quarta-feira, 10 de julho de 2019

CIDADE – Rafael Rocha

Do livro “Contos Delirantes com Versos em Bolero” - 2017
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Atravesso as avenidas da cidade como quem chega
de algum lugar onde a cidade não havia.
Paro em frente aos prédios mais antigos
e neles a minha lembrança enxerga
os passados enterrados em suas paredes.

De algum lugar onde a cidade não havia
eu dobro as esquinas nessa caminhada
como alguém que chega pensando em partir
e sento ao meio-fio de suas calçadas
observando os fantasmas de sua melancolia.

Na chegada caminho pelas ruas estreitas da cidade
e penso em escrever um poema onde antes
existia um cinema ou uma casa antiga.
Mas desse lugar onde a cidade existia
os versos ficam escondidos e sem ritmos.

E dentro da noite vejo a cidade verdadeira
sem disfarces e sem inquietações.
Os boêmios nos bares e as putas
zanzando em busca do som mais ignorado
do silêncio de suas amarguras.

O poema ao nascer tem o cheiro das avenidas
marcadas pelas carcaças dos velhos edifícios
dos lugares onde a cidade não havia.
Assim resolvo ser o cidadão envelhecido
dentro de suas ruelas e esquinas vazias.

A ÚLTIMA DAMA DA NOITE – Rafael Rocha

Segundo capítulo do romance lançado no ano de 2002
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Os raios fortes do sol da manhã daquela terça-feira, 31 de dezembro de 1986, acordaram o major Correia exatamente quando seus olhos tentavam conciliar o sono da última noite de farra.
Soltou um palavrão por ver-se acordado, com a cabeça latejando turbilhões de lancinantes espinhos, ocasionados pela bebida e pelos desvarios noturnos.
− Cacete! Ora, porra! Quem abriu essa merda? – praquejou.
Levantou-se da cama e, quase sem rumo, com os olhos entrecerrados para evitar a forte luz solar, dirigiu-se à janela do quarto.
Quanto estava prestes a fechá-la, notou a fumaça branca vindo pelos ares matutinos em sua direção.
Assustou-se e quase perdia a compostura, mas ainda assim conseguiu fechar a janela e passar-lhe o ferrolho.
Na volta à cama, sentiu que sua curiosidade não tinha sido satisfeita e, assim, retornou, abriu outra vez a janela e olhou para fora. Todas as áreas adjacentes à casa estavam tomadas por uma bruma branca e cinza, que também trazia odores de carne queimada, incenso envelhecido e velas de cera esquecidas acesas nas catacumbas dos cemitérios e nos altares das igrejas.
− Que merda é essa?
Sentou-se na cabeceira da cama e pensou em chamar sua mulher. No entanto, lembrou que Marcionila já devia de há muito estar trabalhando na Assembleia Legislativa, ultimando os preparativos para a festa de posse de Miguel Arraes de Alencar, governador eleito naquele ano, a acontecer no dia seguinte, 1º de janeiro de 1987.
Procurou concatenar melhor as ideias e descobrir como, num dia de verão, nuvens tão estranhas tentavam encobrir a paisagem do bairro de Santo Amaro, a prenunciar borrasca ou temporal.
De repente, seus sentidos ficaram em alerta. A névoa branca e cinza começava a penetrar pelas frestas da janela e a invadir seu quarto, gerando um nevoeiro fantasmagórico, deixando-o quase sem enxergar um palmo adiante do nariz.
Sentiu os pelos ficando arrepiados com aquela sensação de que estava passando desta para melhor, quando o perfume suave de lavanda invadiu suas narinas, trazendo-lhe lembranças carnais e lúbricas de um corpo de mulher.
 − Então... Então é isso... Exatamente como ela disse... É isso... É isso...
O mistério foi desvendado em segundos.
O cheiro da lavanda misturado com a fumaça trazia ao seu olfato odores e espasmos da mulher da vida que ele mais usufruíra em suas andanças de boêmio pelas pensões do Bairro do Recife.
Sentiu como se algo de um tempo morto voltasse a incomodar seus pensamentos e deixou-se navegar no estranho nevoeiro que tomava conta do quarto.
As lembranças vieram como um filme. E, tal em um filme, ele mergulhava de corpo e pensamento. Era ator e espectador.
A mulher se aconchegava contra seu corpo como se em busca de abrigo contra as dores e enganos do mundo, e ele a enlaçava feito um pastor, protegendo a ovelha desgarrada do rebanho.
Num sei, num sei... Acho que num pega bem.
−Só uma vez. Você me deixa fazer. Uma vez só. Você nunca fez. Nunca ninguém lhe fez isso. Tá com medo, é?
Num sei se é certo. Tenho medo de perder meus controles. Num quero perder o controle de nada, visse?
−Você podia experimentar. Eu sou bom nisso. Não vai fazer mal.
Num quero sentir nada. Num quero isso. Pode acontecer coisa errada e quem vai ficar má sou eu.
− Que nada, Maria! Que nada! Vai ser bom! Eu prometo!
O beijo na boca foi longo e, ainda agora, podia sentir o gosto hortelã da saliva da mulher misturando-se com o dele, jatos contínuos de cuspe e suor nas línguas que se procuravam sôfregas e famintas.
Depois, as carnes úmidas tentaram se impregnar umas com outras, outras com umas, dardejando desejos de retornar ao útero materno e buscar abrigo contra as vicissitudes da vida.
Procurou usufruir o corpo que se entregava às suas mãos, daquele jeito bem conhecido nas suas andanças por outras carnes e suores.
Sua boca principiou a mergulhar nos interstícios e nos labirintos úmidos e perfumados. Sentia os pelos do corpo feminino eriçados, a carne quase a saltitar com os loucos espasmos de prazer e, de repente, um gemido mais longo, um quase grito, e o líquido salgado a deslizar por seus lábios, molhando sua barba e seu bigode, trazendo o odor maciço das reentrâncias femininas.
Quando Maria Rosa soltou seu uivo de fêmea na penumbra do quarto do puteiro, Correia pensou que a mulher tinha passado desta para melhor. Conhecia seus dotes de amante, mas nunca imaginara poder ocasionar tamanho transtorno numa mulher da vida.
Ao uivo de prazer nasceram longos e lancinantes gemidos, que pareciam trazer aos olhos da fêmea lembranças dolorosas de há muito perdidas. Assustado, sentou-se na beira da cama, ficando a escutar os entrecortados gemidos, os soluços e os uivares.
E, depois, o quarto principiou a se encher de fumaça, uma quente e áspera fumaça a queimar seus olhos e deixar a carne ressecada.
Ele procurou suas roupas e, logo após achá-las, vestiu-se com a maior rapidez possível, louco para fugir daqueles estranhos ritos de prazer nunca vistos ou sentidos com outras mulheres.
Antes de sair do aposento, ainda viu Maria Rosa, sentada na imensa cama de casal, deixando escapar, por todos os orifícios do corpo, grossos rolos de fumaça, e, pelos olhos, lágrimas de prazer a molhar a fronha do travesseiro, segura por ela como um lenço gigante, entre os dentes, mordendo-a como se quase pronta a escapar do mundo terrestre.
Ao abrir a porta, as outras prostitutas, descabeladas, corriam de um lado para outro, sequenciadas por uma gritaria infernal vinda de todos os recantos do puteiro, em busca de baldes de água para apagar o que pensavam ser um incêndio.
A partir desse dia, ele descobriu o motivo pelo qual a mulher não desejava mergulhar nas raias dos prazeres do sexo: esses fatos estranhos e insólitos tinham sido os primeiros orgasmos de Maria Rosa em toda sua vida de dama da noite.
Só algum tempo depois Correia apareceu na pensão, recebendo dela a história e a explicação dos motivos para tais acontecimentos.
E agora...
Agora a fumaça trazia apenas a notícia do encantamento. Deixou uma lágrima furtiva deslizar pelos cantos dos olhos e depois sorriu meio triste e macambúzio.
−Aquela puta deve estar morrendo, gozando como uma cachorra! – exclamou entredentes, antes de voltar para a cama e cair no sono, que só acabou quando a mulher Marcionila disse que o almoço estava na mesa.