terça-feira, 6 de agosto de 2019

DEDO NA SOPA – Rafael Rocha

Do livro “Contos Delirantes com Versos em Bolero” – 2017
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Eu caminhava pelo centro da cidade do Recife.
Não tinha nada para fazer nessa quarta-feira.
Entrei pelo Cais de Santa Rita, pelo camelódromo fedorento e cheio de barracas que tornam horrorosa a paisagem.
A brisa vinda do oceano e do rio tornava o dia quente um pouco mais aconchegante.
Parei em uma daquelas barracas do camelódromo, sentei à mesa e pedi uma cerveja.
Depois de ser atendido por uma mulher gorda e morena, acendi um cigarro e tomei um gole.
A mulher gorda atendeu outra mesa, trazendo uma sopa de peixe para um senhor careca e magro.
Notei que ela estava com o dedo polegar dentro do prato, tocando na sopa.
Desviei a vista. Não era da minha conta.
Logo a seguir, a mulher gorda sentou-se quase em frente a mim, puxou um banquinho de madeira e começou a cortar as unhas dos pés, deslizando o polegar de vez em quando por entre os dedos.
Senti o fedor do chulé no ambiente.
Devido à sua redondez, ela tinha dificuldade de alcançar os dedos dos pés e quando conseguia cortar uma unha ou limpar a sujeira entre os dedos, dava um longo suspiro de alívio.
Depois que ela terminou de cortar as unhas, fez um enorme esforço para se levantar e se recompor.
Pedi outra cerveja. Ela trouxe e perguntou:
- Não vai comer nada?
Disse que não. Queria apenas beber.
- A sopa está muito gostosa. Você vai adorar. Temos sopa de carne e de peixe.
- Deixa pra lá. Quero apenas beber. Estou de barriga cheia. Almocei faz pouco tempo.
Outro freguês pediu um prato de sopa de carne e ela foi buscar.
Notei que ela estava novamente com o dedo polegar dentro do prato e tocando a sopa.
- Será que ela lavou as mãos? - perguntei aos meus botões.
Pareceu até que ela tinha escutado, como se eu tivesse falado em voz alta, porque de repente olhou para mim e sorriu, mostrando uma boca com vários dentes quebrados e alguns bem enegrecidos.
Para tapear, devolvi o sorriso de volta e então ela resolveu retornar até minha mesa, parou ao lado e perguntou:
- Não quer mesmo comer nada? Nem uma sopinha?
- Nada! - respondi.
Após receber minha resposta ela voltou a sentar no banquinho à minha frente e começou de novo a coçar os dedos dos pés, arrancando devagar a pele suja que tinha se acomodado entre eles.
Retirei a vista e resolvi ficar bebendo. Apenas bebendo e fumando e pensando nos meus problemas e no romance que estava quase a terminar de escrever. No entanto, com ela sentada no banquinho na minha frente, mexendo nas frieiras dos dedos dos pés, os meus pensamentos se idiotizavam em nojo.
Resolvi sair dali. Paguei as cervejas e me retirei do camelódromo do cais de Santa Rita.
Porém, ainda estava com vontade de beber. Afinal de contas, a tarde era longa e eu não tinha mesmo nada para fazer. Então encaminhei meu corpo até o Pátio de São Pedro, entrei no Buraco do Sargento, pedi uma cerveja gelada. A morena que me atendeu era dessas de fazer o diabo ganhar mais chifres. Linda demais. Corpo feito um violão. Pernas... Ah! Que pernas!
Ela sorriu para mim ao ver o quanto eu olhava para ela.
- Vai apenas beber? Quer comer alguma coisa?
- Depois... depois... depois... - respondi, sem tirar os olhos do corpo dela.
Fiquei a beber minha cerveja e a fumar meu cigarro, continuando a fitá-la.
Então não aguentei e a chamei:
- Como é o seu nome? - perguntei.
- Tânia - respondeu ela.
- Olha, Tânia, acho que vou tomar um prato de sopa de peixe. Tem?
- Temos sim, querido! Temos!
Enquanto esperava a sopa pedi outra cerveja e fiquei a beber.
Dez minutos depois vejo Tânia trazendo a sopa e com o dedo polegar dentro do prato a tocar a sopa. Sorri para ela. Nem quis imaginar onde ela tinha colocado o dedo polegar antes de me trazer a sopa. 
Afinal, era outro dedo e era outra mulher.

CANÇÃO AO VENTO – Rafael Rocha

Do livro “Sangramento” incluído na coletânea “Poetas da Idade Urbana” - 2013
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O vento sabe voar quando deseja
Fazer a noite fria. Fazer o dia ameno.
Sabe escarnecer nos galhos das árvores
Estacionando como se farto de voar.
Até parece uma mulher volúvel
Nos instantes onde se precisa achar
Uma pequena brisa no ar.

E ao precisar do vento a vida sua
Pelos poros com as intensidades.
O calor ferino se agarra à pele
Seja hora de sol. Hora de lua.
E a rima da poesia mais secreta
Geme ao nordeste sem vontade de ser
Tentando a aragem fria das tardes.

E um outrora sempre se faz de invasor
A abraçar minha agonia de poeta
Farto dos pesares do calor.
O ritmo do verso se entreabre
Marcado pela busca do frio
Desejando tornar-se ventania
A brincar com a futura tempestade.

Melhor deixar o sono vir
E dormir, dormir...