sábado, 7 de dezembro de 2019

RELÍQUIA - Rafael Rocha

Do livro “Meio a Meio” – 1979
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Eu te amei numa noite de chuva.
Não sei se fui o homem adequado,
mas sei que fui sensível
sabendo cavalgar tua carne macia e branca.
Não por amor dos obscuros fatores da vida.
Sim por plena satisfação dos nossos anseios.

Fui extremo e concessivo na firmeza da paixão.
Apertei-te a mim com agrado
e dei-te a delícia de mim.
Defendi teus instintos animalescos
e tuas justificativas.
E não te fiz muito mal quando pediste
a possessão dos felinos ou quando me envolvi
no perfume das tuas gramíneas

Dei o que querias!
Fiz justiça ao teu sexo
de suavidade máxima e promessas
e deixei que na partida o beijo
fosse um agrado mais de amigo que de amante.
Retirei-me lentamente
após a breve acumulação em ti.

Dei adeus enquanto dormias
satisfeita das minhas prodigalidades.
Dentro de ti restou o pedaço de um bardo.
Quiçá um novo artista.
Outros, que não eu, segarão teu horto
amadurecido por minhas águas
e trarão à luz da terra 
hinos aprisionados de nós mesmos.

ARQUIVO MORTO – Rafael Rocha


Conto inserido no livro “O Espelho da Alma Janela e outros Contos” - 2009 - Livro agraciado com o Prêmio Leda Carvalho - em 1988 - pela Academia Pernambucana de Letras (APL)
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O seu trabalho será fácil. Não se preocupe. Consistirá simplesmente em juntar estes papéis datilografados a qualquer uma destas pastas de cor azul. Um conselho: você não deve ler o conteúdo datilografado. Por quê? Ora, não é da sua conta. Depois de juntar os papéis às pastas azuis, numere-as com o número de ordem e arquive-as na estante possuidora do número. Apenas isso. Muitas vezes não terá nada o que fazer e, nesse caso, fique esperando. Sempre aparecerá algum serviço para você. Mas não durma. Espere acordado pois, com toda certeza, digo-lhe isso por experiência própria, você sempre terá algo para fazer, nem que seja pensar nos seus próprios pensamentos”.
– Que papel estarei representando?
“Simples. Você estará guardando coisas impossíveis de serem renovadas hoje. Vamos dizer: você é um Vigia da Renovação. Algo assim como um guardião de objetos que poderão ter uma serventia em outros dias, mas que hoje não prestam para nada. Você, porém, nessa função, procurará manter em ordem, sem poeira, que é o envelhecer do tempo. Tudo em ordem para ser usado em alguma ocasião específica. Essa ocasião específica aparecerá de uma forma ou de outra e você um dia terá de prestar contas de seu serviço. Por isso, faça-o com perfeição. Será bem pago todos os meses. Não haverá motivos para reclamações”.
– Estarei sempre só neste cubículo?
“Sim, estará sempre só. Todos os dias quando chegar, encontrará novos papéis datilografados sobre sua mesa. Seguirá a regra já exposta, que é muito fácil. Não há possibilidade de erro. Note que o próximo número a arquivar está na casa dos quatrilhões, mas não se incomode com isso. Siga a seqüência que tudo dará certo. Não há nem haverá motivos para preocupações”.
– Mas, estando eu sozinho, não cederei à tentação de ler o que vem escrito nos papéis?
“Você foi escolhido dentre muitos porque temos a certeza de que é incapaz de fugir a uma regra. Sua mente não comporta coisas acima dos conhecimentos que possui. Muito menos uma fuga da ordem estabelecida, porque você é obediente e, por ser assim, temos como certo que é incapaz de penetrar nas sendas contrárias. Por isso confiamos em você. No dia que cismar e tomar ao pé da letra a vontade de ler o conteúdo destes papéis, saberá de antemão o que acontecerá consigo”.
Portanto, doutor, eis todo o retrospecto do caso. Não vá agora pensar coisa ruim de minha pessoa se, hoje, após tudo isso, eu tenha desobedecido às regras estabelecidas, tornando-me inconveniente ao meu próprio trabalho. Após dez anos exercendo a profissão dentro daquele estreito espaço, arquivando papéis que não sabia quem colocava na mesa toda manhã, já que como foi dito, não era da minha conta, deu-me um dia vontade de conhecer o conteúdo dos mesmos. Lembro-me bem doutor, foi numa sexta-feira, quando fiquei absolutamente sem fazer nada. Não podia dormir, era proibido. Alcançou-me então uma sensação estranha. Algo que me espicaçava a cabeça como uma agulha penetrando fundo no meu cérebro:
– Que segredo se escondia naqueles papéis?
Ora, isso não era da minha conta. Isso não devia ser do meu interesse. Mas as horas passavam e, quanto mais o ócio me envolvia, a curiosidade aumentava. Claro que sei o que o senhor vai perguntar: só teve curiosidade em saber disso depois de dez anos de trabalho? É, doutor. É. Não dá pra entender realmente. Nem posso explicar com certeza. Mas, sentado no centro daquela sala, com toda aquela solidão de papéis ao meu redor, senti coisas diferentes nesse dia. Notei, por exemplo, durante dez anos eu tinha arquivado muitas pastas (milhares) e as estantes continuavam como no primeiro dia em que ali chegara, com os mesmos espaços abertos para novas pastas azuis. Isso me deixou embatucado. Por que? Comecei a perguntar dentro de mim. A lógica mandava que aquele cubículo deveria estar abarrotado de pastas arquivadas. Porém, continuava com a mesma aparência do meu primeiro dia de trabalho.
No caso do trabalho, sempre fui muito pontual. Chegava no horário determinado, às 10 horas em ponto e largava às 15 horas, todos os dias. Ninguém além de mim no local. Nunca vi pessoa alguma colocar novos papéis sobre a minha mesa. No princípio, pouco me importei com isso. Estava ganhando o suficiente para me manter no mundo e, bastando seguir as regras estabelecidas, tudo estaria bem. Só, como eu já disse, uma agulha começou a espicaçar meu cérebro e, a partir daí, eu, que nem sequer olhava os papéis e os escritos das primeiras laudas (digo laudas, porque sempre vinham separadas, grampeadas para que o trabalho de arquivar fosse mais rápido), comecei a olhar de viés para a folha inicial. No início não prestei muita atenção. Vi, é claro, palavras escritas, mas não procurei lê-las atentamente. Até que, na última sexta-feira, tomei coragem e pus meus olhos sobre a primeira de umas quase trinta laudas datilografadas e tive uma surpresa: Na primeira folha estava escrito apenas o nome: J.L…
Curioso, dei para abrir pastas e pastas e a ler o primeiro nome que vinha escrito na primeira folha. Encontrei muitos Paulos, Joãos, Marias, Pedros, Fernandos, Rosas, Marcos, Silvas, Albuquerques, Cavalcantis, Rodrigues, Cardosos, centenas de nomes e sobrenomes. Para ser mais sincero ainda, no começo só li os nomes escritos na primeira folha. Não me interessei em saber qual era o conteúdo das outras. O que me intrigava era aquela pasta que continha o nome J. L… A última daquele dia de trabalho (o mais cansativo dos dias de trabalho que eu tive em dez anos). A última pasta que eu teria de arquivar naquele dia e, por estranho que pareça, J. L…, doutor, é o meu nome e sobrenome.
Que faria o senhor na minha situação?
De certa forma, não me interessa saber. Sei que eu me senti obrigado a ler o que estava escrito naquelas folhas, cuja abertura vinha com meu nome e sobrenome. Assim, dito e feito, comecei a folhear as páginas e vi, horrorizado, a história de minha vida escrita, parágrafo por parágrafo, com todas as vírgulas e pontos e reticências, desde meu primeiro choro ao sair do ventre de minha mãe, até… Bom, aí é que o caso torna-se complicado. Não consegui entender o final. Entender ou não, para ser sincero, não levo isso em conta agora. O caso é que tinha algo em relação ao senhor. Vi o seu nome numa das últimas laudas que falavam de mim e cá estou fazendo consigo esta análise. Não me considero idiota, não me considero louco, não sou paranóico nem psicopata. Estou aqui porque vi o seu nome na última folha, logo no fim da leitura (não deu pra entender o significado, pois as palavras começaram a perder o sentido) e tinha de haver, tem de existir uma explicação para tudo isso. De resto, depois do seu nome e da confusão de linhas e palavras misturadas, só encontrei uma infinita reticência. Como soube do senhor se nem o conheço, se nunca o havia visto antes? Fácil! Procurei na lista telefônica e paguei esta consulta como qualquer cliente. Agora, doutor, será que pode me explicar essa coisa esquisita? Será que pode me explicar esse troço? Principalmente porque, hoje pela manhã, encontrei na minha mesa de trabalho o pagamento de um mês inteiro de serviço e, como se diz na gíria, o “bilhete azul”. Eu quero uma explicação, doutor. Acredito que o senhor possa explicar tudo. Diga-me o segredo de tudo isso.
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Foi encontrado morto em seu apartamento, às 18 horas de ontem, o funcionário público identificado apenas como J. L… De acordo com o parecer do médico legista, a causa mortis foi suicídio desde que, após a autópsia, encontraram no seu organismo grande vestígio de barbitúricos.
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O psiquiatra Antônio M. R., foi encontrado morto, em seu consultório, às 20 horas de ontem, com uma bala na cabeça e duas no coração. A polícia ainda não conhece os motivos do crime.
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“O seu trabalho será fácil. Não se preocupe. Consistirá simplesmente em juntar estes papéis datilografados a qualquer uma destas pastas de cor azul.................... Você estará guardando coisas que não podem ser aproveitadas hoje............. Não há possibilidade de erro.....................Temos a certeza de que é incapaz de fugir a uma regra...................No dia que cismar e tomar ao pé da letra a vontade de ler o conteúdo destes papéis, saberá de antemão o que acontecerá com você”.

ESTAME – Rafael Rocha


Do livro “Marcos do Tempo” – 2010
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A estrutura dos meus poemas
É nivelada nos neurônios
Criadores das palavras
A trazer imagens e sonhos.
Essa estrutura é uma incógnita
Gira em tramas labirínticas
Tecidas em organizada mandala
De minhas experiências.

Organizo versos
Cantando calado
Letra a letra
Sem ponto/vírgula
Parágrafos vazios 
Músicas ocultas