domingo, 3 de dezembro de 2023

ELEFANTES BRANCOS MATAM MARIPOSAS (contos) - Rafael Rocha

 


PNEU FURADO E SEM MACACO

 

Como estão hoje os meus companheiros de há quatro décadas?

Lembro de histórias e das mais arrematadas loucuras que fizemos em bando pelas ruas do Recife e de Olinda lá pelos anos entre 1977 e 1980.

Sei que eles não mais estão a fazer aquelas farras homéricas e talvez seja uma tolice cair nesse despenhadeiro e relembrar fatos passados, mas como disse o Zeca, as histórias têm de ser contadas e, além disso, escritas.

- E quem melhor do que você para escrever elas, porra!? - perguntou Zeca.

Não sei se devo carregar a responsabilidade de escrever essas histórias, ainda que estivesse participando do grupo e me aventurando em espaços quase loucos da vida.

- Ao menos uma! - pediu Zeca.

 Sentados no bar Mustang, na Avenida Conde da Boa Vista, numa noite de sexta-feira, logo após sairmos das aulas na Universidade Católica, matutávamos para onde deveríamos ir.

Éramos cinco. Eu, Marcus, Evaldo, Henrique e Gilson.

Lá pelas tantas, ou seja, já depois da meia-noite quando nem havia mais ônibus pelas ruas, Henrique tomou a resolução.

- O Zeca disse que depois de sair da aula iria beber em Olinda. Lá no Bar Maconhão, à beira-mar do Carmo. E que se a gente quiser ir se encontrar com ele... Vamos?

Não precisou nem de votação. Unanimidade.

O problema agora seria achar transporte. Os ônibus já estavam nas garagens e não existia bacurau como hoje a funcionar de hora em hora. Ônibus agora só às cinco da matina

Apenas os táxis notívagos realizavam viagens e esses táxis eram fuscas de cinco lugares com o motorista.

- Vai ser complicado - disse Evaldo - Somos cinco e qualquer táxi só leva quatro.

- Vamos tentar com aquele táxi que está ali parado - falou Henrique – Pode ser que dê certo e ele leve nós cinco. Daqui para Olinda o cara ganha uma boa graninha.

- Problemático... problemático... - resmungou Marcus.

Eu preferi ficar calado e deixar que eles resolvessem o problema.

Henrique e Marcus foram até o táxi e falaram com o motorista por alguns minutos. Este, um senhor magro, cabelos grisalhos, olhou para a gente, pensou um pouco e aceitou.

- Tudo certo - disse Henrique - Eu disse a ele que somos gente fina, estudantes universitários e que queremos ir até Olinda para continuar a farra. Ele aceitou levar, mas fez um pedido: a gente paga um extra para ele.

Nossa sorte, naquela época, foi a de não sermos os roliços senhores que somos hoje devido à idade e às muitas cervejas. A magreza de cada um ajudou.

- Bom! - disse o motorista - O maior e mais forte de vocês vem na frente comigo. Os outros quatro se apertam no banco traseiro.

Gilson era o maior e mais forte. Ele se ajeitou na frente.

A arrumação no banco traseiro não foi muito fácil, mas conseguimos. Fiquei até a perguntar aos meus botões se nós quatro tínhamos engordado a lataria do carro por mais meio metro. Dito e feito, depois de todos se arrumarem, o fusca táxi saiu normalmente com sua carga e rumou para Olinda.

Viagem tranquila até que saímos dos limites do Recife e entramos nos de Olinda, quando, logo depois da Escola de Aprendizes Marinheiros, numa área erma, o pneu dianteiro direito estourou.

- Porra! - exclamou o motorista - Que azar! Puta merda!

Tivemos de descer do fusca.

- Vamos trocar o pneu! - disse Henrique - A gente ajuda!

O motorista coçou a cabeleira grisalha. Encolheu os ombros e falou:

- A merda é que estou sem macaco!

- Que beleza! - exclamei - Quero ver agora como vamos sair dessa! E ainda teremos de pagar a corrida até aqui.

Henrique, porém, era cheio de ideias.

- Nada disso! Com macaco ou sem macaco vamos trocar o pneu e ir para Olinda - falou.

- Como? - perguntou Evaldo.

Henrique olhou para o motorista e perguntou:

- Tem as ferramentas para desapertar os parafusos?

- Tenho, sim – apressou-se ele a dizer, abrindo o porta-malas dianteiro, pois o motor do fusca fica na traseira, e de lá retirando um montão de ferramentas, bem como o estepe.

- Ótimo! - exclamou Henrique, arrematando - Agora, vocês levantam o carro aqui do lado direito e eu retiro o pneu estourado, mas vejam bem, vejam bem, fiquem segurando o maldito fusca e não larguem o desgraçado. Não quero que essa lataria despenque em cima de mim.

Fizemos o que ele mandou fazer.

Eu, Evaldo, Gilson e Marcus erguemos o fusca. O motorista ficou ao lado de Henrique para ajudar, e este começou a agir.

Deu algum trabalho desparafusar tudo e retirar o pneu estourado porque o local estava bem escuro e o motorista usava apenas um isqueiro para clarear. De vez em quando o vento que vinha da orla marítima apagava a chama.

Mas Henrique conseguiu retirar o pneu e quando estava prestes a colocar o novo, um automóvel Galaxie preto parou ao lado e dele desceram dois homens com revólveres apontados em nossa direção.

- Parados! Polícia Federal! Fiquem parados e levantem os braços!

- Ninguém levanta os braços, porra nenhuma! - gritou Henrique, deitado no chão ao lado do pneu dianteiro tentando encaixar o pneu novo.

O motorista do táxi saiu do lado de Henrique, levantou-se e se encaminhou até os dois homens. Falou com eles durante algum tempo que pareceram longas horas. As armas continuavam apontadas para a gente.

Mas não largamos o carro. Afinal de contas, o Henrique estava lá embaixo e...

- Eles estão ajudando a colocar o pneu que estourou - explicou o motorista - Estou sem macaco e eles tiveram que levantar o carro.

Um dos homens fez a volta e foi confirmar o que o motorista falava. Olhou, guardou a arma num coldre axilar e disse para o companheiro:

- Relaxa e guarda a arma! Estão mesmo trocando o pneu! Vamos dar uma mãozinha.

Os dois vieram, e ajudaram a levantar ainda mais o fusca, facilitando o trabalho de Henrique.

Depois de tudo pronto, pneu novo colocado, carro no chão...

- Bom, vocês são rapazes corajosos. Ainda bem que fomos nós a passar por aqui. Estamos perseguindo quatro comunistas que fugiram do quartel general lá do Derby. E quando vimos vocês...

Lembro que o regime de governo da época era a ditadura civil/militar.

- Foi isso... Foi isso... - disse o outro homem - Tiveram sorte de sermos nós. Outros teriam atirado primeiro e perguntado depois.

A seguir, entraram no Galaxie preto e partiram.

Ficamos a olhar uns aos outros. Até que o motorista quebrou o silêncio.

- Como é? Vão ou não vão para Olinda?

Voltamos a nos ajeitar dentro do veículo e rumamos para a Marim dos Caetés. Já estávamos loucos para beber.

Chegando na frente do Bar Maconhão, descemos, fizemos a vaquinha e demos o dinheiro ao Henrique para ele pagar a corrida.

O motorista do táxi recebeu o dinheiro, contou, viu tudo certo, deu uma risada gostosa e exclamou para Henrique:

- Imagina! Imagina! Achar que vocês eram comunistas!

E o Henrique, com o rosto escurecido de graxa, inclusive as duas mãos, disse:

- Nunca mais você vai encontrar comunistas iguais à gente!