sábado, 2 de dezembro de 2023

CONTOS DELIRANTES COM VERSOS EM BOLERO - Rafael Rocha

O LAGO DE CARUARU

 

Um pequeno terremoto aconteceu em Caruaru no dia 31 de outubro de 2012, durante a madrugada da quarta-feira.

A população ficou assustada, mas todos os habitantes da cidade sabiam que de vez em quando aconteciam esses pequenos tremores de terra.

Pela manhã, ficou mais assustada ainda.

O estádio de futebol do Central Sport Clube tinha desaparecido do mapa e em seu lugar nascera ou despontara (difícil achar a palavra correta) um grande lago de águas cristalinas.

A novidade causou uma pequena revolução na cidade. Como aquele lago surgira assim do nada?

A prefeitura local comunicou imediatamente o estranho fato ao Governo estadual e este levou ao conhecimento do Governo federal.

Em questão de uma hora, todas as redes de televisão do Brasil chegaram de helicóptero para divulgar o inesperado acontecimento.

As emissoras de rádio não paravam de transmitir notícias sobre isso e lamentavam o surgimento do lago, pois daí a três dias, no domingo, o Central Sport Clube teria de jogar uma partida de futebol pelo campeonato pernambucano contra uma equipe do Recife.

E agora? O que fazer?

Geólogos, geógrafos, engenheiros e cientistas de todos os cantos do país e do exterior começaram a chegar à cidade. Todos queriam ver o estranho lago e também descobrir como ele tinha tomado o lugar do estádio.

Parecia bruxaria!

Os habitantes de Caruaru é que estavam felizes, principalmente os jovens e as crianças.

- Agora teremos praia! Vai ser muito bom! - gritavam.

Algumas lanchas especiais foram trazidas e toda a área interditada. Isso gerou várias reclamações da oposição contra o prefeito e contra o governador.

- Não sabemos ainda o que isso significa! - disse o prefeito para a reportagem - Temos de tomar todo o cuidado e investigar o acontecimento. Depois, se não descobrirmos nada perigoso, liberamos o lago.

Ns primeiras horas, a vigilância foi extrema. Um rapaz terminou sendo preso no lado sul do lago por ter pescado um grande dourado de água doce com uma rede de arrasto. Assim, ao redor de todo aquele monte de água foram colocados cartazes dizendo: PROIBIDO PESCAR!

O prefeito fez uma reunião de emergência com todos os seus assessores. Um sorriso iluminava a sua face. Na reunião, ele solicitou ao senhor Bruno Lagos, um dos engenheiros de sua equipe, a montagem de uma nova estrutura hídrica.

- Agora não vai faltar água e não teremos mais racionamento!

Os exploradores científicos fizeram uma reunião à tarde. Não conseguiram descobrir nada sobre o misterioso surgimento de tanto líquido no lugar do estádio de futebol.

- É um mistério! Que coisa estranha! - diziam.

O dia terminou. O sol desapareceu no horizonte. A lua nasceu e iluminou o grande lago. Porém, milhares de pessoas queriam, porque queriam ver a surrealista aparição.

Os religiosos disseram que aquilo era um milagre. Deus estava a falar com o seu povo através das águas. Também solicitaram à prefeitura permissão para batizar as pessoas com as novas águas.

Pouca gente dormiu naquele dia e na quinta-feira. O lago era fantástico. O mundo inteiro já o conhecia através da internet e das redes televisivas.

A madrugada da sexta-feira chegou e pessoas e mais pessoas apareciam para ver in loco o fantástico lago. Policiais fardados e outros à paisana tomavam conta da multidão para que nada acontecesse com ela.

Lá para as quatro da matina um grande nevoeiro começou a tomar conta de todos os espaços circundantes àquelas águas, escondendo objetos, pessoas, veículos e tudo que estivesse tanto no centro do lago como ao redor.

O denso nevoeiro foi seguido por um forte perfume a entontecer o cérebro de todas as pessoas presentes que aos poucos foram caindo numa modorra, desabando os corpos e adormecendo.

Lá pelas oito da manhã da sexta-feira, 2 de novembro, começaram a sair do torpor em que se tinham vitimado.

As centenas de pessoas recém-chegadas dos mais estranhos lugares do mundo e do país, juntas com os milhares da população da cidade olharam-se umas às outras e começaram a se perguntar o que estavam fazendo ali naquele espaço.

Não recordavam nada.

Muitas delas começaram a acordar nas arquibancadas e até nos camarotes do estádio que tinha reaparecido no lugar do lago.

Bruxaria ou sinal dos tempos?

FELIZES NA DOR - Rafael Rocha

 

felizes na dor (*)

ponham os copos na mesa
acendam seus cigarros
tem litro de cachaça e muita cerveja
para rolar esta noite
estão cansados?
não existe cansaço para os notívagos
a eles é dada a solidão dos felizes na dor

duas horas da manhã
e vocês querendo mulheres e fodilanças?
eu serei bondoso mesmo que vocês fiquem bêbados
se alguém pegar aquele violão
abandonado lá no canto
e resolver cantar uma canção qualquer
conseguiremos espantar nossas mágoas de ébrios

elas não virão hoje

(puta merda!)
fiquem certos disso
elas são sombras decaídas e nos odeiam
por sermos tão honestos e sensíveis
e por bebermos a vida e por fumarmos a vida
ainda quero que alguém pegue o violão abandonado
e dê voz a uma canção cheia de putaria

e tu ainda diz - meu deus que grande farsa!?
- bebe o líquido amargo de tua cerveja, porra!
estás mais perto do nada que esse deus
esse abominável!

esse trágico comediante das esferas celestes
que prega a morte como culto
e deixa matar o próprio filho
para salvar os homens de suas merdas

na verdade, vos digo, na verdade
e agora sou eu o vosso profeta
“se quer saber onde está deus, pergunte a um bêbado”
(essa frase é do bukowski, outro amigo desta merda de vida!)
o bêbado tem mais consciência
da localização da mentira que um homem sóbrio

deixa que o violão toque sozinho
todas as canções do mundo
elas não cabem em nossas cabeças
que só pensam em mulheres
nos cigarros e nas cervejas
e nas ingratidões da vida
mas continuem a encher os copos
quero todos bêbados e voláteis
dançarinos de suas próprias infelicidades.


* (Escrito e falado por mim na bela cidade do Recife

no bar MANSÃO DO FERA no louco ano de 1980, quando as

merdas da vida eram mais reais que as merdas religiosas)

NOTURNOS - Rafael Rocha

 

     NATAIS

 

     Nos tempos dos natais hoje desaparecidos

     a felicidade dominava a casa. Tudo era festa.

     Todos estavam vivos regurgitando alegrias

     e criando algo igual a uma tradição divina.

 

     Nos tempos dos natais hoje desaparecidos

     meus irmãos faziam a festa com vodca.

     Meus pais davam-se as mãos e beijavam a vida.

     Eu olhava e imaginava a solidão que chegaria

     quando todos começassem a partir.

 

     Nos tempos dos natais hoje desaparecidos

     o mundo era repleto de humanos viventes

     - Avós, tios e tias, pais e mães, irmãos e irmãs -

     (hoje possuímos muitos mortos para chorar)

 

     Nos tempos dos natais hoje desaparecidos

     a vitrola tocava sambas e frevos e boleros

     e os corpos se colavam para as danças.

     As iguarias na mesa faziam convites gulosos.

     A cerveja, o champanhe, a vodca e o uísque

     idealizavam as ressacas do dia seguinte.

 

     Nos tempos dos natais hoje desaparecidos

     tudo era motivo para abraços e beijos

     e ninguém estava morto!

TIQUE-TAQUES 1984 - Rafael Rocha

 

Os meus gestos possuem anos.

Meus pés marcaram muitos caminhos.

Escrevi poemas horríveis

e outros que me fizeram chorar.

Muitas gotas de suor deslizaram na carne.

Várias ilusões morreram nas estradas.

Amei e odiei e desprezei e fui triste e alegre.

Vou passando! Muitos outros já passaram!

Cresci em carne e vou me nivelar em terra.

 

Fui prisioneiro de uma casta

dentro das minhas velhas roupas.

E nas ruas anoitecidas das cidades

desperdicei meu esperma nos ventres

e nas bocas das mulheres do mundo.

Perguntei sobre a falta de vulcões ativos

e por qual motivo os terremotos não nos chegam.

Assim criei um grandioso tédio

vomitado como o do bêbado contumaz.

 

Perdi tempo e dinheiro nas grandes lojas.

Deixei de marcar o ponto no trabalho.

Porém, todas as noites eu me sento à mesa

e – acho uma graça isso! – escrevo poemas

que não serão lidos por ninguém.

E agora se tento explicar algo em profundo

essa é apenas minha angústia de viver.

Ser um tolo ou um doente sem remédio

buscando as inúmeras cores das palavras

o tema mais definitivo e mais suave e puro

de meus antigos gestos de herói.