quarta-feira, 7 de agosto de 2019

VIDA ENLATADA – Rafael Rocha


Do livro “Abismo das Máscaras” – 2017
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As mulheres da cidade são elas e não são elas.
Fazem de conta que são elas
nos movimentos ritmados dos traseiros
com o cuidado de movê-los
para serem vistos.
As mulheres das ruas da cidade
querem ser olhadas.

Alegra-me saber o tanto que tem
de mulher nas ruas
para olhar e sorrir e desencantar
todas as vezes de quando a noite se encanta
e de quando as tardes estacionam no poente
elas abrem a vida nas paradas dos ônibus
com movimentos súbitos e poéticos
de seios e bundas
como janelas abrindo e fechando.

As calçadas do bar Savoy tinham mesas e cadeiras
e cervejeiros e prostitutas e outras mulheres
indo e passando e indo e vindo.
Mas isso aconteceu na época dos dinossauros.
O bar Savoy morreu de sífilis
e as mulheres não estão mais indo e vindo
na passarela das suas mesas e cadeiras.

E depois das vinte horas
os gatos são mais pardos e as mulheres
não estão mais nas ruas indo e vindo.
Na verdade elas são elas e não são mais elas.
Suas vidas agora ficam em frente às telas das TVs
enlatadas e acondicionadas
em novelas e em novelas e em novelas 
como mortas sem cemitérios.

ESTÁTUAS VIVAS - Rafael Rocha

Do livro “Meio a Meio” – 1979
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Os homens estão perdendo as auroras
na noite negra que desaba sobre o mundo.

Junto a que ideal anda a palavra da ordem
para essa dor que rola aos nossos pés?

Palácios são erguidos aos caudilhos da terra
e o construtor de estátuas perde-se no crepúsculo.

As faces dos homens andam iguais a pedras.
Por que eles estão distantes?
Por que eles estão tão frios?

De hora à outra as auroras adormecem
e uma noite escura desaba sobre os homens.

Apenas uma ansiedade envolve a história
num surto de gritos e gemidos e belicismos.

E mesmo com os olhos buscando o orvalho
os homens ficam a vagar no frio do inverno.

E palácios são erguidos...
Palácios são erguidos aos caudilhos da Terra!
E os lapidadores da pedra dormem sob a lama!

Por que eles não acordam?
Por que são tão frios como as estátuas?

A DESCOBERTA - Rafael Rocha

Conto inserido no livro “O Espelho da Alma Janela” (2009) agraciado pela Academia Pernambucana de Letras (APL) em 1988, com o Prêmio Leda Carvalho.

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Ele e ela na calçada uniram as bocas num demorado beijo. Era noite e nuvens negras escondiam a lua. Os corpos se apertavam um ao outro. Depois, quando o beijo acabou, ele viu que ela estava chorando. Baixou a vista. Notou o quanto ela estava longe dele. Aproximou seus lábios aos dela e ao beijá-la sentiu o sabor das lágrimas. – Por quê? – perguntou ela. – Porque a vida é assim! – respondeu ele, dando-lhe as costas e caminhando para o táxi que o esperava do outro lado da rua. Ela ficou a olhá-lo enquanto ele partia e depois jogou na sarjeta duas alianças, abriu o portão, entrou correndo em casa, jogou-se sobre a cama, chorou um pouco e adormeceu. Pela manhã, foi acordada com a carícia em seu rosto feita pelas mãos de um senhor enrugado e perto dos 70 anos. Levantou-se, olhou-se toda no espelho, penteou os cabelos brancos e se dirigiu à cozinha para preparar o desjejum. Descobriu nesse instante que ainda estava viva.

VERSOS DESTILADOS – Rafael Rocha

Do livro “Marcos do Tempo” – 2010
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Deste meu lugar destilo os versos de minhas fibras
Aos braços das mulheres ansiosas por meu canto.

Não só tão ansiosas, mas ainda repletas de desejos
E loucuras de carne e beijos e repetidas carícias.

Tenho a mulher como um espaço poético maciço
Loura, negra, branca... Todas têm segredos fixos...

E do jeito que as quero nos meus sonhos da vida
Quero-as no real de mim presas em minha caminhada.

Corpo de mulher! Que desvario para minhas noites!
Cheiros, maciezas, umidades de pelos e de lábios.

Assim como as margens de um rio recebem ondas
Meu corpo recebe as mesmas carícias dos desejos.

Deste meu lugar escrevo os versos concretos de mim
Para os olhos das belas ninfas ansiosas pelo canto.

Não apenas ansiosas elas são. São todas ansiadas.
Seus beijos e seus anelos. Seus ventres e suas almas.

Corpo feminino a se mostrar aberto aos meus anseios.
Deglutirei o sabor dos seios e o sal de tuas vísceras.

Corpo feminino a espelhar risos e outros encantos
Mergulharei rijo para conhecer teu interior secreto.

Deste meu lugar o corpo anseia por gestos obscenos
Numa cama e entre as macias pernas da fêmea agitada.

Deste lugar um oceano recebe ventos de tormenta
E naufragam meus navios nas procelosas vagas.

Quando ficas calma, corpo de mulher, és terra macia.
Onde o náufrago desliza na busca da sobrevivência.

Antes pensar em sobreviver morrendo dentro em ti.
Antes pensar em morrer sobrevivendo em teu plano.

Ainda que o poeta deva acreditar no plano próprio.
Homem que sabe ver a tua miragem no oceano.

E por mais poeta a definir ventos tempestuosos
Seja o homem o espelho e a transmutação do canto.

Canto venéreo. Canto sexual. Canto livre e sem árbitro.
Sejas tu, mulher, o destino. Sejas, tu, o último parto

Onde eu possa mergulhar em cheiros e umidades novas
E repartir contigo estes versos lúcidos e suados.