sábado, 11 de janeiro de 2020

3. DA CHAMA DA VIDA - Rafael Rocha

Do livro “ENCÍCLICA DOS HOMENS (Encyclicae Hominum)” - 2019
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22. Amigo, o que tua amizade pode dizer das velhas imagens das nossas lembranças? Amigo, tua paixão pode explicar nossos passos cansados na busca das esperanças?
23. Amigo, teu sonho pode trazer de volta os instantes deliciosos dos nossos passados?
24. Passatempo. Passa o tempo. Vão-se anos. Risos infantis agora só em sonhos. Perdida a solidez corporal da vida, enferrujam-se artérias e poucos espermas saem dos ventres. Vão-se os tempos. Passatempo. Passa o tempo. No perigoso carrossel da vida. a morte vem descendo como uma montanha-russa.
25. Recife de corais. Rios cinzas/negros. Árvores poluídas. Homens brancos, negros, caboclos, cafuzos... Tantos sonhos velhos nos desvarios dos nossos sonos!
26. Poucas trilhas levam às terras dos sem nada, e a elas chegam os assassinos de vidas, destruidores das águas dos caminhos das navegações humanas. Onde viajantes tristes acenam adeuses aos olhos dos homens e sob o encanto das ninfas? Onde as encantadoras ninfas criaram chamas perpétuas para alegrar as mentes dos que souberam amar?
27. Repentinamente, o verso chama para a vida a irromper do ventre. Um começar... De súbito... Tão pequenino! Tão pequenina! Mãos de veludo! Cheirinhos lavanda!
28. De súbito... Cocô branco ou amarelo/água. Febres, vômitos, choros, gritos. Estresse paralelo à alma.
29. De súbito... Pai herói e mãe coruja. Abrigos nos braços/seios/saias/tórax. Risadas de alegres dias, semanas, anos.
30. De súbito... Bolas, brinquedos, bonecas, casinhas, bicicletas, arranhões, alegrias, jardins de infância e letras novas.
31. De súbito... Conhecimento de mundo/fragilidades. Perde-se pai herói e mãe coruja e ganham-se turma/galera, amigos/namorados.
32. De súbito... Outra semente irrompe de outro ventre. Novo começo de mais um repente. Ciclo sem fim... De súbito... Cabelos brancos, andares vagarosos. Solidões diferentes das solidões. Sete palmos de chão à espreita.

PORMENORES – Rafael Rocha

Do livro “Felizes na Dor – Tributo ao poeta Charles Bukowski” – 2016
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mulher cansada
de fuder
deve ser uma madalena
arrependida
da vida com
homens errados
espíritos ocos
daqueles
que não gostam
de fodilanças
e se ajoelham
nos degraus de altares
para orar e orar e orar
sabendo que vão levar
um pontapé na bunda
sinto que mulher
sem fuder
é cachorro sem osso
para roer
e homem sem fuder
é osso sem cachorro
e faltando cerveja
a vida fica uma merda.

ANDANÇAS – Rafael Rocha

Quinto capítulo do livro homônimo lançado em 2018
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TIO E SOBRINHO

- O que é que tens, Otaviano?
- Tô com um troço. Negócio chato cá dentro.
- Tio João está aqui. Fala comigo. É caso de mulher, é?
- Mais ou menos. Mais ou menos... Não sei se você pode ajeitar não.
- Fala pra mim! Conta! Abre o coração! Galopa no pasto que as éguas abrem as pernas, meu filho.
- É coisa diferente, tio João. É coisa diferente.
- Olhe, tenho uma coisa pra contar. Mas só falo quando tu falar primeiro, visse? Vai, abre a veia, menino!
- É aquela filha do padre. A filha do padre. Logo eu ficar biruta pela filha do padre. Conhece o padre?
- O padre Dicá? Claro que conheço! E o que tem a filha dele, hein? Que é que a filha dele tem pra te deixar assim como uma vaca sem conseguir colocar as crias pra fora da barriga?
- Tô querendo ela. Mas a cabrita é diferente. Não é igual àquelas quengas não, visse? Como eu vou meter na filha de um padre, hein, tio?
- Tá bom, tá bom... Quer dizer que você tá querendo um ajeitado com a menina Madalena, é?
- Isso! Mas com ela o ajeitado é diferente. Não sei o que fazer e já estou perdendo as precatas com essa merda!
- Que língua! É preciso ficar assim engasgado com uma coisa tão fácil de ajeitar?
- Fácil de ajeitar? O senhor pensa que é só eu chegar na igreja e dizer ao padre que tô com o diabo no couro pra fazer um fru-fru com a cabrita adotiva dele e que ele deve me dar licença pra eu esfriar esse sol pior do que sol secando o Pajeú? É fácil, tio?
- Difícil não é. É complicado, mas não é difícil. Tem jeito.
- Tem jeito? Que jeito?
- Casando com ela. Casando, leva ela logo pra cama e na cama toda mulher tem de ser quenga, entre quatro paredes, isso. Claro que não vai ser igual. Você terá de ensinar muita coisa pra ela. É como sair correndo atrás de um boi. Pega ele pelo rabo dá uma virada e já era o boi...
- Tio João! Tio João! O senhor só viveu metendo nessas quengas. Não sabe nada de filha de padre, sabe?
- Você vai ficar surpreso, Otaviano! Vai ficar surpreso! Este seu tio João não nasceu ontem não.
- Mas é difícil...
- Deixa de falar do difícil. O padre Dicá me procurou de tarde na feira. Ele perguntou se era verdade que você tinha falado de casamento à menina dele. É verdade?
- Eita, aquilo foi brincando... Foi brincando...
- Porra, se você falou e agora nega quando eu tô querendo ajeitar... Que se há de fazer? Falou em casamento ou não?
- Falei. Falei... Mas ela ficou braba!
- Braba? Ela tá doida pra sair daqui e morar no Recife, sabia?
- Ela me falou... E daí?
- Daí que o padre Dicá disse que ela tinha pensado muito nisso... Muito e muito...
- E...
- Ela quer casar com você, Otaviano! Quer casar com você!
- Só com casamento ela dá?
- Só casando! Só casando que ela vai dar! E eu tô achando certo! Afinal ela não é igual às quengas que tu conhece, é?
- E você tá de conluio? Tá? Diga. Tá ou não tá?
- De conluio não, que não sou comadre nem coiteiro. Disse que era bom. Casar. Morar no Recife. Os dois. Lá se tem futuro, pois aqui...
- E já estou no meio disso, é? Você me colocou prontinho para casar com ela, foi?
- Foi!
- Merda! Que grande merda, tio João! E depois como é que eu fico? Casado e com tantas por aí querendo se enfiar na minha vara, hein?
- Você começou o brinquedo. Foi você, menino. Você sozinho.
- Tá bom, tá bom. Comecei brincando e deu nisso. Mas aquela cabrita só dá casando, é?
- Só dá casando! Olha, Otaviano, a vida é assim mesmo. Você não fica preso no cercado não. Cavalo amarrado também come. O Recife tá assim de rapariga e ela como sua mulher tem de ser recatada. Você é o homem.
- Isso é vera...
- Isso! Você é o garanhão. Não pode ficar parado numa só não. O certo é assim. Você casa com ela. Vai morar no Recife. Faz família. E é bom que faça isso logo, pois seu tio aqui já tá com um pé na cova.
- Que é isso, tio João? Nada disso. O senhor ainda vai ver meus filhos, ora se vai...
- Então é isso, né? Casa com ela? Casa?
- Se for apenas desse jeito que...
- É apenas desse jeito! 
- Então eu caso. Mas tem de ser logo. Vá dando o jeito que o senhor sabe. Fale com o padre, com ela, com os santos da igreja se for preciso. Se eu tenho de casar pra meter nela, vamos casar logo.