Do livro “Contos
Delirantes com Versos em Bolero” – 2017
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Como
estão hoje os meus companheiros de há quatro décadas?
Lembro
de histórias e das mais arrematadas loucuras que fizemos em bando pelas ruas do
Recife e de Olinda lá pelos anos entre 1977 e 1980.
Sei que
eles não mais estão a fazer aquelas farras homéricas e talvez seja uma tolice
cair nesse despenhadeiro e relembrar fatos passados, mas como disse o Zeca, as
histórias têm de ser contadas e, além disso, escritas.
- E
quem melhor do que você para escrever elas, porra!? - perguntou Zeca.
Não sei
se devo carregar a responsabilidade de escrever essas histórias, ainda que
estivesse participando do grupo e me aventurando em espaços quase loucos da
vida.
- Ao
menos uma! - pediu Zeca.
Sentados no bar Mustang, na Avenida Conde da
Boa Vista, numa noite de sexta-feira, logo após sairmos das aulas na
Universidade Católica, matutávamos para onde deveríamos ir.
Éramos
cinco. Eu, Marcus, Evaldo, Henrique e Gilson.
Lá
pelas tantas, ou seja, já depois da meia-noite quando nem havia mais ônibus
pelas ruas, Henrique tomou a resolução.
- O
Zeca disse que depois de sair da aula iria beber em Olinda. Lá no Bar Maconhão,
à beira-mar do Carmo. E que se a gente quiser ir se encontrar com ele... Vamos?
Não
precisou nem de votação. Unanimidade.
O
problema agora seria achar transporte. Os ônibus já estavam nas garagens e não
existia bacurau como hoje a funcionar de hora em hora. Ônibus agora só às cinco
da matina
Apenas
os táxis notívagos realizavam viagens e esses táxis eram fuscas de cinco
lugares com o motorista.
- Vai
ser complicado - disse Evaldo - Somos cinco e qualquer táxi só leva quatro.
- Vamos
tentar com aquele táxi que está ali parado - falou Henrique – Pode ser que dê
certo e ele leve nós cinco. Daqui para Olinda o cara ganha uma boa graninha.
-
Problemático... problemático... - resmungou Marcus.
Eu
preferi ficar calado e deixar que eles resolvessem o problema.
Henrique
e Marcus foram até o táxi e falaram com o motorista por alguns minutos. Este,
um senhor magro, cabelos grisalhos, olhou para a gente, pensou um pouco e
aceitou.
- Tudo
certo - disse Henrique - Eu disse a ele que somos gente fina, estudantes
universitários e que queremos ir até Olinda para continuar a farra. Ele aceitou
levar, mas fez um pedido: a gente paga um extra para ele.
Nossa
sorte, naquela época, foi a de não sermos os roliços senhores que somos hoje
devido à idade e às muitas cervejas. A magreza de cada um ajudou.
- Bom!
- disse o motorista - O maior e mais forte de vocês vem na frente comigo. Os
outros quatro se apertam no banco traseiro.
Gilson
era o maior e mais forte. Ele se ajeitou na frente.
A
arrumação no banco traseiro não foi muito fácil, mas conseguimos.
Fiquei
até a perguntar aos meus botões se nós quatro tínhamos engordado a lataria do
carro por mais meio metro.
Dito e
feito, depois de todos se arrumarem, o fusca táxi saiu normalmente com sua
carga e rumou para Olinda.
Viagem
tranquila até que saímos dos limites do Recife e entramos nos de Olinda,
quando, logo depois da Escola de Aprendizes Marinheiros, numa área erma, o pneu
dianteiro direito estourou.
-
Porra! - exclamou o motorista - Que azar! Puta merda!
Tivemos
de descer do fusca.
- Vamos
trocar o pneu! - disse Henrique - A gente ajuda!
O
motorista coçou a cabeleira grisalha. Encolheu os ombros e falou:
- A
merda é que estou sem macaco!
- Que
beleza! - exclamei - Quero ver agora como vamos sair dessa! E ainda teremos de
pagar a corrida até aqui.
Henrique,
porém, era cheio de ideias.
- Nada
disso! Com macaco ou sem macaco vamos trocar o pneu, deixar o carro ajeitado e
ir para Olinda - falou.
- Como?
- perguntou Evaldo.
Henrique
olhou para o motorista e perguntou:
- Tem
as ferramentas para desapertar os parafusos?
-
Tenho, sim – apressou-se ele a dizer, abrindo o porta-malas dianteiro, pois o
motor do fusca fica na traseira, e de lá retirando um montão de ferramentas,
bem como o estepe.
-
Ótimo! - exclamou Henrique, arrematando - Agora, vocês levantam o carro aqui do
lado direito e eu retiro o pneu estourado, mas vejam bem, vejam bem, fiquem
segurando o maldito fusca e não larguem o desgraçado. Não quero que essa
lataria despenque em cima de mim.
Fizemos
o que ele mandou fazer.
Eu,
Evaldo, Gilson e Marcus erguemos o fusca. O motorista ficou ao lado de Henrique
para ajudar, e este começou a agir.
Deu
algum trabalho desparafusar tudo e retirar o pneu estourado porque o local
estava bem escuro e o motorista usava apenas um isqueiro para clarear. De vez
em quando o vento que vinha da orla marítima apagava a chama.
Mas
Henrique conseguiu retirar o pneu e quando estava prestes a colocar o novo, um
automóvel Galaxie preto parou ao lado e dele desceram dois homens com
revólveres apontados em nossa direção.
-
Parados! Polícia Federal! Fiquem parados e levantem os braços!
-
Ninguém levanta os braços, porra nenhuma! - gritou Henrique, deitado no chão ao
lado do pneu dianteiro tentando encaixar o pneu novo.
O
motorista do táxi saiu do lado de Henrique, levantou-se e se encaminhou até os
dois homens. Falou com eles durante algum tempo que pareceram longas horas. As
armas continuavam apontadas para a gente.
Mas não
largamos o carro. Afinal de contas, o Henrique estava lá em baixo e...
- Eles
estão ajudando a colocar o pneu que estourou - explicou o motorista - Estou sem
macaco e eles tiveram que levantar o carro.
Um dos
homens fez a volta e foi confirmar o que o motorista falava. Olhou, guardou a
arma num coldre axilar e disse para o companheiro:
-
Relaxa e guarda a arma! Estão mesmo trocando o pneu! Vamos dar uma mãozinha.
Os dois
vieram, e ajudaram a levantar ainda mais o fusca, facilitando o trabalho de
Henrique.
Depois
de tudo pronto, pneu novo colocado, carro no chão...
- Bom,
vocês são rapazes corajosos. Ainda bem que fomos nós a passar por aqui. Estamos
perseguindo quatro comunistas que fugiram do quartel general lá do Derby. E
quando vimos vocês...
Lembro
que o regime de governo da época era a ditadura civil/militar.
- Foi
isso... Foi isso... - disse o outro homem - Tiveram sorte de sermos nós. Outros
teriam atirado primeiro e perguntado depois.
A
seguir, entraram no Galaxie preto e partiram.
Ficamos
a olhar uns aos outros. Até que o motorista quebrou o silêncio.
- Como
é? Vão ou não vão para Olinda?
Voltamos
a nos ajeitar dentro do veículo e rumamos para a Marim dos Caetés. Já estávamos
loucos para beber.
Chegando
na frente do Bar Maconhão, descemos, fizemos a vaquinha e demos o dinheiro ao Henrique para ele pagar a corrida.
O
motorista do táxi recebeu o dinheiro, contou, viu tudo certo, deu uma risada
gostosa e exclamou para Henrique:
-
Imagina! Imagina! Achar que vocês eram comunistas!
E o Henrique, com o rosto
escurecido de graxa, inclusive as duas mãos, disse:
-
Nunca mais você vai encontrar comunistas iguais à gente!