quarta-feira, 26 de junho de 2019

UM POUCO DE “TUTO” – Rafael Rocha


Do livro “O Espelho da Alma Janela” – 2010

“Tuto” é um menino de rua. Mas é diferente. Não tem parecença nem se iguala com os tantos meninos de rua que perambulam pelo Recife. Seu quarto de dormir é a esquina da Rua Estreita do Rosário com a Praça da Independência. Sua casa é toda a imensidão dos bairros de Santo Antônio e de São José. Porém, “Tuto” é diferente. Não cheira cola, não puxa fumo e não assalta os transeuntes.
Na sua pequeneza de morenidade pernambucana – 12 anos – ,“Tuto” faz de tudo um pouco para sobreviver. Entra nos bares, nos botecos, nas casas de jogo de bicho, nas agências bancárias. Em todos esses locais é bem conhecido. Entra e começa a pedir. Pode ser um pão, uma coxinha de galinha, um saco de batatinha frita, um pastel. É um retrato pelo avesso dos outros meninos de sua idade. Quem o conhece sabe que se pedir algo a ele, como um raio ele atende.
“Tuto” vai ali no fiteiro e traz pra mim uma carteira de Hollywwod”. “Ei, “Tuto” traz o resultado do bicho pro tio”. “Toma esses trocados e leva pra consertar a pulseira do meu relógio, “Tuto”. "Me dá o quê, após?" “Vai “Tuto”, o tio dá uma sopa”. “Pra ganhar uma coxinha só fazendo o que eu peço “Tuto”.
E “Tuto” vai.
Compra a carteira de Hollywwod, traz o resultado do bicho, leva pra consertar a pulseira do relógio. Faz tudo certinho. Depois cobra a sopa ou a coxinha de galinha, o saco de batatinhas fritas. E também um copo com água. “Tuto” faz de tudo um pouco para sobreviver na selva cidadã. Os outros meninos e meninas de rua o dizem meio doido.
“Sou doido não, tio. Doidos são eles”.
Pai e mãe? Não sabe onde estão. Dizem que o pai é um detento do Presídio Aníbal Bruno e que a mãe morreu atropelada. Mas “Tuto” não liga para isso. Ele é um menino diferente.
“Não tem medo de viver na rua?”  “Medo? O que é medo? Nada disso, tio. Ando por aí e é tudo igual. Sei disso não”.
Conhece todas as ruas dos bairros de Santo Antônio e São José. Se alguém desejar saber onde fica a Praça do Sebo e ele estiver por perto...
“Pergunte ao “Tuto”. Ele sabe de tudo”.
Eu o conheço desde o final do ano de 2004. E sempre ao me ver ele diz:  “Tio, tô com fome”.  Pago uma coxinha de galinha, peço um refrigerante...“Quero isso, não, tio. Quero água”. “Mas isso é coca-cola, “Tuto”. “Não gosto. Quero só um copo com água”. “Tuto” talvez seja o único menino do mundo a não gostar da bebida dos ianques.
Há uns tempos não vejo “Tuto”. Uns três meses, mais ou menos. Desapareceu dos locais onde sempre dava o ar de sua graça. Quando perguntei sobre seu paradeiro a um dos meninos de rua, eis a surpresa: 
“Aquilo é um doido”. “Por quê?” “Maricas, doido e burro”. Mas...” “Quer saber, tio? Ele tá na escola. Tá numa escola da prefeitura”. “Como?!” “O besta disse que tá aprendendo a ler, oras”. De “Tuto” um pouco de cada vez. Não sei se irei vê-lo de novo. Quem sabe, um dia eu o veja homem feito escrevendo um livro sobre sua vida de menino que vagava pelas ruas do Recife?

ESTRANHO SOLIDÃO (1981)


Eu...
Quando saio às ruas com meu estranho solitário
andante comigo por todos os lugares da vida
penso em como definir o meu tempo restante
para onde ir e qual caminho devo escolher.

Eu...
Sou um dentre poucos a conhecer os reflexos
de tantas esperanças mortas ligadas à dor,
mesmo trazendo mil faces de cosmogonias passadas
não tenho nas mãos a mais sutil fatia de amor.

Eu
Tenho um estranho solitário a viver comigo
nos espaços onde a vida curte suas horas.
Fala histórias como se dando bons conselhos
(Alguém a saber das coisas e a buscar partilhar)

E eu sigo...
Para qual lado? É um problema infinito!
Nenhuma mão a guiar. Nenhum olhar para mostrar.
Vivo indeciso entre seguir o limiar do tempo novo
ou deixar o tempo morto me enfeitiçar.

Se um dia em minha porta baterem os intrigantes.
Seres de bastantes lugares da vida, andantes comigo.
Seja o estranho a estátua pétrea a guardar meu túmulo
para os inconstantes não me fazerem retornar.

Viver sozinho nesta selva borbulhante de problemas
obriga meus sonhos a sentir a vida em amplidão.
Mas a vida tem trilhas tortuosas e desconhecidas.
Vou desfazer as minhas dores por meio da razão.

Após minha passagem os levianos forasteiros
(aproveitadores dos meus flashs de luz no mundo)
Fiquem frios em espaços iguais aos deles mesmos
impresentes no cosmos onde meu éter habitar.

Seja-me ofertada a aventura de nova busca.
Possibilidade maior onde me enfronho a meditar.
Anseios de realizar senis e infantis desejos.
Esperanças que a caixa de Pandora não pode libertar.

Eu nasço em mim!
Eu vivo em mim!
Em mim eu morro!
Em mim eu ressuscito!

INTIMISTA (1983) – Rafael Rocha


Uma nuvem de chuva
gastou-se dentro de mim,
criando um grande logro
aos meus sonhos de adolescente.

Um dia,
ofertei o amor como se fosse água.
Como poderia crer que o sol de outras terras
fosse mais quente que o da minha,
evaporando todas as gotas
que escorriam do coração?

Hoje,
meu corpo se veste de pedra e de poeira
e uns dois ou cinco cabelos brancos
começam a nascer atrevidamente
pelo avesso de minha cabeça.

Mas na minha alma de verão
continua vivaz a fibra forte,
levando os sóis de outras terras
a serem penumbras.
Estacionando a vida nas esquinas
para meus sonhos serem poderosos guerreiros
aos delírios abertos
dentro da minha razão.

Não creio que haja um deus potente
para acalmar o meu inferno libidinoso e cru.
Quero uma carne de mulher
macia e quente.
Quero folhear o livro úmido 
do seu ventre.

CANÇÃO FERIDA (1984) - Rafael Rocha


Para germinar verdes
nas águas
vestimos-nos de bronze
e cortamos os ventos.

Corpos dilacerados
dizem que na Terra
a vida morre aos poucos...

Esta é a canção
dos animais
das florestas feridas...
Esta é a mínima canção
das montanhas
que deixaram de ser montanhas.

Canção cheia de donos 
que não são os homens.

TEMPO ANGULAR (1984) – Rafael Rocha


Ao mais nada haverá um tempo.
Todos os ecos emudecerão no ar.
Um tempo para repartir o que nos resta.
Um tempo para as suposições.

O amor disse tempo de crescer em sêmen
e os seres humanos zombaram.
No fundo do grande oceano
os peixes se devoraram uns a outros.

Um tempo haverá ao mais nada
mas não será ao meio-dia nem à meia-noite.
Um tempo angular será criado 
para supor que os homens estão vivos.

RIO E HOMEM (1984)



O rio corre na cidade
em leitos sujos e poluídos
igual ao sangue a correr
pelas veias humanas.

Ninguém olha essa corrida
do rio e do sangue.

No rio e no sangue a vida traz
correntes e percalços.
Ambos têm em comum
a dor do aniquilamento.
O homem mata a si mesmo
e assassina o rio
sob as luzes cidadãs.

E as águas geram mais vidas 
que as vidas geradas por homens.

LUZEIROS (1984) – Rafael Rocha


No meu tempo vivido mergulhei sol nascente.
Eu satélite em transe no espaço vagabundo.
E teus olhos percorriam meu corpo nu
como se eu fosse espaçonave sem comando.

Acariciei teu corpo no meu tempo vivido.
Homem poeta itinerante eu me fiz dentro em ti:
Entre tuas coxas e na macieza da tua boca,
buscando a fonte da paixão para matar minha sede.

Quando eu era um era milhões e era contigo
vários sóis entreabrindo seus luzeiros,
iluminando libidinoso a tua carne morena.

Quando não era teu, eu era muitos e vivia sozinho.
Hoje meu planeta é a terra de teu ventre,
onde minha espaçonave pousou bem devagar.

O MENINO AO TEMPO – Rafael Rocha


Do livro “O Espelho da Alma Janela” - 2010

- O que é um menino? - perguntou ela para mim.
- Ora, um menino? Um menino é uma coisa viva. É uma esperança a ser. O menino sempre busca um algo, pois na cabeça de todo menino a vida é um espaço parado e ele nunca cresce. O menino um dia será homem, mas se ele conseguir será sempre um menino. Eterno.
- Você se vê assim? - perguntou de novo.
- Vendo-me menino? Ser menino é ser um sonho. É ser uma casa na árvore. É ser um grande jogador de futebol. É admirar o pai e desejar a mãe. É imaginar ser gente grande e sentir que gente grande não sabe viver como menino, pois se preocupa demais com as conveniências. Preocupa-se demais com as “inconveniências” de tudo aquilo a criar uma imagem infantil.
- Porém, você não é mais um menino. É um velho!
- Sei não! Este velho de que você fala é um menino ou um velho com pensamento de menino. Sou a realidade de todos os meninos com as esperanças de criança.
- Mas você está morrendo! - implicou mais ainda.
- Ah, ah, ah! Perdão, mas o menino não sabe o que é a morte e sua vida cresce a cada instante nos seus gestos marotos, nos seu piscares de olhos e nas suas travessuras e anseios de seguir o tempo.
- Morto! Você está morto! – gritou ela.
- Ah, você não sabe de nada! Ninguém morre. O homem que é menino se transpõe no tempo. É imortal!

GUARDANAPO (1984) – Rafael Rocha



Em um guardanapo de papel
escrevi um poema triste
na mesa de um bar.

De repente, ele deixou de ser meu!

O vento traiçoeiro
deu para ensinar voo pelo ar
ao guardanapo de papel.

Quando tentei segurar o guardanapo
uma prostituta gargalhou
e um menino de rua correu atrás dele
(o poeta Marcus Antônio também).

O poema escrito no guardanapo de papel
sumiu para sempre no ar,
deixando no meu peito uma dor quase alegre.

O poema desejou ser livre!
Deve ter sido isso!

CASA ESCURA (1985) - Rafael Rocha


Existe uma casa esperando
no fim da rua
o toque na chave da luz.

Mas a escuridão do tempo
faz uma vigília infame.

Os habitantes da casa
discutem
dentro da escuridão:
– Medo dos fantasmas!
– Medo das sombras das ruas!

O sol nasce e aparenta
trazer a luz.
E a escuridão adormece,
rindo dos homens.

TRÁGICO (1986) - Rafael Rocha


Meu processo de vida é tempo aberto
às sutilezas variadas dos humanos.
Metafísica seção
espaço em branco
e velha depressão de viajante.

Segue a alma o ritual litúrgico
ao vinho carnal das presenças.
Material essência
sonho neutro
e nova máscara do eu minguante.

Onde o máximo?
Onde o matiz das ilusões
iguais às flores de um altar.
Nem santos.
Nem deuses.
Nem anjos
No meu viajar.

Um hoje.
Um amanhã.
Um ontem
e um depois.
No trágico circo
um cogumelo.
Um deserto.
E o homem 
nunca mais.