Do livro “O
Espelho da Alma Janela” – 2010
“Tuto” é um menino de rua. Mas é diferente.
Não tem parecença nem se iguala com os tantos meninos de rua que perambulam
pelo Recife. Seu quarto de dormir é a esquina da Rua Estreita do Rosário com a
Praça da Independência. Sua casa é toda a imensidão dos bairros de Santo
Antônio e de São José. Porém, “Tuto” é diferente. Não cheira cola, não puxa
fumo e não assalta os transeuntes.
Na sua pequeneza de morenidade pernambucana
– 12 anos – ,“Tuto” faz de tudo um pouco para sobreviver. Entra nos bares, nos
botecos, nas casas de jogo de bicho, nas agências bancárias. Em todos esses
locais é bem conhecido. Entra e começa a pedir. Pode ser um pão, uma coxinha de
galinha, um saco de batatinha frita, um pastel. É um retrato pelo avesso dos
outros meninos de sua idade. Quem o conhece sabe que se pedir algo a ele, como
um raio ele atende.
“Tuto” vai ali no fiteiro e traz pra mim
uma carteira de Hollywwod”. “Ei,
“Tuto” traz o resultado do bicho pro tio”. “Toma esses trocados e leva pra
consertar a pulseira do meu relógio, “Tuto”. "Me dá o quê,
após?" “Vai “Tuto”, o tio dá uma sopa”. “Pra ganhar uma coxinha
só fazendo o que eu peço “Tuto”.
E “Tuto” vai.
Compra a carteira de Hollywwod, traz o
resultado do bicho, leva pra consertar a pulseira do relógio. Faz tudo
certinho. Depois cobra a sopa ou a coxinha de galinha, o saco de batatinhas
fritas. E também um copo com água. “Tuto” faz de tudo um pouco para sobreviver
na selva cidadã. Os outros meninos e meninas de rua o dizem meio doido.
“Sou doido não, tio. Doidos são eles”.
Pai e mãe? Não sabe onde estão. Dizem que o
pai é um detento do Presídio Aníbal Bruno e que a mãe morreu atropelada. Mas
“Tuto” não liga para isso. Ele é um menino diferente.
“Não tem medo de viver na rua?”
“Medo? O que é medo? Nada disso, tio. Ando por aí e é tudo igual. Sei disso
não”.
Conhece todas as ruas dos bairros de Santo
Antônio e São José. Se alguém desejar saber onde fica a Praça do Sebo e ele
estiver por perto...
“Pergunte ao “Tuto”. Ele sabe de tudo”.
Eu o conheço desde o final do ano de 2004.
E sempre ao me ver ele diz: “Tio, tô com fome”. Pago uma coxinha de galinha, peço um
refrigerante...“Quero isso, não, tio. Quero água”. “Mas isso é coca-cola,
“Tuto”. “Não gosto. Quero só um copo com água”. “Tuto” talvez seja o único
menino do mundo a não gostar da bebida dos ianques.
Há uns tempos não vejo “Tuto”. Uns três
meses, mais ou menos. Desapareceu dos locais onde sempre dava o ar de sua
graça. Quando perguntei sobre seu paradeiro a um dos meninos de rua, eis a
surpresa:
“Aquilo é um doido”. “Por quê?” “Maricas, doido
e burro”. Mas...” “Quer saber, tio? Ele tá na escola. Tá numa escola da prefeitura”.
“Como?!” “O besta disse que tá aprendendo a ler, oras”. De “Tuto” um pouco de
cada vez. Não sei se irei vê-lo de novo. Quem sabe, um dia eu o veja homem
feito escrevendo um livro sobre sua vida de menino que vagava pelas ruas do
Recife?