quarta-feira, 21 de agosto de 2019

VINDA – Rafael Rocha

Poema inserido no livro “Meio a Meio” 
publicado no ano de 1979
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Cheguei perto de vários crepúsculos
e de imensos ventos traiçoeiros
sem saber falar a verdade do amor branco.

No dia em que cheguei fui repartido
em muitas partes distintas.
Deram-me o silêncio e eu recusei.

Cheguei quando a noite
roubava territórios ao dia
e quando vozes fracas
ricocheteavam nos muros:
Deram-me uma solidão perdida e eu recusei.

De tantas outras vezes fui repartido
mas construí minha solidão própria.
Senti-me imensidade de olhos gastos.
Mãos vazias e grandes pés sem conforto.

Disseram-me que eu partisse.
Deram-me o amor gasto pelo dólar.
E então eu decidi ficar e chegar de novo
com os braços abertos
para o vento e às montanhas.

O HOMEM DO ANO-NOVO – Rafael Rocha

Conto inserido no livro “O Espelho da Alma Janela” (2009) agraciado pela Academia Pernambucana de Letras (APL) em 1988, com o Prêmio Leda Carvalho.
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Esperava que chegassem. O dia fora cansativo, mas ele tinha a certeza de que viriam. As histórias que havia contado, tudo aquilo entregue quase sem motivo, slides da vida, solidões comparadas com outras solidões, uma dor de ser com outra dor de ser, e, estando, era de supor que eles viriam nem que fosse para, a uns cem metros de distância dos átomos do seu corpo, acenarem um adeus e sumirem na noite para ele continuar curtindo sozinho a vida.
Esperava que chegassem. A noite era longa e uma amizade despreza distâncias irrisórias e até distâncias de milhares de quilômetros podem ser cobertas pela vontade de sentir novamente o rosto, o abraço do corpo, um beijo e aquela alegria incontida de ser/ter alguém criado dentro da própria lógica. Talvez não falassem de amizade e nem era preciso. Bastava todos estarem bem perto para sentir o rio da vida borbulhando ao redor.
Esperava a chegada deles. Não, não é tarde assim. Não é tarde ainda. O dia é muito importante! E eles sabem tão bem da confiança na promessa. Posso esperar até o sol nascer, já que estamos em plena madrugada e... Avançando as horas... Ora, esperarei mais um pouco. Ainda há tempo.
Os olhos circunavegavam sobre o ar, buscando sentir o odor dos corpos que ele sabia não mais viriam criar aquela atmosfera tão costumeira dos seus últimos tempos. O corpo chamava para a cama, mas dele continuava observando, não mais aquilo que os olhos do cérebro viam com mais força dentro da noite dentro da retina dos seus sonhos.
Frases fugiram lentamente de sua memória: restou-se tão completamente bobo e só na esquina da vida!  Como fazer para que a vida não passasse tão depressa? Não, não queria que ela trouxesse nada de volta, mas que o ocaso ficasse, no mínimo, mais devagar e ele pudesse curtir o último e os próximos instantes. Por favor, vida!
As mãos, os dedos, buscaram um cigarro, depois os fósforos e os lábios jogaram à atmosfera a fumaça branca que se esvaiu no negro da noite. Não! Ele iria esperar um pouco mais. Tudo é possível. Já imaginou que entrando na sua escuridão, eles chegassem e não o vendo ali à espera ficassem mais desapontados do que ele e se fossem dessa vez para nunca mais?
O cigarro escapuliu das suas mãos rolando pela terra vermelha. Um raio de luz brilhou no horizonte e um sol imenso, tão mais imenso que a lua amarela da noite, começou a fustigar seus olhos de forma incansável e ele notou o quanto estava cansado de esperar. Deve ter acontecido algo. Não sei o que possa ter sido. Mas eles prometeram que viriam e não marcaram hora. Talvez, daqui a uns minutos cheguem, gritem meu nome, apenas para fazer uma surpresa.
Seu corpo cansado foi caindo de leve no chão cheio de areia e o sol iluminou sua face barbuda e o sono lentamente foi se apossando de sua carne. Quando deu meio-dia, viu que tinha sonhado e acordou em plena algazarra de garotos na praia, mulheres seminuas, homens curtindo a ressaca do ano-novo e viu que tinha de retornar para dentro de sua casca e cuidar do seu mundo, da sua alma e da sua vida, gêmeas deste sonho louco de homem solitário.
Com um pedaço de graveto prendeu sua angústia no velho torniquete da alma e escreveu na areia molhada: “Para gastar a dor nada como uma estrada vazia e livre”. 
Em instantes, as ondas do mar destruíram essa última filosofia.