terça-feira, 14 de janeiro de 2020

EPÍSTOLA AO MUNDO – Rafael Rocha

Do livro “Marcos do Tempo” – 2010

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Mais presente na terra do que o sonho mais irreal
Entre a razão e a paixão desses lugares faço parte
Das paisagens de cinza e luz observadas em todo dia
Nas barafundas das loucuras e na sede desumana
Deslizando na carne e entre pálpebras sonolentas

Ando...

Não sou poeta de cantar paixões românticas imortais
Mas a razão de mim não governa minha vida.
Se a minha poesia cansa os olhos de quem lê o livro
O leitor vá beber sua cicuta socrática apropriada
Para satisfazer sua ignorância ou ofuscar sua mente débil.

Ando...

Não pretendo agarrar-me a anjos nem a cruzes de cristos
A minha poesia não é adorável e não pretende sê-la.
Um Maiakovski de mim ou um produto vivo da terra
Assim prefiro. Assim serei. Assim pretende minha razão.
No obscuro clamor não ponho caramelos na canção.

Ando...

Estou caminhando na fase de uma luta de guerrilhas
Com armas traiçoeiras escondidas entre as vestes
Tenho uma pretensão de matar leitores e críticos
E de mandar à merda os filósofos teológicos
E fazer no poema o parto do assassino serial.

Ando...

Vejo a vida no passear flertando com minha carne magra
Belas fêmeas abrindo as pernas na tentação das sílfides
Homens hipócritas elogiando minhas atuais palavras
Sem nem saber a verdade do que falo e do que vivo
Cães imbecis a uivar suas coisas vãs ao acaso.

Ando...

Tal a palavra do Iessiênin dita quase sem a voz sonhar:
“Me agrada iluminar na escuridão
O outono sem folhas de vossas almas,
Me agrada quando as pedras dos insultos
Voam sobre mim, granizo vomitado pelo vento”.

Ando...

Vomito meus versos escritos pelos meus demônios
Não escrevo para harmonizar almas desvairadas
Minha estrada é longa e vazia e não vejo o horizonte
Tenho a mim como uma planta silvestre espinhenta
A solidão faz parte do último verso da estrada.

Ando...

O SONHO DO AVIÃO – Rafael Rocha

Do livro "Contos Delirantes com Versos em Bolero" - 2017
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   Hoje aconteceu novamente. E ocorre sempre em dias quando vou dormir sóbrio sem uma gota de álcool no corpo.
   Sonho ou premonição?
   Já tinham se passado alguns meses que esse sonho não vinha atrapalhar meu sono. É um sonho sim. E um sonho recorrente.
   Não tem dia ou hora marcada para surgir. Mas quando surge...
   E lá estava eu sentado à mesa de um bar (não esqueçam que fui dormir sóbrio, mas o sonho não quer minha sobriedade), bebendo minha dose de uísque quando aconteceu.
   O avião azul vinha pelo céu de brigadeiro, fez uma curva e de repente estacionou lá no alto. Parou mesmo!
   - Vai acontecer de novo! Puta merda! - pensei.
   E ali, parada no ar, a aeronave desenhou uma grande parábola no céu e depois começou a despencar para um lado mais distante de onde eu estava.
  Gritei apavorado, mas a aeronave continuou caindo. As pessoas ao redor, angustiadas, gritavam como loucas.
   O garçom bateu no meu ombro e apontou para o lado de onde se via a torre de uma igreja.
   - Ali! Ali! Caiu ali! Caiu no meio da vila que fica atrás da igreja! - gritou.
   - Todo mundo no chão! Todo mundo atrás da parede e no chão! - gritou um cara vestido com uma farda verde.
   Deu-se loucura total no bar/restaurante e os fregueses e empregados entraram, jogaram-se no chão e ficaram encostados contra as paredes. Eu fiz o mesmo, mas também tive curiosidade para saber o que iria acontecer a seguir.
   Levantei o corpo e pus apenas um pedaço da cabeça pela janela. Vi e escutei.
   Uma explosão poderosa seguida de um enorme clarão vermelho iluminou o fim da tarde.
   - Puta merda! - gritou o garçom, que agora estava chorando - Mamãe mora por ali! 
   Uma fumaça negra tomou conta de tudo que era lugar. A aeronave devia ter caído numa distância de uns dois quilômetros. Ainda bem que não tinha sido mais perto.
   Pensei isso e recriminei o pensamento.
  Tudo ficou repleto de um fedor insuportável, que aos poucos foi desaparecendo, fumaça e fedor, dando lugar à calmaria de fim de tarde e ao sol vermelho a se pôr no horizonte.
   Grande silêncio!
  Olhei para os lados e descobri que apenas eu estava agachado atrás de uma das paredes do bar/restaurante.
  Todas as outras mesas estavam ocupadas e as pessoas bebiam, comiam e conversavam normalmente.
  Sai do lugar e lá estava meu copo de uísque na mesa a esperar por mim.
  De repente, apareceu outro avião, mas...
  - Acorda homem, temos de ir ao mercado! 
  Aproveitei o momento, dei um salto e pulei da cama. Minha mulher ficou assustada.
  - Que é isso? O que houve?
  - Nada! Nada! Apenas um sonho ruim.