sábado, 7 de setembro de 2019

MARÇO (1968) – Rafael Rocha

Do livro “Poemas dos Anos de Chumbo” - 2017
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Neste março friorento
deste ano de 1968
estou perto dos meus 19 anos
buscando sorrisos
e alegrias esparsas.
Mas os olhos do mundo
estão cansados para sorrir
e a pátria enlutada
sofre sob coturnos.

Não tenho jeito para lutar
como aqueles amigos que se foram.
Fico sentado à mesa
girando letras no papel
criando ondas de versos
que poucos lerão
em defesa
dos meus famintos irmãos.
E pelas ruas os assassinos marcham
com as baionetas caladas e armadas.

Meu pai e minha mãe olham
meu corpo e por temor de mim
fecham as portas e janelas
à minha repentina ideia
de sair às ruas e abrir
todas as portas da vida.
Nem sequer conhecem
o prazer da límpida água
a nascer no meu caminho.

Não tenho ainda uma namorada.
Nem uma amante delicada.
Sequer um sonho de mulher
para contar-lhe histórias de heróis.
Mas sinto um medo imenso
pelos filhos que eu possa ter
e de que nada mude
e tudo permaneça entregue
à sanha dos assassinos da liberdade.

OUSADIA – Rafael Rocha

Do livro “SANGRAMENTO” incluído na coletânea “POETAS DA IDADE URBANA” - 2013
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Ouso tudo de minhas pretensões:
Voar ao encontro das loucuras.
Nadar nas lavas dos vulcões.
Escalar o mais alto pico de Vênus.

Ouso...
Dizer o bem abraçado com a ruindade.

Ouso...
Poetar o bêbado do primeiro bar.

Ouso...
Colocar na boca de qualquer humano
O beijo de minha realidade
E sentir a vida escorrer.

Ouso tudo dos anseios programados
Desde o primeiro segundo vindo
De um ventre em um choro desabrido
Ser poeta e ser delírio e ser louco.

Ouso...
Minha loucura elogiar diariamente.

Ouso...
Cego ver o mundo na escuridão.

REINADO – Rafael Rocha

Do livro “Felizes na Dor – Tributo ao poeta Charles Bukowski” - 2016
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como nada tinha que fazer em casa
concedi-me licenciosidade
e parti para um universo paralelo
na rua
ao dobrar a esquina ela apareceu
deu um sorriso
depois... já um pouco longe
olhou para trás
e sorriu de novo
eu nada tinha que fazer mesmo...
parti em seu encalço
e ela percebeu...
a caçada tinha começado!

diminuiu o ritmo das passadas
e olhou para trás sorrindo de novo
espera aí, porra!
fiz um sinal e ela estacionou o corpo,
recostando-se
num muro todo grafitado
com as letras incoerentes dos loucos
vagabundos das noites
que é que tu queres? - perguntou
continuava sorrindo

parecia zombar de minha caçada
segurei seu braço e a puxei
toda para mim
e ela riu de novo
e disse que estava sendo machucada

merda, tens lugar para ir?
tu não tens?
prefiro que tu tenhas
então vamos...
passei os braços em torno:
a cintura fina e a carne magra
aceitaram meus braços, dedos e mãos;
na primeira esquina penumbrosa
encostei-a contra um poste sem luz...

por sinal, não tinha nada mesmo a fazer
fiz ali mesmo
e escutei seu gemido e uma praga
e seu sorriso sumiu do rosto
porra! que pressa! devagar, porra!
não tinha nada mesmo a fazer naquela hora
e na escuridão do poste sem luz
reinei a maior foda de minha vida.