sábado, 1 de fevereiro de 2020

A ÚLTIMA DAMA DA NOITE – Rafael Rocha

Décimo capítulo do romance lançado no ano de 2002
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Severina Amor em seus primeiros meses de convivência com Maria Rosa nunca conseguiu descobrir quais os objetivos a nortear a vida pregressa da mulher.
Só depois de algum tempo, quando a madame se locupletou inteira de força e poder, os neurônios do seu cérebro deram para funcionar adequadamente, até conseguir descobrir o motivo pelo qual ela criava ao seu redor uma verdadeira seita de obedientes seguidores.
No dia em que recebeu o apelido de Amor, os olhos da madrinha se encontraram com os seus, brilhando de estranha satisfação. Vigiava o encontro de Severina com um vivaz rapagão recém-chegado à pensão, atraído pela fama do local e pela beleza das mulheres.
Chamava-se Marco Cícero e era estudante de engenharia.
Na pensão de Maria ele se engraçou com Biuzinha, como era chamada na ocasião a afilhada de menos idade da casa. Aos olhos dela, Marco Cícero trouxe o prazer de sentir a beleza e a juventude de um homem. O Recife, e, em particular, a zona, enfeitiçou e viciou sobremaneira o rapaz, fazendo com que ele esquecesse quase por completo de que ali tinha vindo dar asas a estudos revolucionários e marxistas, e não às suas fantasias sexuais.
Tudo porque seus sentidos ficaram ligados às artimanhas sedutoras da negra adolescente da casa. Por outro lado, Biuzinha se envolveu de tal forma com ele, ficando sem atinar para qual prato da balança pendia mais seu coração. Se o desejo pela carne jovem do homem ou a dívida para com a madrinha, que a salvara da situação atribulada nas mãos da Chica D’Amparo. Enrodilhou-se nos liames da sedução e quando tentou escapar e voltar a ser a mesma mulher da vida de antes, notou como isso estava ficando complicado. Confidenciou seu problema a Maria Rosa:
Mainha, o que tá tendo comigo? Não quero a sióra, mainha, mas ficando com um quente cá dentro de mim por aquele menino... O que faço?
Num se avexe, fia! Vá pelo coração, tá? Seje paixão! Seje desejo! Seje boa muié! Seje Biuzinha Amor. Severina Amor! Isso!
− Mas... Tô meia morta de medo. Ele...
− Ele é um ôme, minha fia! Apenas um ôme. Trate ele assim, bem assim, porque não se deve disandá, tendeu? Deixe de ser Biuzinha, hoje. Digo e falo pr’esse mundo de putaria: agora tu é Severina Amor, minha fia!
− Num entendo isso, madrinha...
− Entenderá logo! Se envolva no pedaço desse bicho. No melado dele, minha fia! Ame o ôme! Deixe que ele ame você. Faça a teia, arainha Severina Amor. O resto... Bem... Deixe com o tempo... O tempo ajuda, minha fia...
− O que a sióra quer que eu...
− Tudo! Quero tudo de tu, fia! Tu sabe como faço o bem pra todas meninas, num sabe? Num sou boa pra tu? Mas quero muito ver os ômes nas mãos da gente... Em nossas camas... Percisando de nossa carne... Quero eles presos, minha fia! Eles pensa que pode mandá na gente! Temos de fazer eles se despregá no fiofó deles. Os ômes são uns palhaços! Pensa que sabe de tudo!
Luzes trouxeram algumas claridades ao cérebro de Biuzinha (agora Severina Amor) quando observou a frieza metálica nos olhos da madame.
Pensou como a madrinha deveria ter sofrido em outros tempos e ocasiões nas mãos dos homens maus. E agora andava cultivando a planta macabra do despeito, e, quem sabe, da vingança.
Marco Cícero, por seu turno, nunca se abriu completamente com Severina. Tinha relações sexuais com ela em quase todas as quartas e sextas-feiras e, quando sentia falta das carícias da mulher, vinha ao seu encontro até mesmo aos sábados e domingos, negligenciando os estudos.
Dentro dele, porém, nunca deixou de arder o fogo do revolucionário, pois tinha aderido à doutrina marxista fazia pouco tempo, e dentro dos ditames dessa ideologia queria se aprofundar nos corações e nas almas de homens e mulheres que não fossem burgueses.
No entanto, quando seus olhos pousavam em Maria Rosa, sentia como a Amor era um fardo leve, tal o de um pássaro, para o seu corpo e sua alma.
Enquanto a madame pensava que a afilhada o estava conquistando para retirar dele todos os poderes físicos e financeiros da paixão, Marco se enrodilhava em olhos e sonhos, visando, em suas fantasias, a carne branca e os longos cabelos louros da mulher.
Nesse desatino, mesmo continuando a curtir noites variadas com Severina, Marco Cícero deu para fazer serestas em quase todos os afamados bares e botecos da zona. Até mesmo quando chegava à pensão da Vigário Tenório, cansado de dedilhar o violão e cantar velhas ou novas canções, falando de sonhos fugazes e amores passageiros, não perdia o tino de pôr os olhos de sua mente e os desejos de sua alma na dona da pensão.
“Parece tão distante como uma estrela”, pensava. “Como poderei alcançá-la tal e qual aquela primeira vez e fazê-la sentir como vivem os caminhos e descaminhos de minha alma?”
Severina Amor só começou a notar algo fora do comum, quando Maria Rosa sentou-se à sua mesa em um daqueles dias em que Marco buscava sua companhia. Notou como o rapaz ficava nervoso e, de despreocupado, dava-se por inteiro a gaguejar e grunhir coisas desconexas.
A madame, sem desconfiar de nada, acariciou com seus longos e bem cuidados dedos a cabeleira de Marco Cícero, olhando ironicamente para a Amor, como se esta tivesse muito mais a ganhar daquele homem do que a simples curiosidade e luxúria do sexo:
− Minha fia, ele tá muito bom pra tua perseguida. É um pedaço de ôme mermo como tu disse. E como é forte! Bom proveito, menina! Bom proveito!
E, naquela noite, Marco Cícero deu o recado depois de mais de três horas sendo usado e reusado, e também utilizando e reutilizando o corpo de Severina no quarto destinado à mulher na pensão da Vigário Tenório. Após mergulhos e mais mergulhos um dentro do outro, conhecendo as alternâncias e discrepâncias de todos os orifícios corporais, adormeceram, suarentos.
No meio da noite/madrugada a Amor acordou surpreendida com os movimentos estranhos vindos do corpo do rapaz a dormir a seu lado. Sentou-se à beira da cama, acendeu o abajur e viu Marco Cícero enrodilhado no recanto mais longínquo do leito, resmungando entredentes, a paixão tolhida dentro de sua carne: 
− Maria! Maria! Maria! Minha loucura! Maria da minha poesia!

sábado, 25 de janeiro de 2020

OLHOS ABERTOS PARA A MORTE – Rafael Rocha

Décimo-primeiro capítulo do livro homônimo lançado no ano de 2012 – Agraciado com Menção Honrosa pela Academia Pernambucana de Letras (APL) – Prêmio Vânia Souto Carvalho (2011)
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Todos os domingos, às 9 horas da manhã, o coronel Wellington Clemens, sua esposa e seu filho participavam da missa realizada na igreja da Conceição dos Militares, na Rua Nova, centro do Recife.
Após a celebração, o coronel se juntava com outros oficiais e suas famílias, rumando ao Restaurante Leite, em frente à Praça Joaquim Nabuco, onde todos se deleitavam com um excelente almoço regado a vinho, refrigerantes, cervejas e sorvetes.
O menino Fernando gostava dessas ocasiões. Sentia crescer dentro dele grande intimidade com o pai. E também uma grande necessidade de imitar o pai tanto no presente como nos futuros momentos da sua vida.
Sua primeira comunhão, ao lado de muitos meninas e meninos filhos de militares, ocorreu nessa igreja, num radiante 8 de dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição, padroeira do templo.
Esse dia não saiu de sua cabeça, não pela celebração da primeira comunhão em si, mas pelo fato de muitos oficiais, ainda durante o ofício religioso, terem se reunido em um dos recantos do templo, longe do altar-mor. Conversavam em voz baixa, mas pelos gestos, Fernando podia deduzir que algo de muito grave tinha acontecido.
Após a celebração, todos, como sempre, tomaram o rumo do Restaurante Leite. A agitação entre os oficiais era grande. Perspicaz, Fernando colocava seus sentidos visuais e auditivos em suspense.
Logo descobriu: o governo federal nomeara para o posto de subcomandante da Região Militar Nordestina sediada no Recife, um oficial, que, como ouvira seu pai dizer, traía todos os juramentos cristãos e democráticos. “É um comunista! Será que o presidente da República sabe disso?” “Meu caro Wellington, claro que o presidente sabe”. “Isso é um perigo! Esse homem não pode ser nosso superior!”. “Temos de nos curvar às ordens do Rio de Janeiro, coronel. Não vamos partir para a sedição”.
Notou uma raiva insana tomando conta do pai. Perdeu a alegria pela celebração da festa religiosa.
Queria saber desde já o que significava comunista.
O motivo pelo qual seu pai odiava a palavra comunista e os homens comunistas. 
Quem melhor do que seu pai para ensiná-lo nesse assunto?

PANDORA – Rafael Rocha

Do livro “Abismo das Máscaras” - 2017
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Homens há a se fazerem fortes
e diferentes de mim.
Não sou e não serei e nem pretendo
criar uma fortaleza
com versos ingênuos.

Sigo a vida como ordena o figurino:
Morrendo aos poucos!

Criei em versos os sons dos rios
desta terra recifense
com maracatus e frevos
entrando pelas portas e janelas.
Buscava alguém para dançar e cantar
a divindade de uma musa
e sempre chegava atrasado.

Outros marcavam os ritmos
muito antes de mim.

Um dia deixei de conversar comigo
e a solidão dormiu na minha cama.
Até hoje essa invasão é permanente
ainda que eu busque minha outra história
e peça clemência
às coisas que podia ter construído.

E cada baú de madeira do meu tempo
é uma caixa de Pandora!

segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

LAPIDAÇÃO – Rafael Rocha

Do livro “Meio a Meio” – 1979
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Nas partes dos meus restos intimido-me.
Converto um poema em angústia
no granito dos paralelepípedos
da minha aflitude.

Busco na selva dos famintos
olhos de ágata, voos de águias,
cristais de quartzo
e o signo dos titãs.

Mudo o que vivi e torno-me brusco
lapidando o lenho da árvore proibida
em asas de Ícaro e na flauta de Pã.
Metamorfose!

Ainda assusto minhas horas,
mas computo os minutos
no sangue de um vinho tinto
e no baile das sílfides.

Sabia-me um quase: sêmen
de lua minguante.
Hoje cresço: monstro secreto.
Crocodilo do Nilo.

Sorve-me o espaço!..

UMA EM TRÊS POR DOIS

Conto inserido no livro ‘O Espelho da Alma Janela” (2009) agraciado pela Academia Pernambucana de Letras (APL) em 1988, com o Prêmio Leda Carvalho
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A mulher se aconchegava ao corpo do homem e ele sentia uma como nuvem vaporosa de perfume inundar o quarto; os pelos pubianos no se esfregar em suas coxas, umedecidos pelo desejo do sexo. As mãos pequenas acariciando sua face, descendo corpo abaixo, rodopiando no ventre e aí ele sentia, mais quente ainda, a união da carne, entrechoque de corpos suarentos e a dança sob as cobertas dentro do escuro.
Tão pequenas são as horas! A obrigação o mandava ir-se em pouco tempo e deixar a fêmea ainda quente dentro do querer mais. Vestiu-se às pressas olhando o relógio. “Virgem! Quase dez da noite! Tenho de ir!” Abre a janela e uma réstia de luz ilumina o quarto: o corpo nu, moreno e exuberante da mulher ainda a chamar o seu, silenciosamente, ajoelhada na cama imensa, saturnal sacerdotisa sobre o altar do sacrifício.
– Diacho! Já são horas! – resmunga o homem – Deixa estar, volto na quarta-feira!
Pula a janela e cai no beco escuro. Olha em volta para se certificar que não foi visto. Sorri lampeiro e sorrindo se vai. E a vontade que tinha de uma reprise? Entrar novamente naqueles espaços úmidos e macios de carne? Urrar feito um bicho do mato quando o seu sêmen escorresse todo ali dentro?.. Que mulher! Que estouro de mulher! Mas... O diabo ama a própria pele. É um cabra sabido e não iria ficar esperando o dono em chegança e ser surpreendido dentro do harém. Pois não, isso fica lá pra outro... Beber umas cervejas, ora bolas. Bem precisado disso estava. Misturar-se à noite, espairecer o corpo e o espírito quase saturados de traquinadas.
A noite estava fria. Um vento forte açoitava as árvores da estrada. Prenúncio de chuva.
*****
Às 23 horas e mais alguns poucos minutos, o automóvel estacionou em frente ao bar e dele desceram dois homens. A algazarra entre conversas e risadas amainou lentamente até silenciar por completo. Um dos homens, barba fechada e óculos escuros, impróprios para a hora, se dirigiu até Luizinho com as mãos nos bolsos do blusão de couro. O outro homem, cara amarrada, se encostou ao carro sob os olhares dos espectadores (à essa altura tontos e assustados), espingarda 12 nos braços cruzados, pouca exibição, vigiando os movimentos do pessoal.
Tudo aconteceu depressa. Ouviu-se um estrondo como pneu de carro morrendo na estrada, barulho de copos a se quebrar e de algo mais pesado caindo no chão. O homem barbudo se virou de leve, sorriu para todos, guardou o 38 no bolso esquerdo do blusão de couro e voltou serenamente para o carro como se a pressa não existisse ou fosse essa a ocasião mais imprópria para ela existir. Dentro do veículo, ao volante, motor já ligado, estava seu companheiro, esperando. Após a entrada do barbudo, o carro fez meia-volta e sumiu na esquina, deixando atrás de si a poeira da estrada e no bar o corpo de Luizinho no chão de cerâmica, o sangue a escorrer do buraco na testa, gorgolejando lúgubre.
Aos poucos, a algazarra anterior retornou, motivada ainda mais pelo novo assunto. Alguém telefonou à Polícia. Outro alguém ao hospital mais próximo.
– É nisso o que dá trepar com as putas dos outros – sentenciou o dono do bar.
*****
Ela parecia esperar o epílogo de algum fato muito importante. Algo que demorava a chegar viria agora para seu conhecimento e talvez para seu próprio prazer.
Estava parada à janela observando a rua deserta. A hora parecia muito própria para acontecimentos difíceis. As trevas ajudavam a pensar.
Despiu a camisola e a jogou na cabeceira da cama. Segurou os seios nas palmas das mãos, sentindo-os firmes. Sentiu-se orgulhosa. Acariciou o ventre e levou os dedos da mão direita a navegarem em círculos sobre a pele sensível do sexo, fazendo com que sua memória lá por dentro de suas velhas fantasias, sorrisse amplamente. Talvez (poder-se-ia saber?) lembranças de um passado de há pouco.
O que viesse, esperava. Como sempre venceria. Não seria surpresa. Algo sempre de sua natureza vencer. Coisa natural.
A porta do quarto se abriu e a luz ao ser acesa ofendeu os seus olhos acostumados à penumbra. Sorriu de leve para o homem carrancudo andando em sua direção após estrondar o quarto batendo violentamente a porta. Sentiu o hálito na sua face, quente e sabendo a fumo barato. Sentiu as mãos suadas apertando sua garganta e ouviu a voz áspera insultá-la:
– Sua puta! Puta safada!
Continuou sorrindo. As mãos rudes e calosas do homem pouco a pouco, devagarzinho, apertando seu pescoço. Como última instância, deslizou a mão direita para dentro das calças largas do homem e começou acariciando suavemente, destemerosa, o registro adormecido do macho e este, de repente, hesitante, enrijeceu-se ao contato, aos poucos desapertando o aperto, se deixando levar, leve, leve, leve como pluma, cãozinho abandonado, ingênuo palhaço de uma cotidiana opereta urbana. 
O vento assobiou pela janela e a chuva explodiu sobre o telhado.

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

EPÍSTOLA AO MUNDO – Rafael Rocha

Do livro “Marcos do Tempo” – 2010

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Mais presente na terra do que o sonho mais irreal
Entre a razão e a paixão desses lugares faço parte
Das paisagens de cinza e luz observadas em todo dia
Nas barafundas das loucuras e na sede desumana
Deslizando na carne e entre pálpebras sonolentas

Ando...

Não sou poeta de cantar paixões românticas imortais
Mas a razão de mim não governa minha vida.
Se a minha poesia cansa os olhos de quem lê o livro
O leitor vá beber sua cicuta socrática apropriada
Para satisfazer sua ignorância ou ofuscar sua mente débil.

Ando...

Não pretendo agarrar-me a anjos nem a cruzes de cristos
A minha poesia não é adorável e não pretende sê-la.
Um Maiakovski de mim ou um produto vivo da terra
Assim prefiro. Assim serei. Assim pretende minha razão.
No obscuro clamor não ponho caramelos na canção.

Ando...

Estou caminhando na fase de uma luta de guerrilhas
Com armas traiçoeiras escondidas entre as vestes
Tenho uma pretensão de matar leitores e críticos
E de mandar à merda os filósofos teológicos
E fazer no poema o parto do assassino serial.

Ando...

Vejo a vida no passear flertando com minha carne magra
Belas fêmeas abrindo as pernas na tentação das sílfides
Homens hipócritas elogiando minhas atuais palavras
Sem nem saber a verdade do que falo e do que vivo
Cães imbecis a uivar suas coisas vãs ao acaso.

Ando...

Tal a palavra do Iessiênin dita quase sem a voz sonhar:
“Me agrada iluminar na escuridão
O outono sem folhas de vossas almas,
Me agrada quando as pedras dos insultos
Voam sobre mim, granizo vomitado pelo vento”.

Ando...

Vomito meus versos escritos pelos meus demônios
Não escrevo para harmonizar almas desvairadas
Minha estrada é longa e vazia e não vejo o horizonte
Tenho a mim como uma planta silvestre espinhenta
A solidão faz parte do último verso da estrada.

Ando...

O SONHO DO AVIÃO – Rafael Rocha

Do livro "Contos Delirantes com Versos em Bolero" - 2017
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   Hoje aconteceu novamente. E ocorre sempre em dias quando vou dormir sóbrio sem uma gota de álcool no corpo.
   Sonho ou premonição?
   Já tinham se passado alguns meses que esse sonho não vinha atrapalhar meu sono. É um sonho sim. E um sonho recorrente.
   Não tem dia ou hora marcada para surgir. Mas quando surge...
   E lá estava eu sentado à mesa de um bar (não esqueçam que fui dormir sóbrio, mas o sonho não quer minha sobriedade), bebendo minha dose de uísque quando aconteceu.
   O avião azul vinha pelo céu de brigadeiro, fez uma curva e de repente estacionou lá no alto. Parou mesmo!
   - Vai acontecer de novo! Puta merda! - pensei.
   E ali, parada no ar, a aeronave desenhou uma grande parábola no céu e depois começou a despencar para um lado mais distante de onde eu estava.
  Gritei apavorado, mas a aeronave continuou caindo. As pessoas ao redor, angustiadas, gritavam como loucas.
   O garçom bateu no meu ombro e apontou para o lado de onde se via a torre de uma igreja.
   - Ali! Ali! Caiu ali! Caiu no meio da vila que fica atrás da igreja! - gritou.
   - Todo mundo no chão! Todo mundo atrás da parede e no chão! - gritou um cara vestido com uma farda verde.
   Deu-se loucura total no bar/restaurante e os fregueses e empregados entraram, jogaram-se no chão e ficaram encostados contra as paredes. Eu fiz o mesmo, mas também tive curiosidade para saber o que iria acontecer a seguir.
   Levantei o corpo e pus apenas um pedaço da cabeça pela janela. Vi e escutei.
   Uma explosão poderosa seguida de um enorme clarão vermelho iluminou o fim da tarde.
   - Puta merda! - gritou o garçom, que agora estava chorando - Mamãe mora por ali! 
   Uma fumaça negra tomou conta de tudo que era lugar. A aeronave devia ter caído numa distância de uns dois quilômetros. Ainda bem que não tinha sido mais perto.
   Pensei isso e recriminei o pensamento.
  Tudo ficou repleto de um fedor insuportável, que aos poucos foi desaparecendo, fumaça e fedor, dando lugar à calmaria de fim de tarde e ao sol vermelho a se pôr no horizonte.
   Grande silêncio!
  Olhei para os lados e descobri que apenas eu estava agachado atrás de uma das paredes do bar/restaurante.
  Todas as outras mesas estavam ocupadas e as pessoas bebiam, comiam e conversavam normalmente.
  Sai do lugar e lá estava meu copo de uísque na mesa a esperar por mim.
  De repente, apareceu outro avião, mas...
  - Acorda homem, temos de ir ao mercado! 
  Aproveitei o momento, dei um salto e pulei da cama. Minha mulher ficou assustada.
  - Que é isso? O que houve?
  - Nada! Nada! Apenas um sonho ruim.

domingo, 12 de janeiro de 2020

FERAS (1968) – Rafael Rocha

Do livro “Poemas dos Anos de Chumbo” - 2017
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As feras de olhos demoníacos
roubam o pão das crianças.
Matam os peixes dos mares.
Torturam homens leais.

Um dia não haverá cadeia sobrando
para os ladrões das almas
que fazem dos seres humanos
peixes em um aquário.

Usam estrelas nos ombros
e algemam a liberdade.
São bandidos da palavra
e inimigos da humanidade.

PROSCRITO – Rafael Rocha

Do livro “SANGRAMENTO” incluído na coletânea “POETAS DA IDADE URBANA” - 2013
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Tornei-me um proscrito de velhas andanças
Em ventres macios e em mãos feminis
E hoje relembro as estranhas distâncias
De homem perdido em espaços senis

Tornei-me um fugaz exemplo de danças
De corpos colados e de beijos febris
E hoje recordo que tinha esperanças
De ter em meu corpo teus gestos sutis

Ainda não sei se caminho ou se corro
Mas sei que transcorro loucuras azuis
E no verde dos morros ainda percorro
Versinhos antigos que a alma traduz

E nessa linguagem que ninguém venera
Eu sou um poeta quase sem versejar
E ao lembrar a juventude onde eu era
Pretendo voltar a pensar, pensar, pensar....

sábado, 11 de janeiro de 2020

3. DA CHAMA DA VIDA - Rafael Rocha

Do livro “ENCÍCLICA DOS HOMENS (Encyclicae Hominum)” - 2019
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22. Amigo, o que tua amizade pode dizer das velhas imagens das nossas lembranças? Amigo, tua paixão pode explicar nossos passos cansados na busca das esperanças?
23. Amigo, teu sonho pode trazer de volta os instantes deliciosos dos nossos passados?
24. Passatempo. Passa o tempo. Vão-se anos. Risos infantis agora só em sonhos. Perdida a solidez corporal da vida, enferrujam-se artérias e poucos espermas saem dos ventres. Vão-se os tempos. Passatempo. Passa o tempo. No perigoso carrossel da vida. a morte vem descendo como uma montanha-russa.
25. Recife de corais. Rios cinzas/negros. Árvores poluídas. Homens brancos, negros, caboclos, cafuzos... Tantos sonhos velhos nos desvarios dos nossos sonos!
26. Poucas trilhas levam às terras dos sem nada, e a elas chegam os assassinos de vidas, destruidores das águas dos caminhos das navegações humanas. Onde viajantes tristes acenam adeuses aos olhos dos homens e sob o encanto das ninfas? Onde as encantadoras ninfas criaram chamas perpétuas para alegrar as mentes dos que souberam amar?
27. Repentinamente, o verso chama para a vida a irromper do ventre. Um começar... De súbito... Tão pequenino! Tão pequenina! Mãos de veludo! Cheirinhos lavanda!
28. De súbito... Cocô branco ou amarelo/água. Febres, vômitos, choros, gritos. Estresse paralelo à alma.
29. De súbito... Pai herói e mãe coruja. Abrigos nos braços/seios/saias/tórax. Risadas de alegres dias, semanas, anos.
30. De súbito... Bolas, brinquedos, bonecas, casinhas, bicicletas, arranhões, alegrias, jardins de infância e letras novas.
31. De súbito... Conhecimento de mundo/fragilidades. Perde-se pai herói e mãe coruja e ganham-se turma/galera, amigos/namorados.
32. De súbito... Outra semente irrompe de outro ventre. Novo começo de mais um repente. Ciclo sem fim... De súbito... Cabelos brancos, andares vagarosos. Solidões diferentes das solidões. Sete palmos de chão à espreita.

PORMENORES – Rafael Rocha

Do livro “Felizes na Dor – Tributo ao poeta Charles Bukowski” – 2016
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mulher cansada
de fuder
deve ser uma madalena
arrependida
da vida com
homens errados
espíritos ocos
daqueles
que não gostam
de fodilanças
e se ajoelham
nos degraus de altares
para orar e orar e orar
sabendo que vão levar
um pontapé na bunda
sinto que mulher
sem fuder
é cachorro sem osso
para roer
e homem sem fuder
é osso sem cachorro
e faltando cerveja
a vida fica uma merda.