. Alcançou-me então
uma sensação estranha. Algo que me espicaçava a cabeça como uma agulha
penetrando fundo no meu cérebro:
– Que segredo se escondia naqueles papéis?
Ora, isso não era da minha conta. Isso não
devia ser do meu interesse. Mas as horas passavam e, quanto mais o ócio me
envolvia, a curiosidade aumentava. Claro que sei o que o senhor vai perguntar:
só teve curiosidade em saber disso depois de dez anos de trabalho? É, doutor.
É. Não dá pra entender realmente. Nem posso explicar com certeza. Mas, sentado
no centro daquela sala, com toda aquela solidão de papéis ao meu redor, senti
coisas diferentes nesse dia. Notei, por exemplo, durante dez anos eu tinha
arquivado muitas pastas (milhares) e as estantes continuavam como no primeiro
dia em que ali chegara, com os mesmos espaços abertos para novas pastas azuis.
Isso me deixou embatucado. Por que? Comecei a perguntar dentro de mim. A lógica
mandava que aquele cubículo deveria estar abarrotado de pastas arquivadas.
Porém, continuava com a mesma aparência do meu primeiro dia de trabalho.
No caso do trabalho, sempre fui muito
pontual. Chegava no horário determinado, às 10 horas em ponto e largava às 15
horas, todos os dias. Ninguém além de mim no local. Nunca vi pessoa alguma
colocar novos papéis sobre a minha mesa. No princípio, pouco me importei com
isso. Estava ganhando o suficiente para me manter no mundo e, bastando seguir
as regras estabelecidas, tudo estaria bem. Só, como eu já disse, uma agulha
começou a espicaçar meu cérebro e, a partir daí, eu, que nem sequer olhava os
papéis e os escritos das primeiras laudas (digo laudas, porque sempre vinham
separadas, grampeadas para que o trabalho de arquivar fosse mais rápido),
comecei a olhar de viés para a folha inicial. No início não prestei muita
atenção. Vi, é claro, palavras escritas, mas
não procurei lê-las atentamente. Até que, na última sexta-feira, tomei coragem
e pus meus olhos sobre a primeira de umas quase trinta laudas datilografadas e
tive uma surpresa: Na primeira folha estava escrito apenas o nome: J.L…
Curioso, dei para abrir pastas e pastas e a
ler o primeiro nome que vinha escrito na primeira folha. Encontrei muitos
Paulos, Joãos, Marias, Pedros, Fernandos, Rosas, Marcos, Silvas, Albuquerques,
Cavalcantis, Rodrigues, Cardosos, centenas de nomes e sobrenomes. Para ser mais
sincero ainda, no começo só li os nomes escritos na primeira folha. Não me
interessei em saber qual era o conteúdo das outras. O que me intrigava era
aquela pasta que continha o nome J. L… A última daquele dia de trabalho (o mais
cansativo dos dias de trabalho que eu tive em dez anos). A última pasta que eu
teria de arquivar naquele dia e, por estranho que pareça, J. L…, doutor, é o
meu nome e sobrenome.
Que faria o senhor na minha situação?
De certa forma, não me interessa saber. Sei
que eu me senti obrigado a ler o que estava escrito naquelas folhas, cuja
abertura vinha com meu nome e sobrenome. Assim, dito e feito, comecei a folhear
as páginas e vi, horrorizado, a história de minha vida escrita, parágrafo por
parágrafo, com todas as vírgulas e pontos e reticências, desde meu primeiro
choro ao sair do ventre de minha mãe, até… Bom, aí é que o caso torna-se complicado.
Não consegui entender o final. Entender ou não, para ser sincero, não levo isso
em conta agora. O caso é que tinha algo em relação ao senhor. Vi o seu nome
numa das últimas laudas que falavam de mim e cá estou fazendo consigo esta
análise. Não me considero idiota, não me considero louco, não sou paranóico nem
psicopata. Estou aqui porque vi o seu nome na última folha, logo no fim da
leitura (não deu pra entender o significado, pois as palavras começaram a
perder o sentido) e tinha de haver, tem de existir uma explicação para tudo
isso. De resto, depois do seu nome e da confusão de linhas e palavras
misturadas, só encontrei uma infinita reticência. Como soube do senhor se nem o
conheço, se nunca o havia visto antes? Fácil! Procurei na lista telefônica e
paguei esta consulta como qualquer cliente. Agora, doutor, será que pode me
explicar essa coisa esquisita? Será que pode me explicar esse troço?
Principalmente porque, hoje pela manhã, encontrei na minha mesa de trabalho o
pagamento de um mês inteiro de serviço e, como se diz na gíria, o “bilhete
azul”. Eu quero uma explicação, doutor. Acredito que o senhor possa explicar
tudo. Diga-me o segredo de tudo isso.
*
* *
Foi encontrado morto em seu apartamento, às
18 horas de ontem, o funcionário público identificado apenas como J. L… De
acordo com o parecer do médico legista, a causa
mortis foi suicídio desde que, após a autópsia, encontraram no seu
organismo grande vestígio de barbitúricos.
* *
*
O psiquiatra Antônio M. R., foi encontrado
morto, em seu consultório, às 20 horas de ontem, com uma bala na cabeça e duas
no coração. A polícia ainda não conhece os motivos do crime.
* *
*
“O seu trabalho será fácil. Não
se preocupe. Consistirá simplesmente em juntar estes papéis datilografados a
qualquer uma destas pastas de cor azul.................... Você estará
guardando coisas que não podem ser aproveitadas hoje............. Não há
possibilidade de erro.....................Temos a certeza de que é incapaz de
fugir a uma regra...................No dia que cismar e tomar ao pé da letra a
vontade de ler o conteúdo destes papéis, saberá de antemão o que acontecerá com
você”.