terça-feira, 7 de janeiro de 2020

A ÚLTIMA DAMA DA NOITE – Rafael Rocha

Nono capítulo do romance lançado no ano de 2002
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Ainda o diário...

Decorria o ano de 1940 quando Maria Rosa, Eliete e Marieta chegaram ao Recife depois de uma viagem cheia de peripécias. Saíram da povoação de Carnaíba, sertão do Pajeú, no limiar do mês de março, chegando à capital pernambucana nos fins de abril desse ano. Era noite quando seus corpos cansados alcançaram as margens do rio Capibaribe, pelos lados do cais da Alfândega. Cansadas, quase maltrapilhas, ao verem as luzes da cidade e as águas escuras do rio, sentiram-se refeitas de todos os dissabores da longa caminhada.
Não vale a pena assinalar aqui os malabarismos feitos pelas três mulheres na viagem para alcançar o objetivo.
Na primeira noite nas ruas da capital, tentaram um abrigo nas inúmeras construções espalhadas pelo cais.
No entanto, como já era bastante tarde não tiveram sucesso. Ao pé de duas frondosas árvores, às margens do rio, adormeceram.
No início da manhã, os raios mornos do sol e a forte brisa soprada do mar despertaram as três mulheres quase ao mesmo tempo. Ainda não conseguiam acreditar que tinham chegado ao fim da jornada.
Ao se darem conta disso, riram, abraçaram-se, beijaram-se e fizeram juras de buscar um encaminhamento para suas vidas.
Naqueles tempos, a perseguição às prostitutas estava na ordem do dia.
Era, porém, uma perseguição mascarada pela hipocrisia e corrupção, pois quem possuía proteção de determinados setores sociais continuava a sobreviver e a oferecer o corpo às lubricidades e às taras dos homens. Maria Rosa, Eliete e Marieta não sabiam nada sobre isso. E até que foram bem-sucedidas nas suas azáfamas iniciais em busca dos homens necessitados da paixão e do sexo, ali mesmo no Cais do Porto.
Com muito pouco cuidado, ofereceram momentos de prazer aos carregadores das docas e a alguns marujos das embarcações ali estacionadas. Nos porões dessas embarcações, naquela manhã de março, o Cais viveu momentos bizarros. Muitos serviços foram paralisados, pois os desejos dos inúmeros homens pelas três jovens mulheres se espalharam pelos quatro cantos do Bairro do Recife. Elas ganharam algum dinheiro e só então descobriram em que rumo Deus ou o destino traçara suas vidas.
Madame Betânia L’Amour, a mais famosa e poderosa dona de pensão da zona do Bairro do Recife daqueles tempos, tomou conhecimento da novidade, mas só encontrou as três mulheres vendendo o corpo ao meio-dia daquela radiosa manhã de sol.
Compreendeu de imediato que nenhuma delas sabia o quanto era perigoso fazer o trottoir no Recife sem proteção superior.  Acompanhada, na ocasião da descoberta, pelo tenente da Guarda Municipal, Godofredo Matias, um dos seus inúmeros protetores, madame Betânia aguardou a ocasião propícia para abordar as meninas, mas isso só aconteceu quanto a tarde levou o sol para o poente. Estava sinceramente estarrecida com a coragem delas.
− Como elas ainda não foram presas? – perguntava.
O tenente Godofredo, ao seu lado, tomou conhecimento da história e riu.
Ele respondeu que era apenas questão de sorte, pois quando o capitão da Guarda começasse a fazer a verdadeira ronda, elas iriam sentir na pele o erro cometido.
Porém, madame Betânia foi incisiva:
− Meninas de sorte assim são difíceis de encontrar. Devem ter vindo de muito longe, mas nota-se que sabem alguma coisa de putaria. Vou levá-las pra meu castelinho, querido Godofredo.
− Você está louca, Betânia? Já não basta sua penca de afilhadas?
− Vou levá-las comigo! Olha para aquela branquinha de cabelo amarelo... Que tal uma noite com ela? Você gostaria? Seria de graça, querido amigo.
 − É... É... Ela é bonita. Um tanto nova... Mas é bonita. Está bem maltratada, não acha? Assim como tá não serve pra mim. Você sabe, eu gosto é de mulher como você... Cheirosa... Elegante...
− Deixa de finesse, Godofredo. Eu sei muito bem do que você gosta. Sei muito bem...
− Mas... Você quer mesmo levar aquelas pra seu negócio? Tem certeza que...
− Você tá me dando essa certeza, Fredinho. Tô vendo nos seus olhos o que você tá querendo. Vou levá-las, sim, e você vai me ajudar. Pra todos os efeitos elas são minhas sobrinhas vindas do Interior, tá? E, por outro lado, ando precisando de menininhas mais novas. As minhas já não dão pro gasto, meu querido.
− Sempre me metendo nessas confusões, ora, ora... O que vou dizer ao capitão da Guarda, hein?
− O de sempre, querido. O de sempre. Diga: madame L’Amour está sendo visitada por três novas sobrinhas. Três franguinhas lindas de morrer e experientes como só elas e...
− E?...
− E elas sabem fazer aquilo que ele mais gosta!
− E como você sabe, querida amiga, se elas sabem fazer o que o capitão da Guarda gosta? 
− A você eu não posso explicar isso. Que loucura! Mas garanto a mercadoria, Fredinho! Eu garanto a mercadoria!