quarta-feira, 3 de julho de 2019

OLHOS ABERTOS PARA A MORTE – Rafael Rocha

Primeiro capítulo do livro homônimo lançado no ano de 2012 – Agraciado com Menção Honrosa pela Academia Pernambucana de Letras (APL) – Prêmio Vânia Souto Carvalho (2011)
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Há algum tempo vinham tentando fechar seus olhos, mas eles teimavam em continuar abertos. Terminaram desistindo e puseram um lenço sobre eles que, arregalados, fitavam o teto da casa. Escutou um choro contido. Risadas tristes. Sons de passos chegaram aos seus ouvidos. Cheiro de flores. Muitas flores.
Os olhos se arregalavam cada vez mais. Descobriu-se, portanto, em um caixão apertado com o corpo coberto por flores dos mais diversos tipos, vestido com sua melhor farda de oficial do Exército brasileiro, mãos cruzadas sobre o peito. “Não adianta, dona Expedita, não adianta! Os olhos dele não fecham mesmo!”, escutou uma voz conhecida a falar o nome de sua mulher. “Está morto! Mortinho da silva!”, disse alguém que ele não atinou quem fosse. “Tá morto! E bem morto!” uma voz rouca e gaguejante de algum homem idoso.
Tentaram fechar seus olhos novamente. Baixaram as pálpebras com força. Era uma mão calosa e grossa. Ele não gostou do toque dessa mão. Apesar da força feita para fechar seus olhos, eles continuaram abertos. “Desgraça! Não consigo fechar os olhos dele!”, novamente a voz gaguejante. Escutou a mulher soluçar. Não estava conseguindo mover um músculo. Sabia que estava vivo. Por que não chamavam um médico para observar que ele estava vivo? “Porra! Eu tô vivo! Porra! Tirem-me da merda deste caixão! Eu tô vivo, gente!”, tentava gritar, mas nenhum som chegava aos seus lábios. O corpo estava rígido. Gelado. Duro. Sentiu o bafo de alguém sobre si. Tentou reconhecer quem era. O odor que chegava às suas narinas era conhecido. Algo quente caiu sobre sua face direita, deslizou sobre sua boca. O sabor era salgado. Uma lágrima.
Forçou o corpo a responder aos impulsos do cérebro. Nada aconteceu. “Se morri, por que não me fizeram uma autópsia? Ao menos ficava morto de uma vez”.  Lembrou-se de ter dito à mulher Expedita que quando morresse não desejava ser dissecado por bisturi algum. Que ela desse um jeito, falasse com o médico da família e pedisse o atestado de óbito com a causa mortis, sem necessidade de passar por uma autópsia. “Então, é isso. É isso!” Os olhos viam apenas o teto branco da casa e a luz baça da manhã a entrar por uma das janelas. Sentiu cheiro de velas acesas. O odor das flores começava a incomodá-lo.
“Ai, meu Deus! Por que ele não fecha os olhos?”, escutou. Viu a face enrugada de Expedita a fitá-lo. Tentou forçar algum músculo do corpo para ela notar que ele estava vivo. Sem sucesso. Depois, o rosto do médico da família apareceu na sua frente. “Isso se chama retrocessus cadavericus rigidus”, disse ele. “Acontece muitas vezes antes do corpo ficar teso. Depois de enterrado os olhos fecham facilmente”. Sentiu ganas de pular do caixão e ali mesmo estrangular o médico. “Filho da puta! Não tenho nada disso! Não estou morto não! Estou vivo, porra! Estou vivo!” Nenhum dos seus pensamentos foi concluído pela voz. Continuou inerte, rígido e de olhos arregalados, abertos e a fitar o teto branco da casa.
Dois minutos passados. A mente sentiu a realidade da situação. Ia ser enterrado vivo. Estava em estado cataléptico e ninguém notava. Começou a xingar mentalmente o médico. Nunca imaginara que ele pudesse ser tão ignorante em matéria de defuntos. “Tenho que dar um jeito. Preciso dar um jeito nisso. Não posso deixar que me enterrem vivo”.
Descobriu que o que lhe restava era o cérebro. O cérebro estava a gorgolejar pensamentos para lá e para cá. A vivacidade do seu cérebro começava a incomodar o resto do corpo. Tentou dar ordens ao cérebro e descobriu ser impossível. Ele tinha entrado em trâmites de reminiscências ao descobrir o quanto estava próximo de ser enterrado vivo junto com o corpo inerte e desobediente aos seus impulsos.
Depois desses minutos, o corpo era ele. O cérebro uma personalidade totalmente diversa. Não tinha mais raiva de nada. O comando dos impulsos neurais começou a ser atraído cada vez mais para dentro de suas células mentais. O cérebro estava com medo. Os pensamentos entravam em conflito, turbilhonavam. Como bolas de bilhar batiam uns contra os outros. E recordavam....

DESAFIO HERCÚLEO – Genésio Linhares

Prefácio do livro “Olhos Abertos para a Morte” de Rafael Rocha – Lançado no ano de 2012 – Livro agraciado com Menção Honrosa, prêmio Vânia Souto Carvalho pela Academia Pernambucana de Letras (APL) em 2011
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Falar em poucas linhas sobre este romance de Rafael Rocha é um desafio hercúleo, devido às riquezas político-ideológicas, históricas e sociais em que foi concebida esta ficção. Uma ficção mesclada com fatos históricos dramáticos e trágicos descritos um pouco antes, em plena ditadura militar e em alguns anos posteriores, tendo como cenário geográfico principal, o Recife e algumas cidades circunvizinhas, devido a situações singulares, mas não menos importantes e interligadas aos acontecimentos da trama. Podemos arriscar e afirmar que Olhos Abertos para a Morte, de Rafael Rocha – o que não gostamos muito de enquadra e rotular – tem características do Realismo e do modernismo.
O personagem principal – o capitão Fernando Clemens – é concebido com uma unidade de personalidade e caráter tão imutável, que lembra Carlitos, de Chaplin, no período dos filmes mudos, onde o personagem era sempre o mesmo, as circunstâncias e peripécias é que variavam. Claro que são personagens diametralmente opostos. Carlitos provocava o riso, devido ao ridículo, à pobreza e ao patético do personagem, mas a intenção profunda de Chaplin era, antes de tudo, mostrar um ser humano frágil, mas que conseguia burlar o sistema.
Como expressa muito bem Evaldo Coutinho na sua Imagem Autônoma ou Teoria do Cinema, Carlitos nesse período tinha uma carga ontológica, exatamente por manter a sua coerência de ser e não mudar nunca o seu modo de ser. Enquanto aqui, Fernando Clemens representa e simboliza o poder dominador e repressor para salvaguardar o sistema contra toda e qualquer ameaça socialista e/ou comunista. Há, também, uma unidade ontológica e tanatológica latente no protagonista. Ele, para o mundo, estava morto. No entanto, ele, o protagonista para ele mesmo, na visão do autor, que constrói todo o enredo, a partir da ótica de Fernando Clemens, não estava propriamente morto, mas tinha sofrido um ataque cataléptico que o deixou totalmente paralisado e sem batimentos cardíacos.
Um único fato curioso, intrigante e muito tênue interligava-o existencialmente a este mundo, ele continuava com seus olhos abertos, apesar de todas as tentativas de quererem fechá-los. Assim, dentro do caixão, o autor desenvolve todo o enredo do seu torturador, a partir da subjetividade deste, dentro de um estilo de flash backs. Portanto, o torturador, imóvel, revive a sua existência, desde a infância à fase adulta. E é aqui também que vamos encontrar outras diferenças ontológicas quanto ao personagem Carlitos. A infância de Fernando Clemens é bastante diferente da fase adulta, por um aspecto. Naquela fase, Clemens ainda não era torturador, mas recebia uma educação militarista espartana e extremista de um pai também militar e obcecado. Clemens era um agente passivo que estava sendo moldado para ser um soldado intrépido e imutável, tanto para as suas ações futuras, como para os valores morais, éticos, religiosos e político-ideológicos.
Na fase seguinte, quando se torna um soldado propriamente dito e agente preparado para ser um perseguidor, torturador e assassino de muitos presos políticos, ele faz jus à toda formação que teve a a põe em prática. Eis assim, a diferença, e a semelhança pela coerência infalível deste personagem que não foge ao seu destino de ser. Mantém-se fiel até o fim de sua via, perseguindo os “inimigos” do sistema.
Como todo romance que se preza há envolvimento amoroso. Até os brutos amam. Fernando Clemens, apesar de ser, psicologicamente, uma pessoa profundamente conturbada e ter desenvolvido o seu lado mau, vingativo e perverso e um soldado espartano manietado do e para o sistema, teve dois amores. Primeiro, Vera Lúcia. Um amor de infância e de colégio, mas que depois foi reprimido por razões estratégico-militares. E, um segundo, com Expedita, mais afeita aos seus propósitos e pertencente a uma casta militar, pois era filha de um influente general. Um amor consolidado, baseado na tradição patriarcal da submissão feminina e, de certo modo, ingênuo por parte da consorte, até o dia em que, por acaso, descobre e lê o Diário de Guerra do seu, até então, “herói”. 
Este Olhos Abertos para a Morte é um romance que instiga a curiosidade do leitor, pois quando se começa a ler não se tem vontade de parar, mas de chegar logo ao seu desfecho final. É um romance que começa de um fim incógnito e que precisava ser recheado com a história do protagonista. O suspense é saber o resultado que este personagem terá frente ao seu ataque cataléptico.

A ÚLTIMA DAMA DA NOITE (Prólogo) – Rafael Rocha

Do livro homônimo lançado no ano de 2002
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Ainda recém-nascida, Maria Rosa foi encontrada nos arredores da então povoação de Salgueiro, no estado de Pernambuco, embrulhada em panos brancos de algodão e chita, e com o nome preso numa pulseira de prata num dos pulsos.
Tinha sido abandonada ao sol e aos animais da caatinga. O mascate Biu dos Leites encontrou a criança ao começar uma de suas inúmeras viagens ao sertão do São Francisco. Apiedado, levou a menina consigo, começando sua criação e a educá-la, durante o transcorrer do seu crescimento, nas artes das compras e das vendas dos mais diversos tipos de quinquilharias.
Maria Rosa cresceu em idas e vindas por tudo que era cidade, vila e povoado sertanejo, apregoando as utilidades dos objetos que Biu dos Leites vendia.
Panelas de barro, óleo de amaciar cabelo pixaim, líquidos que acabavam de vez com as dores de cabeça, de lumbago, das cólicas pré-menstruais, tecidos coloridos para as mulheres costurarem seus próprios vestidos, batinas de padre, carretéis cheios de linhas coloridas, agulhas de coser à mão, bilros para a produção de bicos de renda, redes de enterrar os mortos, grossas meias de algodão para os vaqueiros e, para a felicidade das quengas mais bem aquinhoadas dos puteiros e casas de tolerância do Agreste e do Sertão, xales de renda e meias de nylon vindas de alguma província da China.
Ela cresceu em inteligência e entendimento sempre protegida por Biu dos Leites, recebendo uma educação que incluía contas e mais contas matemáticas. Tornou-se exímia comerciante nas artes das vendas, regateios, nos ajustes de compras e pagamentos de dívidas.
Nunca aprendeu a ler, mas compensou isso com uma férrea vontade de se tornar para o seu protetor – que chamava de “seu” Bibiu desde criança – a tesoureira de todos os seus ganhos.  Sua maior ambição, a partir do momento em que começou a se tornar adolescente, era a de montar um negócio próprio na capital pernambucana e ser rica e respeitada.
No entanto, quis o destino que, logo após completar seus 13 anos, quando Biu dos Leites seguira numa barcaça até onde hoje se localiza a cidade de Juazeiro, na Bahia, e a deixara tomando conta das mercadorias, às margens do Rio São Francisco, ela adormecesse vencida pelo cansaço.
Para seu infortúnio esqueceu de apagar a vela de cera que iluminava o interior da grande tenda de lona, onde as mercadorias se espalhavam em todas as suas diversidades. Foi acordada pelo estrépito crepitante provocado pelo fogo.
Os bilros, feitos bolas vermelhas, saltitavam no meio da caatinga. Os xales e as rendas e as meias de nylon subiam ao céu como balões juninos.
As panelas de barro brilhavam em brasa devido ao poder das chamas, que se espalharam em questão de segundos em direção às secas plantas rasteiras. Tentando apagar o inferno em que estava envolvida ela se agarrou e se enrolou com as batinas de padre e mergulhou nas águas do rio.
A seguir, feito um pequeno fantasma negro, buscou apagar as chamas, jogando-se com aquele tipo de vestimenta sobre elas, o que só fez piorar a situação.
Em questão de segundos, o cavalo Faísca, que se achava preso um pouco mais além com o resto das mercadorias na carroça, começou a corcovear feito um endemoninhado. Repentinamente, saiu num galope desenfreado em direção às águas do São Francisco, onde mergulhou e desapareceu para sempre com tudo o que restava das posses do mascate, inclusive o dinheiro que ele tinha ganho nos últimos meses.
No dia seguinte foi encontrada mais morta que viva por Biu dos Leites. O homem passou mais de uma semana soltando cobras e lagartos, reclamando de si mesmo e amaldiçoando a hora em que recolhera a menina do meio da caatinga.
Lamentava, principalmente, o dinheiro gasto com a alimentação dela e as horas em claro, ensinando contas de adição, multiplicação, divisão e subtração.
Quinze dias após realizar um inventário de todos os estragos e perdas e danos, amarrou os pulsos da menina com os restos dos xales de seda que escaparam do incêndio e deu início a uma cruel peregrinação.
Levava Maria Rosa de cidade em cidade, de vila em vila, de povoado em povoado, apregoando em surdina aos homens maduros e aos rapazes ávidos por novidades o quanto eles iriam usufruir daquele corpo ainda não saído da puberdade.
Um corpo de menina virgem e incólume e que agora estava a pagar uma “promessa feita aos seus pais falecidos e que era a de zerar a dívida de gastos com hospitais e alimentação”.
 De vila em vila, de povoado em povoado, de cidade em cidade de todo o Agreste e Sertão pernambucano, cearense e baiano, Biu dos Leites ia vendendo o corpo de Maria Rosa.
Sua única intenção era a de ser ressarcido dos prejuízos causados pelo fogo em tudo que tinha sido de sua propriedade.
Quando alcançou a periferia da povoação de Carnaíba, no Sertão de Pernambuco, já locupletado com tudo e com muito mais do que possuíra, encontrava-se intoxicado e demente com a ideia de que agora poderia ganhar muito mais dinheiro, utilizando o jovem e belo corpo da menina.
Só que madame Lizonete Gomes, dona de quatro casas de tolerância na periferia dessa localidade, soube da história por intermédio de um dos fregueses de suas afilhadas, e sem acreditar no que estavam a lhe dizer resolveu fazer uma visita à tenda do mascate, questão de dez minutos de viagem de uma de suas casas.
No local, observou que, ao redor de uma tenda quase transparente, uns dez rapazes faziam fila esperando pela vez de usufruir dos dotes da jovem. Mais adiante, o mascate - perto de uma fogueira - contava os lucros advindos daquela noite.
A revolta de Lizonete se juntou à raiva de saber que ali (bem perto do seu puteiro) estivesse acontecendo uma versão tão facínora da mais antiga das profissões. E, também, por causa do sofrimento que viu nos olhos de Maria Rosa ao perscrutar, através da tenda, sua entrega aos machos devido ao capricho do fogo e da ambição desmedida de um homem.
No dia seguinte chegou ao local onde Biu dos Leites montara seu puteiro individual acompanhada por algumas de suas afilhadas.
Todas elas armadas com porretes e facas-peixeiras, dispostas a defender a vida da madrinha fosse como fosse e a seguir suas ordens sem refletir sobre suas origens.
Lizonete Gomes fez uma única proposta ao mascate: que Maria Rosa lhe fosse entregue em troca de uma esmeralda que ela guardava consigo desde que era menina.
Salientou, ainda, que se ele assim não procedesse iria se dar mal, pois todas elas estavam ali dispostas a acabar com a vida de um homem que agia de uma forma tão brutal com uma criança que ainda não acabara de sair dos cueiros.
Biu dos Leites, que já estava ficando farto daquele tipo de vida como cafetão ou gigolô sertanejo, apenas pediu a Lizonete que ela lhe mostrasse a tal esmeralda para que ele pudesse comprovar aos seus olhos se era verdadeira. Depois, vendo que nada mais tinha a perder, desvencilhou a menina das cordas que a prendiam pelos tornozelos e pulsos e a entregou à benevolência da madame sertaneja.
Nunca mais foi visto por aquelas bandas.
Lizonete e suas afilhadas tomaram conta de Maria, sentindo o quanto a garota de 14 anos estava depauperada e cheia de doenças. Levaram a menina a uma das casas, onde a puseram em quarentena, dando-lhe remédios e banhos, roupas limpas e perfumes baratos, fazendo com que, aos poucos, ela voltasse à vida natural.
Isso levou certo tempo, pois Maria Rosa, desde o incêndio, estava mergulhada em um turbilhão de chamas e fumaça, onde pequenos e ásperos demônios teimavam em queimar suas entranhas, sair por todos os orifícios do corpo sempre que era alcançada por alguma dor, prazer, tristeza, raiva e alegrias indizíveis.
Quando completou 15 anos ela confessou a Lizonete seus desejos de partir para o Recife e ali tentar a vida, mas a madrinha e suas afilhadas fizeram o possível para demovê-la dessa ideia.
Explicaram que, antes disso, era preciso ela aprender os truques da mais antiga das profissões, os maneirismos das quengas e as formas de fazer com que os homens as desejassem não só por uma noite, mas por todas as outras noites.
Nesses ensinamentos, Lizonete e suas meninas prometeram a Maria Rosa que tudo que ela apurasse em dinheiro e presentes seria só dela. Nenhuma iria querer parte nesses dotes, já que se desejava partir para a capital, desde logo fosse dando trâmites às liberdades de angariar o dinheiro necessário para continuar viva.
Durante três anos, ajudada, sempre que era possível, pelas meninas de Lizonete, Maria foi apurando, com o prazer dado aos sertanejos no quarto de uma das casas de tolerância, o dinheiro necessário para fazer uma nova vida na Veneza brasileira. Quando completou 18 primaveras, acompanhada por Eliete e Marieta, duas outras afilhadas da madame Lizonete que também desejavam arriscar a vida em outras paragens, partiu para o Recife.
Na capital, sem outro rumo a tomar e cientes de que a única profissão que sabiam era mesmo a de mulheres de vida fácil, Maria Rosa e suas duas companheiras se instalaram no Cais do Porto. Envolvidas pelas luzes e pelos mistérios noturnos da cidade grande iniciaram seus novos caminhos.

A VITÓRIA DA FICÇÃO – Raimundo Carrero

Prefácio do romance “A Última Dama da Noite” lançado no ano de 2002
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Rafael Rocha é um desses escritores que, sinceramente, acreditam na vitória da ficção escrita, num momento em que a Humanidade está preocupada apenas com o visual. Não é sem motivo que Ítalo Calvino chamou o final do Século XX de Civilização da Imagem. Daí a crença de que estamos assistindo a morte do romance. A morte do livro. Parece, portanto, uma extraordinária contradição dizer que um escritor acredita na vitória da palavra. Da palavra escrita. Mas sei que é preciso destacar este aspecto em Rafael Rocha, porque ele trabalha com uma sinceridade de quem vai chegar ao paraíso. Uma sinceridade comovente. Que alegra e envaidece.
Agora que me coloco diante deste romance, onde os personagens são possuídos de uma maravilhosa vontade de viver e de lutar, tento destacar esta força de um escritor que cria com facilidade, com habilidade, com artesanato. É certo que Rafael não é – rigorosamente - um autor estratégico, no dizer de Antônio Cândido. Mesmo assim, circula com determinação pelos labirintos de uma arte que se torna cada vez mais difícil. Escrever um romance, hoje, exige qualidades que vão além daquelas consideradas tradicionais: leveza no contar e habilidade no uso das palavras. Tudo isso, agora, é pouco. É muito pouco. Pede-se muito mais.
Com a habilidade natural de quem conhece os segredos narrativos, Rafael estabelece um plano mínimo de trabalho e faz caminhar por ali os personagens e os fios ficcionais, de forma que o leitor pode acompanhar a força do criador, com alegria e satisfação. O autor sabe o que está fazendo e que caminhos perseguir. Esta é a verdadeira vitória da ficção.
Este trabalho mostra a determinação de alguém que sabe que nesta civilização da imagem, as palavras se unem para conquistar maiores espaços no amplo campo literário pernambucano e recifense. Rafael mais do que se pode dizer, investe na literatura com uma coragem invulgar. Desconhece dificuldades, caminha por todos os lugares, inventa e parece não cansar. Suas histórias vão sendo elaboradas com habilidade e jeito, sentindo o calor da investigação e o vigor da espécie humana cheia de qualidades e de defeitos.
Neste A Última Dama da Noite, Rafael revela qualidades de ficcionista através do mundo áspero e cruel de Maria Rosa, punida, sempre punida pelos homens e pelo destino. Castigada, maltratada, ofendida. Sem perder jamais a dignidade de mulher possuída, entretanto. Há um conjunto de elementos que formam a força do livro. A narrativa na primeira pessoa, as confissões de Maria Rosa, o diário de Jurandir Farias. As três se interpenetram e se cruzam dando ao texto uma grande plasticidade que lembra essas histórias de mil e uma noites, sem acabar mais, até pela facilidade como está sendo montada a ficção. Um romance desses - e mais as qualidades do autor - só pode ser muito bom.
Dessa forma, espero que todos possam ter uma leitura agradável, sobretudo porque este é um escritor que tem publicado muito pouco e que é, basicamente, reconhecido pelos seus amigos. Agora, conquista uma maior gama de leitores que permanecerão fiéis, acredito, por causa de suas imensas qualidades.

Raimundo Carrero
Escritor e jornalista

   Recife, setembro de 2002

OLINDA – Rafael Rocha

Do livro “Marcos do Tempo” - 2010
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Olinda do frevo maior
Ofício de minha canção
Onde buscando o amparo
Fiz milagres nunca vistos
Pedindo ao carmo da virgem
O brilho da luz do farol
No bairro novo do sonho
Numa casa recém-caiada
Em um varadouro sem fim
Nasceu a história maciça
Do jardim atlântico novo
Onde o doce rio desemboca
E de onde os bultrins da vida
Chamam homens/mulheres pra mim.

O ESPELHO DA ALMA JANELA – Rafael Rocha

Conto inserido no livro “O Espelho da Alma Janela e outros Contos” - 2009 - Livro agraciado com o Prêmio Leda Carvalho (1988) pela Academia Pernambucana de Letras (APL)

Debruçou-se na janela para observar melhor o dia.
Lá embaixo, as pessoas andavam apressadas como se em busca de alguma coisa perdida em confins nunca localizados. O perfil retilíneo de uma estrada deslizou nos seus olhos. Na memória navegou um poema. Na retina dos olhos do sonho, pensou numa mulher.
A hora não era tardia assim para ele ficar pensando numa mulher.
Uma mulher é um pensamento doce, mesmo sendo, às vezes, uma fruta tão ácida para os lábios da vida. Uma mulher é o tempero sempre a fazer falta à atitude do homem. É tão insubstituível como o ar a envolver o planeta, como a alma que um dia debandará para algum espaço desconhecido.
Debruçou a alma na janela e a mulher saiu dos seus olhos.
Outras mulheres andavam lá embaixo nas calçadas da avenida e em todas existia o odor e a carne úmida daquela a habitar em seu pensamento. Podia até ser um sonho, mas vivificado sempre em todos os instantes em que sua mente pudesse se acreditar viva dentro dessa confusão planetária.
Perguntou-se onde abandonou aquele prazer de possuir uma carne sem tê-la sentido parte integrante de si próprio.
Perguntou-se se suas atitudes erraram dentro de algum ilógico sentido de tentar ser tudo que nunca pôde e como conseguiria construir uma vida dinâmica assim sozinho.
Perguntou-se de suas mudanças durante todas as temporadas negativas no próprio ciclo vital.
Perguntou-se quem lhe havia ensinado a forma mais simples de viver.
Debruçado na janela, sua alma estava sentada no parapeito rindo de suas perguntas.
Não. Nunca iria conseguir habituar sua forma de observar as coisas dentro do prisma mais sintético do vulgar. O que se perguntava não era e não podia ser considerado vulgar. Ele podia ser vulgar, mas não aquilo que ele perguntava a si próprio.
Perguntou-se então, quem, o que, por qual motivo o ensinaram a viver e ele nunca aprendera a conviver? Nem com a vida, nem com a morte a vir. Ele não sabia como fazer as coisas ficarem mais simples.
Debruçado no parapeito o solo lá embaixo tentava hipnotizar sua mente.
Notou o medo da alma e viu como ela buscava se abrigar dentro do quarto. Ouviu sua voz a dizer: “Não estou preparada para receber as respostas dessa maneira. Não me deixe assim sozinha. Vou tentar fazer com que a vida se ordene de forma mais concreta”.
Agora era ele a sentar no parapeito da janela. Observou a rua cheia de seres humanos indo e vindo, numa ansiedade de busca que só nesse momento entendia um pouco.
O perfil irregular de sua vida deslizou nos seus olhos cheios de lágrimas e assim teve pena da alma que não queria partir ao desconhecido. Teve pena de si próprio e, na sua memória, retratou-se um rosto de criança, da criança que um dia fora. Na retina dos olhos viu as mãos dos seus irmãos acenando um adeus que não desejava. Sua mãe, seu pai, seus tios, seus amigos...
A hora estava ficando tardia para ele pensar nos tantos que tinha amado.
Os tantos que amara eram pensamentos grandes demais para seu cérebro tão cheio de outras misérias mais pegajosas que o amor. Os que amara foram frutas, cujas sementes não germinaram na terra do seu tempo. Partiram para outros horizontes. Aos poucos o substituíram por outras frutas, outras atmosferas, outras águas.
Voltou à posição inicial, debruçado na janela, e a alma penetrou até o fundo de suas vísceras.
De dentro da alma saíram as lembranças e um teor amargo de solidão invadiu seu corpo.
Não perguntou mais nada a si próprio. Não era mais necessário.
Lá embaixo, a rua cheia de seres humanos criava um contraste com a sua solidão.
Não sabia o que lhe fazia falta e para que tentar descobrir? 
Um dia, talvez, tudo se desenrole diante de suas retinas e ele consiga observar melhor as bobagens dos seus pensamentos.