segunda-feira, 29 de julho de 2019

QUARTA DIMENSÃO – Rafael Rocha

Conto inserido no livro “O Espelho da Alma Janela” (2009) agraciado pela Academia Pernambucana de Letras (APL) em 1988, com o Prêmio Leda Carvalho. No ano de 1989 este foi um dentre cinco contos do autor premiados pela Fundarpe e publicado no livro “Novos Ficcionistas Pernambucanos”
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O mergulho que ele deu com todos os seus neurônios no espaço entre o real e a fantasia foi muito profundo. No princípio, não conseguiu dizer com certeza onde estava. A poeira que envolveu em círculos suas ideias convergia bem devagar para um estado de consciência contraditório. Teve ganas de fugir para outro espaço diferente, fato esse que não conseguiu realizar de forma alguma, pois se encontrava preso dentro de uma cadeia de átomos e luzes multicores quase cegantes.
Então, para concatenar com mais realidade as ideias buscou pensar, e seus olhos trouxeram visões de homens em cadeias sucessivas de átomos. Mulheres e plantas se enrodilhando ao seu redor como fantasmas.  Buscou ouvir e o sentido da audição se envolveu numa mística de deuses e demônios numa dança alegórica, secundados por divindades mais simples: gnomos e duendes num valhala particular. Buscou fechar os olhos, buscou entupir os ouvidos e as coisas se embaralharam numa torre de babel: vozes, gritos, cheiros e mais cheiros, corpos se buscando e buscando-o, multidões de pequeninos seres tentando alcançar todos os tendões imaginativos de sua alma.
Tentou descansar de tudo isso e os portões dos espaços azuis de algum lugar desconhecido se abriram para os seus devaneios e sentiu-se transportado a uma terra movediça cheirando a molhado de chuva. Abriu os olhos. Desentupiu a audição. Descobriu o paladar e o tato e pôde conseguir observar o que estava procurando desde o início da viagem.
Realmente, a terra se movia aos seus pés de forma contínua, indo e vindo, paralisando-se, para depois recomeçar a se mover. Como se existisse vida querendo sair de debaixo das raízes das muitas plantas exóticas pisadas pelos seus pés. Porém, não ficou com medo. Fascinado, olhava e sentia os movimentos da terra. O acontecimento iria ser. E sabia que sobre o fato futuro as coisas não sairiam nunca mais como ele desejasse.
Aos poucos, com o movimento de ir e de voltar, foi-se abrindo aos seus pés uma cova profunda e ele sentiu, mais do que viu, alguns braços saindo de dentro de uma caixa negra parecida com um sino. Braços a acenar pedindo ajuda para que o restante do corpo conseguisse força de ascender ao espaço ocupado por ele. Temeroso, afastou-se da visão e cruzou os braços, como temendo que seus próprios braços fugissem do corpo e saíssem ao encontro da terra em ajuda ao espectro ou espectros. Um odor de carne afetou o seu olfato e seus ouvidos puderam discernir uma inusitada voz sussurrante, longínqua, muito pouco afinada musicalmente. Não era um chamado. Parecia-se mais com o estridular de pássaro novo, despertando no ninho e pipilando a pedir comida:
Tein... Tein... Tein... Ih.... Ih… Ih...
Sua curiosidade o afetava de tal modo que resolveu sentar-se sobre o primeiro objeto: uma pedra quadrada posta bem junto à cova que se abria aos seus pés. As ilusões das cores desapareceram por completo e então ele pôde ver com mais segurança as mãos que deslizavam de dentro daquele enorme sino negro. Contou uns quatro pares, oito mãos, oito braços. Dedos que seguravam as bordas do sino, dedilhando de forma bem suave uma melodia bem parecida. No momento, não cismou que melodia era. Não estava muito bem preparado para pensar em música.
  A pedra quadrada sobre a qual se achava sentado fez um volteio e o transportou para o lado oposto de onde se achava e assim conseguiu observar o interior do sino. Quatro cabeças, cobertas por uma densa névoa negra, batiam suavemente umas contra as outras. O sino então resvalou para a direita e as mãos que o dedilhavam se uniram, parecendo que faziam um círculo em torno e ao redor das cabeças entrevistas. Aos poucos, a névoa se foi dissipando e os seus olhos se aprofundaram nas quatro visões. Duas cabeças de homem e duas de mulher, mergulhadas em um êxtase profundo como numa letargia difícil de compreender.
A pedra quadrada se moveu outra vez para a esquerda, seguindo o movimento do sino, e ele pôde ver os corpos que se apegavam uns aos outros. Todos estavam nus. Estátuas em contínuo rodízio de pés e mãos. As testas se tocando de vez em quando. Os olhos fechados num sono infinito. Os lábios a sussurrarem aquela mesma inicial voz entreouvida, como estridular de pássaro novo, despertando e dizendo sua fome:
– Tein...Tein...Tein... Ih... Ih... Ih...
Ouviu a voz da pedra vinda de perto. No início olhou para os lados a tentar descobrir quem falava. Só depois de alguns minutos conseguiu descobrir quem era.
– As atitudes estão muito difíceis para eles.
– Quem são eles?
– Os espíritos do tempo.
– Essas coisas existem?
– Você está vendo com seus próprios olhos, não está?
Ele aprofundou a visão bem lá dentro do imenso sino negro. Os seres formavam um amálgama unitário. De mãos unidas criavam um círculo entre si. A nudez não era chocante. O que chocava mesmo era a cor negra predominantes entre eles com o escarlate dos olhos a fazerem tiques bem rápidos, como crianças num pisca-pisca ligeiro contra a luz.
– Eles não são nada bonitos. São sempre negros assim?
– Ilusão de ótica. Eles são brancos. Você está vendo de seu próprio ângulo. Venha comigo.
A pedra quadrada girou outra vez e o transportou para o lado mais ermo do sino e ele viu uma espécie de luz azul ou branca (não soube precisar bem), mas era uma luz.
– Vê melhor agora? São claros. Brancos.
– Mesmo assim, ainda não consigo entender quem são.
– Os predestinados. Estão iniciando uma longa viagem. Uma espécie de voo dentro de um espaço fora do limite das nossas consciências.
– E o que significa esse sussurro?
– É a música do futuro.
– Por que você não explica melhor essas coisas?
A pedra quadrada se calou. De repente, ele sentiu-se transportado para bem perto das quatro visões e aspirou o perfume de cravos e rosas saindo de dentro do sino. As duas cabeças femininas o olharam e ele pôde ouvir:
– Uma pedra é uma pedra como uma mulher é uma mulher e um homem é um homem. O conhecimento para cada um vem da vida própria de cada um.
– O que é a música do futuro?
As duas cabeças masculinas levantaram os olhos para ele e disseram:
– Todas as sinfonias foram feitas para aglutinar as raças numa só. Todas as esperanças são filhas de uma esperança renascente. Os desejos sonhados para o bem e contra o mal. As dores da alma. As alegrias do corpo.
– Apenas uma coisa: não consigo entender a música.
As quatro cabeças se uniram outra vez umas às outras e se calaram. Somente a pedra resolveu responder:
– Se você conseguir entender a vida de todos os seres humanos, entenderá a música.
– Ninguém consegue entender a vida dos seres humanos.
– As coisas mais simples podem ser as mais difíceis. As coisas mais complicadas podem ser resolvidas num abrir e fechar de olhos. Basta que exista humanidade dentro das consciências. Isto já existe na natureza. Um beija-flor sabe que a rosa está praticamente à sua disposição e ambos se desejam. Só a raça humana não sabe o que deseja, pois a única linguagem que conhece é a da violência e da opressão.
– E o que me diz de você como pedra?
– Você já ouviu dizer que uma pedra é uma pedra como um homem é um homem. Se você compreende a si mesmo, a pedra se entende como pedra. Não adianta explicar mais.
E então, tudo aconteceu vertiginosamente. Uma explosão destroçou a pedra quadrada, seguindo-se uma densa névoa a envolvê-lo. De repente, se descobriu a voar. Não era mais como um mergulho. Algo assim para o alto, fazendo a respiração ficar cada vez mais carente. De um momento para o outro, tudo passou. Observou-se e se viu transformado em uma mulher.
Estava nua sobre uma cama imensa e vazia. Todos os bibelôs do quarto rodopiavam ao seu redor. Uma grande estátua, representando um homem com todos os atributos do macho, estava a observá-la a meio metro de distância.
Ouviu a estátua falar:
– Parece que você está de volta. Onde esteve?
– Não sei dizer – respondeu – Estava tudo muito escuro.
– E não aprendeu nada dentro dessa escuridão?
– Havia uma pedra...
– Em todos os lugares do mundo existem pedras.
– Era uma pedra muito especial.
– Aprendeu alguma coisa da pedra?
– Uma pedra é uma pedra como uma mulher é uma mulher.
– Isso não vem a ser quase nada. Olhe bem para mim. Sou uma estátua de homem e não sou coisa alguma. Além disso, vim da pedra. O que pode me dizer de você?
Ela girou o corpo por sobre a cama e se viu refletida num espelho brilhante no lado oposto. Estava realmente atraente. Olhos verdes da cor do mar. Cabelos negros e cacheados caindo por sobre os ombros. Os seios firmes realçando as curvas sinuosas dos quadris. Um triângulo mínimo de pelos acentuavam a guarita do sexo em seus deslizes de fêmea. Nádegas bem torneadas, duras e salientes. Particularmente começou a ficar vaidosa de ser o que era. Voltou-se para a estátua:
– Sou apenas uma pobre mulher descrente dos homens e do mundo. Não sei muita coisa sobre a vida e sinto que a sei bem demais. Tento me esclarecer aos poucos, mas tudo gosta de mudar de fisionomia de minuto para minuto. Que posso fazer?
– As coisas que uma mulher deseja fazer estão além do meu alcance.
– Mesmo sendo uma estátua você fala como um homem.
– Sou apenas uma estátua em formato de homem. Mas tenho sensatez. Por ter sensatez irei sobreviver por séculos.
– Todo homem sensato é covarde.
– Não acredite nisso. Quando um homem é sensato acaba sempre vencendo.
– E quanto à mulher?
– Uma mulher sabe perfeitamente bem que todos os seus atributos são armas muito fortes. Todas elas se julgam capazes de fazer tudo de necessário para exercer domínio sobre os homens.
– Você fala assim porque não possui espírito feminino.
– Todas as mulheres podem ser promíscuas. Só que algumas não encontram as oportunidades de fazer tudo que desejam. Na verdade, existem duas classes de mulheres: as medrosas e as frias.
– Acho essa filosofia obtusa. Você é uma estátua e isso se desculpa.
– As mulheres frias são assim por causa da estupidez dos homens. Toda fêmea é carente de um macho e sempre estará desejando uma aventura dinâmica, desde que haja o perfume do romance.
– Hum....
– É muito enfadonho para o homem estúpido fazer uma conquista por meio do romance. Busca o acontecimento na hora que bem deseja, sem criar o clima adequado.
– Parece razoável isso...
– As mulheres medrosas se escondem como o caramujo: dentro de uma casca. Têm vontade de criar vida nas coisas e sonham com inúmeras aventuras. Não as realizam porque têm medo do que possam dizer delas.
– E as mulheres virtuosas?
– Não existem mulheres virtuosas. Todas elas possuem amantes, seja na vida real ou na privacidade de suas mentes. Não é o homem a criar o que se chama de fantasia. A mulher também têm as próprias. Aquelas que se trancam por dentro, muitas vezes estão criando atos e ações fantasiosas com outros machos. Atos esses necessários à sua satisfação. Na verdade, nenhuma mulher liga para isso de virtudes, fidelidade, castidade, essas coisas todas, porque sabem que esses fatores servem apenas para proteger o interesses dos homens.
– E quanto à beleza numa mulher?
– Para uma mulher a beleza está justamente no fato de olhando umas às outras, competirem com o desejo de uma ser tanto mais bela quanto a outra consegue ser. Tudo isso é muito relativo.
– Você me acha bela e desejável?
– Você é uma imagem refletida no espelho e eu a imagem da pedra. Ainda está com disposição para continuar nossa caminhada?
– Caminhada?
– As quatro aves e espíritos do tempo nos deram esse prazer a partir do momento em que os vimos.
Ela se olhou no espelho e viu sua forma começar a se desvanecer. A mesma névoa anterior seguida de uma ensurdecedora explosão atroou nos seus tímpanos e novamente sentiu-se em transporte através do espaço. Dessa vez voava em círculos como um parafuso a penetrar fundamente um pedaço grosso de madeira.   
Como antes, de um momento para o outro, tudo passou e ele se viu um homem muito mais moço: adolescente entrando devagar na idade adulta. Estava numa sala de aula, cercado de outros da mesma idade, olhando um envelhecido professor a tentar ensinar como e porque a história humana reflete toda a grandeza da raça.
– Professor, como podemos acreditar na História?
– Que pergunta tola! Leia nos livros. Os livros contêm toda a história da raça humana. As guerras, as vitórias, as conquistas...
– Professor, a história não fala de amor. Fala mais de ódio.
– Você não deve se deixar levar por essas tolices. Observe que se não fossem as guerras, e o que os homens conquistaram com as guerras, o nosso mundo não estaria tão civilizado como agora.
– As guerras servem para alimentar a História?
– Quase isso.
– Também os crimes de guerra alimentam a História?
– Bem...
– E os morticínios em nome das religiões também são alimento da História?
– Eis aí alguns tópicos interessantes para discutirmos na próxima aula...
– Mestre, por que todos os homens que nos ensinam são perfeitamente dogmáticos?
– Não vejo como você possa encontrar dogmas nos ensinamentos dos professores. Os professores ensinam o que aprenderam nos livros.
– Os livros foram escritos por homens. Não estou certo, Mestre?
– Sim. Homens cultos. Filósofos. Historiadores. Geógrafos. Estudiosos da mente humana...
– Os livros não erram?
– Nunca!!
– E por que os homens erram tanto, Mestre? Se tudo que eles escrevem nos livros são para nós seguirmos, não acha que devemos fazer a coisa dentro do riscado?
– Vamos colocar tudo nos seus lugares: você é que é o aluno e eu...
– Caro Mestre, a liberdade de pensar por nós mesmos não pode ser ensinada? Devemos ser apenas uma folha em branco onde os filósofos, historiadores, geógrafos e estudiosos da mente humana possam inserir suas ideias?
– Vocês estão aprendendo...
– Aprender significa apenas decorar o ensinamento dos mais velhos? Decorar o ensinamento dos livros? E o que fazemos com as criações de nossas inteligências?..
– O mundo é cheio de perigos. Nós, os mais velhos, aconselhamos vocês a vê-los e evitá-los.
– Mestre, acredito nisso, pois vejo que todos os perigos que existem no planeta não fomos nós, os mais jovens, que criamos. Quando nascemos o mundo já estava cheio de pedras perigosas.
– Nós também fomos crianças. Nós também fomos adolescentes. Seguimos as regras dos nossos professores e...
– E como sempre querem que nós continuemos a dar continuidade ao velho sistema. Os acomodados aceitam e aqueles que não se acomodam desaparecem, não é isso?
– Uma ideia preconcebida essa...
– Mestre, é claro que nós desejamos aprender o nosso mundo. Devemos conhecer todas as pedras do mundo. Mas não acha que deve existir uma certa liberdade ao nosso aprendizado?
– Não estou conseguindo entender a até que ponto você deseja ir. Existe apenas uma dimensão para tudo que possamos aprender. Você está aprendendo e aos poucos verá que todas as coisas escritas tiveram sua razão para serem escritas e mais ainda para serem cumpridas e seguidas.
– Caro Mestre, um assunto que não se compromete à discussão não pode ser um assunto. O que está escrito, tudo que foi criado e descoberto, está impregnado de arbitrariedade. Veja bem, se A é A e B é B, se dois mais dois são quatro, se um homem é um ser humano e uma pedra simplesmente uma pedra, sabemos que isso está escrito e que seus nomes são esses. Eu não posso dizer que dois e dois são cinco. Eu não posso dizer isso hoje. Mas, se estivesse começando a inventar a matemática, poderia dizer isso de tal maneira que por todos os séculos dos séculos seria acreditado. É isso que o senhor nos ensina?
– Sou apenas um professor...
– Um professor não deve analisar o que está escrito nos livros? Um professor de hoje e que não viu a realidade histórica do ontem, não deve tentar ser mais do que um simples repetidor de ideias escritas? Não deve pesquisar?
– Não temos o tempo necessário...
– E o que dizer das nossas ilusões de adolescentes? Somos obrigados a creditar na História exatamente como as elites governantes desejam que acreditemos?
– Vamos parar com essas contestações. Tudo já está escrito e nós temos uma longa caminhada a fazer...
– Mestre, não acha que nós sejamos vítimas da História?
Um furacão penetrou pela janela e a sala de aula acabou por ser deglutida pelo poderoso vento. O rugido de mil vozes ensurdeceu seus ouvidos e sentiu-se içado por mãos firmes. Em menos de segundos estava outra vez a viajar através da densa névoa, agora num constante redemoinho dentro de labirintos insondáveis até uma madrugada fria onde se viu como soldado, vestido apenas com uma sunga em pleno pátio de manobras. Um rude militar com as insígnias de sargento olhava para as fileiras de homens quase nus, perfeitamente rígidos sob o frio da madrugada.
– Perfilados! Sem movimento! Quem mover um só músculo será feito prisioneiro a pão e água por três dias.
Todos continuavam rígidos.
– O inimigo nos espreita a todo instante. Por todos os lados. Até debaixo das nossas camas. Temos de estar preparados para o ataque. Firmes. Sem medo. Somos soldados.
Ele pensava com nitidez e até tinha medo que seu pensamento fosse ouvido: “Para qual ataque me preparar? Quem é o inimigo? Se eu sou um soldado por que devo ficar no frio?”
– Ordinário! Todos em marcha! Meia volta, volver!
“Estou morrendo de frio. Estou com medo. Não consigo entender esses movimentos. Tudo isso é para me defender ou defender quem? Onde vim parar, meu Deus! Tudo isso é loucura e eu não sei como possa me defender. Será que alguém virá me matar um dia?”
– Vocês são soldados! A fortaleza da pátria! Vocês devem estar sempre prontos para o ataque. O inimigo está quase ao nosso lado! Ordinário! Marchem!
“Para que serve um soldado? Para que é pago um soldado? O que é a pátria? Quem são os donos da pátria? Quem pode pagar a vida de um soldado?”
– Vocês estão numa guerra, ouviram? Por estarem numa guerra devem obediência total aos superiores. Olhem todas as insígnias.Os soldados não pensam. Obedecem.
“Ele se transforma a todo instante. Agora é um capitão. Já foi tenente, mas antes era apenas um sargento dando ordens. Será que as insígnias tornam as pessoas diferentes, assim com o rei na barriga? E essa autoridade de sua voz de comando? Por que a autoridade sempre sobe à cabeça e comete tantos desatinos?”
– Descansar! Cinco minutos para descanso!
“Depois deste aprendizado, o que irão fazer comigo? Não serei então um soldado? Não estarei pronto para defender a minha pátria? Mas, o que é a pátria? A pátria é do povo ou é do Estado? E os interesses do Estado estão acima dos interesses do povo? O soldado deve ser fiel aos interesses do Estado ou aos interesses do povo?”
“Depois de conhecer as coisas ensinadas pelos superiores, vejo o inimigo em todos os rostos. Por que os meus superiores me enviaram para guardar os cofres dos banqueiros e dos milionários? Por que os meus superiores me dão ordens para despejar essa gente humilde de algumas terras vazias e sem dono onde misturaram suor e sangue para sobreviver? Foi para isso que fizemos o aprendizado de soldados?”
“Nem temos cabeça para pensar ou responder às nossas próprias perguntas, pois nossos membros fazem parte de um círculo de ordens estritas. Somos carne para canhão. Apenas isso. Somos instrumentos de uma elite dominante, que reduz desde séculos todos os homens do planeta às suas ideias. Dizem que somos soldados e temos que acreditar nisso. Nossos revólveres e fuzis, nossas bombas de gás, cassetetes, estão sempre disponíveis para defender a elite contra seus grandes inimigos. Quais serão esses grandes inimigos?”
– Ordinário! Marchar! Hoje é proibido pensar! Meia volta, volver!
Uma granada de mão explodiu aos seus pés e um forte odor de pólvora invadiu suas narinas. Estava indo outra vez e no meio do turbilhão que chegava ele ainda não sabia qual a próxima e última imagem do espírito do tempo a possuí-lo. Não sabia o formato, pois dessa feita a viagem parecia mais curta do que as outras. Nuvens escuras e brancas e azuis envolvem seu corpo. Um vento frio agita suas asas...
Um pássaro? No entanto, sente o seu pensamento como de um ser humano. O mesmo mergulho inicial que deu com todos os seus neurônios no espaço entre o real e o fantástico começa a absorvê-lo. O seu estado de consciência deixa-o atônito e observa que está voando sobre uma planície completamente negra.
Onde as árvores? Onde os animais? Onde os rios? Onde as cidades com os seus habitantes?
Bem longe, lá no horizonte, um vulto de mulher abre os braços para o firmamento. Na verdade, nem sequer está viva. Apenas observa a si própria no voo do pássaro.
Mais adiante ele vê uma cidade feita de ferros retorcidos. Mãos e braços, pernas e pés, cabeças e olhos rastejam pelas cinzas da destruição, separados dos corpos que jazem mais além, emparedados entre as ruínas. Um soldado caminha empunhando um fuzil, empertigado e rígido como uma estátua, procurando o inimigo.
Um prédio cinzento recheado de prateleiras, cheirando a mofo e lá dentro um adolescente a ler páginas e páginas de livros, buscando a verdadeira História. De vez em quando escreve algo num pergaminho endurecido pelo passar dos anos. Seus olhos se acendem com a chama da loucura do pesquisador e nem sequer observa que as horas da próxima noite irão trazer a resposta final a todos os seus estudos. Como se adiantasse alguma coisa tudo isso...
Um pássaro?..
Se ele é um pássaro onde está o seu ninho? Nem mesmo sente essa necessidade de achar o ninho, pois tudo que se apresenta diante do seu voo, demonstra ser ele mesmo o ninho da espécie. E o seu voo? Para onde o leva esse voo?..
Tein... Tein... Tein... Ih... Ih... Ih…
Como conseguir entender a música do futuro? As coisas são muito limitadas para a imaginação de um pássaro.
Pode ser que tudo seja uma simples ganância de viver e sentir a vida como possuindo asas para mergulhar ao vento. Na verdade, essa fome de pássaro novo está enraizada lá bem dentro de sua alma. Todas as sinfonias foram feitas para aglutinar as raças numa só. Não é preciso entender a música. Esse é que é o mistério. Por que apenas não senti-la? Por que apenas não ouvi-la?
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Pela manhã, ao acordar, sentiu o pênis duro como pedra. Viu ser tarde o suficiente para enfrentar de novo à vida. Levantou-se, pôs a toalha sobre os ombros e saiu do quarto. No banheiro, urinou com vontade. Depois, escovou os dentes, tomou um demorado banho e sentiu fome. O café da manhã constou de um pão dormido e um copo de leite.
Saiu de casa e se preparou para enfrentar o cotidiano. Uma grande leva de homens e mulheres esperava o transporte para o trabalho. Ele não estava com pressa. Ainda era cedo. O céu estava azul. O sol começava a esquentar. O cheiro do orvalho era pronunciante. De repente, tropeçou numa pequena pedra quadrada e soltou o primeiro palavrão do dia:
- Puta que pariu! Que merda! 
Ele era apenas um homem sozinho...

INSTANTÂNEO NO BAR – Rafael Rocha

Do livro “Marcos do Tempo” - 2010
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Quando ela entrou no bar os homens acordaram da bebida
Perplexos passaram os olhos por todas as linhas do seu corpo.

Gestos invisíveis de sonhos em volúpia a homenagearam.

Quando ela entrou no bar, a vida abriu portas e janelas e garrafas.
Copos tilintaram, mãos sorriram,
As almas deram-se graças totais e dinâmicas.

O garçom atendeu-a solícito como pôde
Fazendo dos olhos lentes objetivas para sentir a substância da carne.
Uma cerveja. Um cigarro. Um enredo moreno.
Um meneio coxas/pernas/seios/olhos/lábios e convites incertos.

Ao sair do bar manto e roupa de rainha deu-lhe o vento.
A lua iluminou todas suas perfumadas e sinuosas reentrâncias.
Os automóveis deslizaram de mansinho pelo asfalto.

Quando ela saiu do bar tudo lá dentro adormeceu em outro silêncio:
Os copos calaram os cristais.
Os homens tornaram-se falaciosos.
E o garçom resolveu beber uma meiota de cachaça.

ELEFANTES BRANCOS MATAM MARIPOSAS (II) – Rafael Rocha

Do livro “Contos Delirantes com Versos em Bolero” – 2017
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Joel ainda não estava acreditando que poderia sonhar outra vez com os grandes elefantes brancos.
E voltando a ter esse sonho, ele continuava a segurar a pistola Derringer e a tentar levar o cano até o ouvido direito, tentando criar uma forma de desaparecer no mundo.
Descobriu então que era uma das mariposas.
E nos caminhos das mariposas existiam os grandes elefantes brancos.
Não eram muitos, mas suficientes para assassinar todas as formas de voos lúcidos em busca de melhores rumos.
Assim ele notou que uma nova e misteriosa doença mental começava a se propagar em todos os ambientes do planeta.
Pessoas saíam às ruas vitimadas por esquecimentos dos tempos de exceção, pensando mais em si mesmas do que nos outros, abandonando a solidariedade e enterrando na vala comum os direitos mais representativos da raça humana.
E nos voos das mariposas existiam os elefantes brancos.
Eles estavam prontos para assassinar as mariposas sob as luzes brancas de seus corpanzis.
Os elefantes sabiam que as mariposas buscavam um lugar nesses caminhos, voejando e criando ações a favor dos fracos.
Os elefantes brancos, com suas grandes trombas, sugavam e sugavam a força de milhões de mariposas, propagando através dessas grandes trombas ideias retrógradas e da época de quando a humanidade tentou se livrar de seus maiores assassinos.
Ao acordar, Joel ficou novamente ensimesmado.
- Voltei a sonhar com os elefantes brancos! - disse ele para a esposa, durante o café da manhã daquele domingo.
- Você precisa é parar de beber vodca! Isso pode ser início de delírium tremens, querido!
- Nada a ver! Nada a ver! E as mariposas, que eram suas, também vêm ao meu sonho e agora são sugadas pelas trombas dos elefantes brancos.
- Você está com cismas por causa de sonhos! Sonhos são meras ilusões!
- E o médico também retornou no meu sonho. Ele disse que eu posso ficar curado do câncer se acreditar na força dos elefantes brancos e esquecer o voo das mariposas.
- Cismas! Cismas! Acho que você precisa mesmo ir a um analista, querido!
- Você não sonha também? Qual seu último sonho, mulher?
- Nada demais! Muitas luzes brilhantes no caminho. Eram tantas luzes que eu ficava ofuscada e não via nada mais a um palmo do nariz.
- Interessante isso! Muito interessante! Nada de mariposas no sonho?
- Nada! Não vi mariposa alguma no meu sonho! Apenas luz! Muita luz!
- É aí que está o problema. Luzes matam mariposas!
- Lá vem você com essa história de novo! Explique então por que os elefantes brancos não apareceram dessa vez para opinar sobre meu sonho.
- Os elefantes brancos, querida, eu acho que são as luzes que cegam!
- Você tem explicação para tudo, meu bem!
- Não estou tentando explicar nada, mas a verdade é que as mariposas morrem quando ficam ofuscadas pelas luzes. Creio que depois elas renascem em outras dimensões mais livres e com menos luzes falsas.
- Agora você está a filosofar, querido!
- Nem muito nem pouco. Os elefantes brancos enviam luzes fulgurantes para matar as mariposas que fogem da escuridão, mas não imaginam que fazendo isso obrigam as mariposas a renascer em maior número e a entender melhor essas falsas luzes.
- Como é que você sabe disso? 
- Porque agora eu sou uma mariposa renascida! E odeio elefantes!