domingo, 7 de julho de 2019

RECIFE PLANTADO – Rafael Rocha

Do livro “Marcos do Tempo” - 2010
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O Recife se planta nas águas
Nos olhos dos homens
Nas mãos de crianças maduras
No seio da fome
O Recife se planta nas ruas
De raízes sedentas
Em mulheres famintas de sonhos
Regados a luzes mortiças

Ruas paralelas à morte
E desiguais à vida
A cidade dorme e acorda
Faminta de ilusão
Águas, areais, mangues
Do alto da Sé de Olinda
Vicejam catacumbas

O Recife nascemos nas noites
Mais cruéis que os dias
Nascemos o Recife nas entranhas
Do buraco no mar
O Recife vivemos nos ares
Sombrios feiticeiros
Dos velhos fidalgos
Nassovianos ou portucales

Os homens fazem fria a cidade
Quente a fazem as mulheres
Mornas as mãos infantis
Dão a fé e a esperança

POEMA DO MEDO – Rafael Rocha

Do livro “Farol” – 2019
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O poema a se escrever nos dias de agora
é repleto de gritos e de mortos vivos.
É o poema das balas de borracha nas faces.
É o poema de corpos estirados na lama.
É o poema dos cacetetes.
É o poema das algemas.
É o poema vomitado.
É o poema cuspido.
É o poema rastejante.

O poema a se escrever nos dias de agora
já começou a ganhar suas letras redondas
nos corpos dos miseráveis e dos esfomeados
e no grande câncer a devorar as entranhas
de homens, mulheres, crianças e não-nascidos.

O poema a se escrever nos dias de agora
não é metafórico nem é uma parábola.
O poema a se escrever nos dias de agora
é o poema do medo adjacente ao terror.

A MENINA DOS AMENDOINS – Rafael Rocha



Conto inserido no livro ‘O Espelho da Alma Janela” ( 2009) agraciado pela Academia Pernambucana de Letras (APL) em 1989, com o Prêmio Leda Carvalho
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Seu maior desejo quando saiu do cinema, às 17h, foi o de beber diversos copos de cerveja. Não estava com pressa. Sem ter mais o que fazer nessa sexta-feira, queria curtir os últimos horários de sol, vendo os transeuntes a retornar do trabalho. Gostava de ver/sentir os movimentos da cidade na algazarra infernal de fim de expediente. No primeiro bar que encontrou mais ou menos vazio, ele entrou, sentou-se e fez o pedido ao garçom.
Os olhos ainda estavam irritados com as luzes da sala de projeção. Lembrou que tinha de consultar o oculista. Não devia adiar mais essa decisão. Quanto ao filme, achara bom. Era um fanático pela sétima arte e sempre sabia escolher os filmes. Gostava de assisti-los desacompanhado, pegando a sessão no início. Atualmente, ficava chateado e nervoso com as pessoas que iam às salas de projeção. “Uns bárbaros! Devia existir uma lei para impedir essa corja de entrar nos cinemas. Puta merda! Se querem fazer algazarra, por que não ficam na rua e, na pior das hipóteses, na sala de espera?”
A garota vendendo amendoins o interpelou quando ele estava acendendo o cigarro. Com um aceno de mão deu a entender que não queria comprar nada. Nem sequer olhou para ela. A pobreza existente nas ruas fazia com que ele ficasse bastante aborrecido. Por que isso? Como não tinha consigo a solução para um problema assim, melhor deixar a vida seguir o seu curso.
Ao sorver o terceiro gole da cerveja, a garota o interpelou outra vez: “Moço, compra um! Compra?” Ficou chateado. A menina o olhava fixamente. Nem triste, nem alegre, nem coisa nenhuma esse olhar. Não cedeu. Repeliu a oferta com um gesto de enfado. A garota o cutucou no ombro, insistente. “Compra, moço. Compra um só, moço”.
“É teimosa”, pensou. O garçom apareceu e com um safanão espantou a pequena vendedora de amendoins. “Não incomode o rapaz, sua vagabunda!” No olhar da menina o desapontamento. Ele procurou não fitá-la. Desviou a vista para uma minissaia amarela cobrindo/descobrindo um par de coxas roliças transitando do outro lado do bar. Sentiu o perfume da mulher. Dentro de si o excitamento do macho. Ainda escutou a garota pedir, lacrimosa: ‘Por favor, moço. Compra um!”
Começou a recordar as coisas que tinha feito durante o dia. No trabalho a discussão com o chefe do escritório por causa de um pequeno erro na contabilidade, facilmente consertável. A primeira cerveja acabara. Pediu outra e, enquanto esperava, acendeu mais um cigarro. Um pouco distante, a menina dos amendoins continuava seu trabalho junto aos outros ocupantes do bar. Alguns compravam, outros não. Ele viu um homem, aparência acima de sessenta anos, comprar dois sacos e, nos breves instantes em que a menina contava o dinheiro recebido, ele ficava bolinando, com os dedos se infiltrando por baixo da saia puída e curta. Ela não ligava. Demorava na contagem do dinheiro. O homem falou qualquer coisa ao pé de seu ouvido. Ela balançou a cabeça negativamente. Ele trancou a cara e, em um gesto estúpido, a empurrou para longe.
O garçom trouxe a segunda cerveja e encheu o copo. “O senhor viu a coisa?”, perguntou baixinho. “Ela é assim mesmo, sabe? Tem apenas 13 anos, mas entende muito bem o que esses tarados querem”. Ele olhou o garçom sem sorrir e este, ao ver que seu palpite não tinha agradado ao freguês, também fechou a cara e foi atender a outro cliente. Voltando o olhar para a direita viu a minissaia amarela sobre as coxas roliças. Levantou a vista e seus olhos encontraram a fisionomia cansada de uma prostituta bebendo com um velhote. Tentou criar para si próprio uma digressão filosófica sobre a vida e viu que em um ambiente assim isso não era possível. Deu uma longa tragada no cigarro e depois bebeu um grande gole de cerveja.
“Compra um saquinho, moço?..” A menina estava outra vez a seu lado, aproveitando que o garçom atendia na outra extremidade do bar. Ele olhou para ela. “Compra, moço?” No sorriso alguma coisa indefinida e implícita tentava fazer com que ele se imiscuísse no mistério. Olhou mais detidamente para ela. O vestidinho - curto e roto - cobria um corpinho já bem torneado de menina-moça. Os dois seios pequenos com os mamilos grossos apontando, endurecidos, sob o tecido barato. Ela marcava seu olhar como acreditando que agora ia fazer negócio. Pegou dois saquinhos de amendoins e colocou sobre a mesa. “Depois eu volto pra pegar o dinheiro”. Escapuliu, logo em seguida, ao ver o garçom se aproximando.
“Saia daqui! Já falei para não incomodar o rapaz!” Ele fez um gesto para o garçom. “Não faz mal. Ela não está incomodando. Deixa...” O homem olhou para ele. Virou o rosto mostrando seu péssimo humor, para depois voltar a olhá-lo de novo. Sorriu irônico como a querer dizer que compreendia. “Sei... Sei... Tá certo”.
“Mas que diabo esse filho da puta está imaginando?” Será que me acha igual aos outros? Esse mundo é um inferno. Não tem jeito. Tudo na base da safadeza. Merda!” Pensou em sair dali. Bastava pagar a conta. A cidade tem muitos bares e ele não precisava se preocupar em ficar nesse. Ia pedir a despesa, quando a menina apareceu outra vez. “Vai comprar, não vai, moço?”Ele resolveu satisfazê-la. Colocou a mão no bolso, retirou a carteira e procurou ver se no meio de todas aquelas notas de elevado valor tinha algum trocado. Sentiu a carne macia de uma das coxas da menina roçando no tecido de sua calça jeans. O bico de um dos seios dela se apertando contra seu ombro. “O moço é bonito. Vai comprar, não vai?”Olhou para ela bem dentro dos olhos. Estava quase colada nele. Sentiu como ela pressionava o ventre contra seu joelho. Olhou para os lados. Ninguém estava a observá-lo. Nem o garçom por perto. A garota sorria abertamente.
Entregou o dinheiro em moedas. Ela as pegou e começou a contá-las. O vestido curto cobrindo os joelhos dele. Uma saliva quente em sua boca. Libido a se excitar. Deixou os dedos deslizarem pela carne macia da coxa direita dela. Subiu com eles até alcançar carne úmida. Completamente eriçado de desejo começou a acariciar suavemente a pele macia por baixo da saia, entre as coxas. Sentiu o sexo dela umedecido a se retrair e depois deixar que seus dedos seguissem adiante. “O moço também quer isso? Quer também?” A voz tinha saído baixinha, bem no pé do seu ouvido. Retirou a mão. Olhou outra vez em volta. Com a chegada da noite e as poucas luzes iluminando o bar, ninguém estava observando. “Será mesmo que não viram nada?”, se inquiriu, temeroso.
“Moço, vou até aquela praça. Você vai?” Ela disse isso muito séria. Ele a observou. Os olhos dela nos dele mostravam um interesse fora do comum. Um sorriso. “Prometo que vai ser bom”. Quase um sussurro o convite. Ficou observando a menina se afastar. Olhou para os dedos de sua mão direita, ainda úmidos da reentrância dela. Levou os dedos ao nariz e cheirou devagar, um por um. O odor suave da ninfeta envolveu seus sentidos de homem adulto. “Porra! Posso fazer isso? Posso mesmo fazer isso?”
Como ele podia responder a sim mesmo? Resolveu sair daquele lugar. O que tinha a fazer ali? Principalmente, agora, vitimado por essa febre ardente, a roer suas entranhas. “Puta merda! É cada uma que me aparece!” Chamou o garçom e pagou a despesa. A mulher de minissaia amarela ainda estava sentada junto ao velhote. Ele agarrava sua bochecha e a lambuzava de beijos e lambidas. Pôde ver a dentadura postiça da mulher caindo dentro do copo de cerveja. Risadas obscenas depois disso.
Saiu caminhando pela avenida. Sua carne estava como a queimar em brasas. A cabeça latejando vítima de um desejo infernal. Tentou por todos os meios possíveis viajar o pensamento no filme a que tinha assistido. Conseguiu apenas tornar mais latente o desejo.
Quando menos esperava, se viu na praça que a menina dos amendoins indicara. Na penumbra de início da noite pôde ver a garota encostada num dos pés de flamboyant, o saco de amendoins no chão de terra. Ela sorria para ele. Sorriu também. Aproximou-se. Sentou a seu lado. A pequenina mão dela deslizou para dentro de sua calça. Os dedos dele começaram a acariciar os pequenos seios. 
De repente, o seguraram por trás. Uma navalha encostada firmemente em seu pescoço. Três meninos começaram a esvaziar os seus bolsos. Jogaram ele no chão e o obrigaram a ficar deitado. “No bolso de trás! No bolso de trás!”, escutou a garota falar rápido. Tentou reagir contra seus pequenos captores. Sentiu o fio afiado da navalha rasgando sua garganta. Depois, entre as costelas. Arregalou os olhos ao ver a menina dos amendoins levantando contra ele algo parecido com um cano de ferro. A pancada na cabeça não trouxe, como ele imaginou na ocasião, uma dor muito lancinante. Foi mais como se estivesse mergulhando em um precipício sem fundo. Uma luz. Muitas luzes. Depois, a escuridão.

A ÚLTIMA DAMA DA NOITE – Rafael Rocha – Primeiro Capítulo

Do livro homônimo lançado no ano de 2002
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O forte cheiro de madeira queimada entrou pelas frestas das janelas dos pouquíssimos, velhos e decadentes puteiros da Rua da Guia, exatamente quando o farmacêutico Samuel Santos acabava de sair de um dos quartos do prédio de nº. 115, abotoando a braguilha, depois de humana fabricação sexual com uma das afilhadas de dona Didi do Orlando.
De repente, como se tangido pelo vento, o cheiro mudou de mato verde em chamas à madeira seca de fogueiras de São João. A seguir, deu-se a penetrar nas narinas com um odor de almíscar a incenso, de palha de milho a papel velho de jornal, para, a seguir, dar vez a um cheiro mais parecido com o da naftalina.
Parecia que centenas de fantasmas começavam a voar dentro do ar frio daquele fim de madrugada.
Nos quartos escuros dos antigos e velhos puteiros e pensões, as prostitutas se enrodilhavam com os fregueses e as madames discutiam com seus gigolôs, sem imaginar que pelos ares do Bairro do Recife acontecia o fim de uma era.
Dona Biu, lá nas distâncias da Rua da Aurora, enrolada em jornais velhos, quase ao lado do mais do que afamado prédio da Sorbonne (que falem dele os mais velhos homens e mulheres recifenses), sentiu-se prenhe do fato consumado.
Em um átimo, acocorou-se, pondo o corpo encostado à parede e viu a fumaça branca (e as outras cor de cinza que se lhe seguiram), espalhando-se por sobre as pontes, quase a tocar as águas do Capibaribe.
Os olhos de dona Biu observaram com calma o comportamento da fumaça branca que, vinda da área portuária, escoltada por outras de variadas cores em tom cinza, gerava um nevoeiro fantasmagórico sobre os rios e as pontes da Veneza brasileira.
Levantou-se, e, ajeitando no corpo as vestes maltrapilhas, pôs a tiracolo uma velha bolsa de couro e atravessou a Rua da Aurora, indo até as margens do rio.
Na iluminação do dia nascente, ficou a olhar o toque brumoso da fumaça na água e o seu envolver as construções, quase a cobri-las num estranho nevoeiro.
Descobriu-se a chorar.
Exatamente no momento em que as duas tonalidades de fumaça se enovelaram numa só, trazendo o odor de perfumes estranhos e exóticos, dona Biu começou a debulhar lágrimas de há muito esquecidas.
Quando a fumaça a encobriu por completo, ela pensava na madrinha Maria Rosa.
Observou-se menina de quinze anos, recebendo abrigo na pensão da Rua Vigário Tenório naqueles idos de 1946, sendo iniciada nos maneirismos das putas, nos fingimentos sentimentais de amores fugazes e sonhos passageiros, em troca de algum dinheiro para sua sobrevivência.
Parou de chorar. Um sorriso aflorou nos seus lábios quando as reminiscências se fizeram mais fortes. Assim, dona Biu notou ser chegada a hora de agir. Com passados rápidos, seguindo a luz do dia a clarear as ruas do Recife, dirigiu-se à igreja matriz da Conceição dos Militares, na Rua Nova.
Lá chegando, persignou-se em frente ao altar-mor e dirigiu-se ao confessionário.
Era o início do último dia do ano de 1986 e o padre Luiz Ferrari já se encontrava pronto para receber, escutar e perdoar os pecados do seu rebanho.
O religioso sentiu - mais que ouviu - os joelhos de alguém se dobrando ao lado do confessionário e, afastando a cortina, vislumbrou o rosto macilento e envelhecido de Severina Amor, olhando-o do outro lado.
Surpreso com a presença da mulher, mas muito bem compenetrado das suas funções de sacerdote, o padre agiu com rapidez, benzendo-a com o sinal da cruz e inquirindo:
− Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo! Quais os teus pecados, minha filha?
A voz de dona Biu estava bastante trêmula ao responder:
− Madrinha Maria Rosa tá morrendo! Vim cobrá  a  promessa que o sinhô fez a ela naquele dia.

PRELÚDIO – Rafael Rocha

Do livro “Meio a Meio” - 1979
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É meia-noite e estão tantos ao meu lado.
Muitos riem e esvaziam os copos.
Tratam de frivolidades
e não vale a pena falar do tempo.
Eu fumo meu cigarro.
Eu olho para todos. Espero...
Todos são provisórios
e em todos não haverá indestrutibilidade

É meia-noite...
Como acho amarga
essa madrugada depressiva!
Saudades de coisas nunca feitas noutros dias.
Angústia de ter sido trêmulo no perigo.
Áspero na quietude do vento.

Tentei enclausurar nas mãos a verdade
para amigar-me com os homens.
Infelizmente, a fome andava nas cercanias.
O mundo estava desordenado.
E assim que passou o tempo
eu pereci e nós perecemos
e não escapamos do poder dos patrões.

Eu podia pouco com isso.
Eu preferia não ser eu.
Penso que preferia.
Tanto porque escolhi a não violência.
A justiça e a alegria
e o sol e a paciência...
Mas era pequeno o meu limite
e quase tudo ficava tão longe...
Longe dos nossos pés desesperados
e perto de nós só a revolta
e os carrascos e a fome.

Desculpem-me vocês: eu não tive forças.
Prepararam errado o caminho da nossa realidade
e eu não pude ser o outro que tantos queriam,
Ainda quero que os objetivos pequenos
continuem na penumbra
e que todos esqueçam essas futilidades.
Eu quero todos rindo e esvaziando os copos.
Não vale mesmo a pena falar do tempo sem sol

É mais de meia-noite...
Fumando eu espero...
Não adianta falar das nossas fraquezas
se o governo da pátria acaricia assassinos.