quinta-feira, 11 de julho de 2019

A LOUCA – Rafael Rocha

Do livro “Loucura” – 2018
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- Em memória de Maria Rita dos Espelhos –

Todos fogem quando ela passa louca
louca e louca e cada vez mais louca
puxando e arrancando seus cabelos
e cuspindo e comendo terra e chorando
desgrenhada e com um olhar feroz
a dardejar um mistério enorme de dor.

A cidade e o bairro conhecem a sua vida
desde que um filho da puta a violentou
numa noite chuvosa de fim de carnaval
no turbilhão dos frevos e dos maracatus
numa sala de espelhos onde sua imagem
ficou presa sem poder ganhar salvação.

Todos sabem o quanto ela é louca
louca e louca e cada vez mais louca
apesar de um corpo lindo e perfeito
apesar de uma boca bela e carnuda
apesar de uns olhos grandes e verdes
vive envolta em um manto de insânia.

Bairros e ruas da cidade a sabem inteira
de olhar nos espelhos das lojas e vidraças
a figura maltrapilha em roupas estampadas
de vermelho sangue e do azul das lágrimas
choradas de quando seu pai a chicoteava
ao chegar bêbado das solidões noturnas.

Todos fogem quando ela passa louca
louca e louca e cada vez mais louca
puxando e arrancando seus cabelos
rindo e chorando sua desgraça
e a dor de nada ser nesta vida
apenas uma louca cada vez mais louca.

Os espelhos e as vidraças são os amigos
da sua loucura. O mundo zomba ao vê-la:
cabelos desgrenhados e chorando e gritando
louca e louca e cada vez mais louca
pela criança nascida de seu ventre violentado
levada no vento para algum lugar não seu.

O mundo inteiro sabe o quanto ela é louca
louca e louca e cada vez mais louca
apesar de chorar infortúnios dia e noite
e gritar por ajuda a um deus que nada faz
vendo o mundo fugir quando ela passa louca
louca e louca e cada vez mais louca.

DIFERENTES – Rafael Rocha

Do livro “Abismo das Máscaras” - 2017
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É verdade, companheiro, a hora é de sangue.
Homens maus estão amarrando as vidas
e assassinando inocentes.
Os exploradores estão nas ruas
vestidos de escuridão e com o livro do caos
expondo um deus único e pronto
para matar a liberdade.

É verdade, camarada, a hora é complicada.
As livretudes estão sendo assassinadas.
Nada mais existe além de nossas forças
para transformar a noite em festa brilhante.

Temos de ter muito cuidado com os hinários
louvando o deus da mentira e seu pretenso filho.
A única verdade, camarada, está sendo morta
nos reflexos de olhos dos bandidos.
E essa verdade é o sonho de sermos
aquilo que desejamos ser
e não o que desejam que devamos ser.

Existe um chamado extremo das ruas
para sairmos desfraldando bandeiras.
Não existe outra forma de defesa
a não ser esta, camarada:
- A luta mortal pela vida de homem livre!

Sim, companheiro! A hora é de sangue!
A hora é de guerra!
A hora é de desembainhar a espada
e de fazer nascer um tempo novo
em aliança
com as multidões dos diferentes.

VINDA – Rafael Rocha

Do livro “Meio a Meio” - 1979
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Cheguei perto de vários crepúsculos
e de imensos ventos traiçoeiros
sem saber falar a verdade do amor branco.

No dia em que cheguei fui repartido
em muitas partes distintas.
Deram-me o silêncio e eu recusei.

Cheguei quando a noite
roubava territórios ao dia
e quando vozes fracas
ricocheteavam nos muros.
Deram-me uma solidão perdida e eu recusei.

De tantas outras vezes fui repartido
mas construí minha solidão própria.
Senti-me imensidade de olhos gastos.
Mãos vazias e grandes pés sem conforto.

Disseram-me que eu partisse.
Deram-me o amor gasto pelo dólar.
E então eu decidi ficar e chegar de novo
com os braços abertos
para o vento e às montanhas.