domingo, 1 de setembro de 2019

A ÚLTIMA DAMA DA NOITE – Rafael Rocha

Sétimo capítulo do romance lançado no ano de 2002
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Luiz Ferrari já se arrependera da aventura em que se tinha metido. Junto com mais três seminaristas saíra do seminário de Olinda, naquela fria noite de julho de 1951, com a intenção de conhecer o Recife e agora rezava a todos os santos pela ocorrência de um milagre de retorno rápido à sua cela no seminário.
Desde o mês de março tinha sido interno por seus pais, numa jura familiar da necessidade de se ter um padre na família para Deus colocar suas bênçãos sobre todos.
Não perguntaram se ele desejava isso. Nem ele mostrou sinais de rebeldia. Tinha sido educado por suas muitas tias solteironas para aceitar a vida religiosa e não sabia discernir o verdadeiro sentido da vida sem Deus, a Virgem Maria, o Crucificado e demais santos. Mas agora estava num local desconhecido e para ele pavoroso!
Nunca em sua vida conhecera ruas tão sombrias, onde grupos de mulheres vestidas indecentemente o abordavam, tocavam e falavam obscenidades.
A presença delas trouxe-lhe a lembrança o seu preceptor no seminário, o abade Giacomo Vitale, que sempre procurava mostrar que o principal perigo do mundo não era o Diabo, e sim, seu emissário, a mulher, enviada à Terra para tentar e levar ao inferno as almas dos homens.
Na Bíblia, todos os internos estudavam que a mulher nascera de uma costela de Adão, porém, muito mais do que isso era colocado na mente deles pelos preceptores.
“Por causa da mulher, Adão pecara e perdera a vez no Paraíso. Tudo por obra e graça da mulher, por ter levado em conta os conselhos da serpente, alma viva de Satanás”, diziam.
Seus três companheiros tinham praticamente desaparecido. Entraram em um daqueles sobrados, onde se escutavam gritos e gemidos, algazarras parecidas com festas e orgias. Perambulando pelas ruas do Bairro do Recife, Ferrari rezava a Deus e a todos os santos pedindo para não cair nas garras do demônio, quando uma sombra o alcançou na esquina da Rua do Bom Jesus com a Avenida Rio Branco.
Le garçon est-il perdu? Qu'est-ce qu'un garçon mignon fait dans la rue à la fois comme ça?
Procurou ver quem assim falava, misturando francês com um português estranho, e se viu cara a cara com Hely D’Anjour. Não imaginava que figura podia ser aquela. Olhos amendoados como os dos orientais, pálpebras pintadas de azul, mãos de longos dedos, onde o vermelho das unhas fazia um contraste com a capa branca caída sobre os ombros, quase alcançando a cintura.
Olhou e viu os lábios grossos, pintados de carmim, mostrando um sorriso lúbrico. Só não entendeu aquele desejo e luxúria a tremeluzir neles.
Emudecido, imaginando que aquela figura só podia ser o diabo em pessoa, o seminarista apressou o passo para fugir, porém D’Anjour foi mais rápido. Em um átimo estava ao lado do rapaz.
Nadim de temer d’mim, chèrie. Se tá perdido qui pr’ajudar. Sei tudo de cá, mas oui....
− Não sei o quê... Não sei nada... Tô querendo voltar pra casa e...
− Ah, oui... O queridim tá perdido... Pobrezim, pobrim.... Mass pooode deirrar as côsas aqui com a Berta. Sou a Roberta Cucu, a forfura darqui... Posso fazer chèrie munto ferliiiz.
− Não posso... Preciso voltar... Não sei como...
− Ah, ora nô... Nô pudê ir ora . Pr’onde querres ir, hein, mon enfant? Diz, diz...
− Preciso voltar pro seminário! Não sei ir... Não sei onde estou... Eu... Eu...
Pobrim de ti, mon petit! Mas deirre. Mainha darrá jeitim.... Ei, avez-vous dit séminaire?
− Sim, do seminário... Seminário... Vou ser padre... Tô no seminário de Olinda... Saí com uns colegas e eles me deixaram por aí... Perdi-os... Perdi-me... Pode me ajudar? Você pode me ajudar?
Oui, clarro, chèrie! Pooosso, poooossso, poooossooo... Porrém, ooolhe. Olinda é looooonge e arroraaa nô carro pr’alá. Nô tem jeitim. Une heure du matin et le petit prêtre dans la rue! Terrible! Que côsa! Pecaaado, pecaaado, pe-ca-dooo! Vem cá d’mim pro quentim e manhãzinha mostro como vorrtar alá. Oui? Tá certim?
− Não sei se devo... Não se devo tirar você do caminho... Você vai pra casa, não vai?
−Ah, mon amour, mon petit! Clarro! Clarro! Je rentre à la maison! Bien... É log’ali pertim. Ter um cantim só d’mim. Lá o petit amour vai drumir e logo a solar sol levo o meninim a pegar quarrrquer carro pr’Olinda e prontim, prontim... Tá bien, chèrie?
O seminarista Ferrari olhou para o acompanhante. Não sentiu perigo aparente, mesmo com os instintos apregoando ser melhor esperar o dia nascer ali mesmo na rua. Todavia, o corpo pedia um lugar quente.
A frieza da madrugada estava pondo-o em estado de torpor desvairado. Não achou ruim aceitar o convite daquela figura estranha, meio homem e meio mulher. 
Quem seria mesmo? Disse chamar-se Roberta, mas estava dando a impressão que tudo isso eram apenas maneirismos e gestos estudados. “Que mal ele pode me fazer? Está oferecendo ajuda... Por que não?”, pensou Ferrari. Assim, decidiu acompanhar D’Anjour.