sexta-feira, 26 de julho de 2019

TESTEMUNHA (1967) - Rafael Rocha

Do livro “Poemas dos Anos de Chumbo” – 2017
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Fechadas as portas e janelas
das ruas vêm os gritos.
Estampidos secos de tiros.

Escondido nas sombras
um homem testemunha
jovens sendo mortos.

Em seu peito bate
estímulos de medo.
Ele tenta silenciar o coração.

Os corpos são arrastados
aos caminhões verdes.
As trevas calam a dor.

O homem escondido
não viu nada
fecha os olhos e parte.

Na manhã seguinte as ruas
presidem o silêncio
e a vida escravizada.

POEMA DO TEMPO PERDIDO – Rafael Rocha


Do livro “Felizes na Dor – Tributo ao poeta Charles Bukowski” - 2016
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ficar como hoje
(porra!)
na solidão de um pequeno quarto
um cigarro (um só cigarro!)
aceso entre os dedos
e sem cerveja
(essa é a merda maior de todas!)
deitado num colchão fino
posto no chão
por bondade de outros.

ainda estou magro para esse morrer...
mas, sim, se assim ficar
morrerei magricela
pois não tenho dinheiro
nem trabalho
ainda que um diploma de jornalista
esteja pendurado no prego
de minhas paredes de dívidas reais.

e toda manhã eu vejo os outros...
indo trabalhar e trabalhar e trabalhar
todo mundo ganhando dinheiro
indo aos botecos, bares e boates
fazendo a vida voar, voar, voar...

... ainda estou alegre
por ter um colchão no piso de cimento
para poder dormir e sonhar
com o que eu possa ser qualquer dia.

AMOR EST INSANIRE – Rafael Rocha


Do livro “Loucura” - 2018
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          Amor é coisa pouca.
          Amor é coisa muita.
          A verdade do amor é o desvario.
          Amor é loucura.
          Não é paraíso
          nem é algo divino.

               Dizem alguns:
               - O amor é lindo!
               Mas o amor não tem beleza!
               O amor é algo pirado
               que busca a dominação.
               Amor não tem juízo.
               Amor não tem vergonha.

           Amor não pede perdão
           quando chega nem quando parte.
          Amor não tem medo de odiar
          e mata também sem piedade.

                O amor é destrutivo.
               Não seria amor se não destruísse.

CHICOTE NOVO – Rafael Rocha

Do livro “Farol” – 2019
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Os pobres de espírito das cidades nuas
revelaram suas almas:
deram as espáduas ao feitor
prontos a perderem a paz e os sangues
sob o látego do chicote novo.

E nos próximos invernos...
E nos próximos verões...
Sem falar das estiagens agrestes...
Levarão até mesmo os humanos íntegros
a se perderem em dores pelas ruas.

Deixaram soltas nos ares as pragas
e puseram a esperança de volta
à antiga caixa de Pandora.
Os pobres de espírito das cidades nuas
vão conhecer a nova escravidão.

Os que se fizeram pássaros vão aos ares,
olhando com temor os ninhos
e os seus filhotes do futuro,
sentindo a extinção das vidas alegres
e os seus destinos incertos.

O medo e a doutrina do terror
retornam com armas, cruzes e salmos
às casas de todos os homens.

A ÚLTIMA DAMA DA NOITE – Rafael Rocha

Quarto capítulo do romance lançado no ano de 2002
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Marco Cícero soube da proximidade do “encantamento” de Maria Rosa exatamente quando deslizava em sua cadeira de rodas do quarto à sala de estar para o café da manhã.
A fumaça branca alcançou-o na sala e um cheiro adocicado de ameixas invadiu suas narinas. As lembranças acordaram-no ainda mais. Adiantou a cadeira de rodas até a varanda e ali se deixou ficar quedo com as lembranças.
Sua filha Marly pôs-se a seu lado. Olhando-a, ele viu nos olhos da moça o espanto de quem não entende mistérios e muito menos realidades fantásticas. Um sorriso bailou imperceptivelmente nos lábios e fê-lo acariciar as mãos da filha.
Assim, ambos ficaram envoltos pela fumaça e por odores estranhos exatamente às seis da matina. O semblante de Marly buscava enfrentar os olhos de Marco, mas ele os fechara para mergulhar nas reminiscências.
Respeitando o pai e sua história de vida, ela acariciou levemente o rosto do homem e deixou-o sozinho na varanda.
Recordava...
Quem eu quero não me quer/ Quem me quer mandei embora / E por isso já nem sei / O que será de mim agora...
Os dedos percorriam o violão com grande intimidade. O instrumento musical era o corpo da mulher amada, as cordas os sentidos. A música a voejar no ar se esvaía no prazer de ter sido criada, manipulada e acariciada com a experiência de dedos e mãos tão mágicas. Os frequentadores do bar se deixavam levar pela voz de Marco Cícero, como hipnotizados. As mulheres da vida esqueciam, por instantes, que estavam a vender o corpo e se entregavam por inteiro ao prazer da melodia triste e plangente, levada às janelas dos puteiros, onde desaparecia sobre os clamores de gemidos, ais e uis e dos rangidos das molas das velhas camas patentes.
Passo as noites meditando / Revivendo meu castigo/ No meu quarto de saudade / Solidão mora comigo
Os olhos de Marco pousaram na linda mulher de pele branca e grandes olhos castanhos a espiá-lo na mesa defronte e seus dedos quase esqueceram a melodia a dar sequência nas cordas do violão. Soube naquele instante: tinha alguém para usufruir a noite consigo. Viu, num relance, os olhos da fêmea dando-lhe a mensagem de que seria sua companhia noturnal até as estrelas desaparecerem do firmamento.
Por onde anda quem me quer? / Quem não me quer onde andará?/ O que será da sua vida? / Da minha vida o que será?
Levantou-se e, dedilhando o violão, dirigiu-se para os olhos de Maria Rosa que o fitavam embevecidos, com brilhos insinuantes de lubricidades inconfessáveis.
Ambos saíram do bar lado a lado, dobrando numa das ruas transversas à Avenida Marquês de Olinda, em direção à Vigário Tenório. Os fregueses do boteco de Tião Marinheiro ficaram a escutar a voz de Marco Cícero distanciando-se, e depois deram vazão aos seus instintos, levando os copos cheios de cerveja às bocas, acendendo cigarros, dando risos pueris e fazendo sinais às meninas da noite”, que só então começavam a “fazer sala” para eles.
Não sou capaz de ser feliz / Nos braços de um amor qualquer/ Ah, se uma fosse a outra/ Que eu amo tanto e não me quer.
Porém, os desvarios sexuais na grande cama de casal da madame” quase põem Marco Cícero em pandarecos. Acordou na manhã seguinte com os raios do sol a entrar pela janela do quarto da pensão. Vendo-se sozinho e nu, com a carne do corpo lacerada pelas unhas cortantes da mulher, amaldiçoou a hora em que a conhecera e se deixara levar pelos seus encantos.
“Devia estar muito bêbado! Ora, porra! Que papel de burguês de merda estou fazendo! Caralho!”
A porta se abriu inundando de luz o aposento e Marco Cícero ficou embevecido com a aparição. Nua, com os pequenos seios de mamilos arrebitados, Maria adentrava o quarto com uma bandeja cheia de comida nas mãos, onde também se via um estojo de primeiros socorros. A pele macia e branca da fêmea mostrava ao homem que ele não tinha se enganado na escolha da beleza para aquela noite. E, ainda mais, o cheiro a sair do corpo feminino começava a deixá-lo em transe ou, melhor dizendo, como um animal no cio.
Maria Rosa notou tudo isso.
− Coma primeiro pra ficar mais forte. Que ôme”! Quase me mata na noite passada. Fudedô” do cacete tu é, visse?
− Esquece a comida. Não tenho fome alguma. É você...
− Eu sei... Sei... Mas será muito mió cumê” o que eu trouxe e deixar que eu faça uns consertos nesses arranhões. Desculpe, mas fui obrigada a enfiar as unhas em tu antes da minha perseguida cair abaixo, visse?
− Você é linda! Você é...
− “Dispois... dispois... dispois... Seje” bonzinho e coma pra ficar “fortinho”. Sou tua “subremesa”, certo?
A sobremesa, na realidade, foi um “repasto” nunca experimentado por Marco Cícero. As carícias feitas em seu corpo pela experiente mulher punham-no em estado de excitação tão desesperado, que via até formigas deslizando nas paredes entrar em trabalhos sexuais.
Quando se compenetrou que deveria dar seqüência aos trâmites da verdadeira paixão, sentiu a mulher tentando por todos os meios fugir do seu contato. Mesmo assim ele buscava-a, sedento e faminto, querendo conhecer seus ardilosos segredos, mergulhar nos seus recônditos mistérios. Sabia-se um bom amante, mas naqueles instantes matutinos estava superando-se em todos os sentidos. O desejo escorria por suas vísceras como as águas do Capibaribe encontrando-se com as do Beberibe, buscando as espumas do mar.
De repente, notou como a mulher enfraquecia suas defesas, enfiava-se com tudo e quase toda dentro dele, agoniada, molhada, deslizante, suada e praticamente vencida. Ouviu-lhe o grito furioso de fêmea no cio, o gemido longo e gutural, seguindo-se o gozo mais fantástico que ele nunca vira na vida. Pela boca, pelos olhos, pelas narinas e pelos outros orifícios do sinuoso corpo, Maria Rosa soltava longos e odoríficos vapores de fumaça branca e o envolvia num abraço mágico e atordoante.
Voltando de suas reminiscências, Marco Cícero, antes de chamar sua filha e pedir-lhe que pusesse a mesa para o café da manhã, exclamou: 
− E agora ela está morrendo! Como é que pode morrer uma mulher como aquela? Como é que morre uma mulher como aquela?...

OLHOS ABERTOS PARA A MORTE – Rafael Rocha


Quinto capítulo do livro homônimo lançado no ano de 2012 – Agraciado com Menção Honrosa pela Academia Pernambucana de Letras (APL) – Prêmio Vânia Souto Carvalho (2011)
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A paz queremos com fervor / A guerra só nos causa dor / Porém, se a Pátria amada / For um dia ultrajada / Lutaremos sem temor. As vozes dos alunos na sala de aula eram abafadas pelo modo como Fernando Clemens cantava. Parecia em êxtase. Seguia o ritmo como se aquela maneira de cantar estivesse alçando-o ao paraíso. Muitos dos seus colegas paravam o canto só para olhar e escutar. De olhos fechados, mão esquerda no peito, empertigado, o magro rapaz entoava o hino como em transe de paixão. Como é sublime / Saber amar / Com a alma adorar / A terra onde se nasce! (...) Depois, o resto da manhã era dedicado à álgebra, ao latim, ao francês, à literatura brasileira e portuguesa.
Ele não tinha amigos. No recreio ficava na sala escrevendo algumas expressões aritméticas no caderno, antes de começar a aula de matemática. Seu rosto magro de nariz adunco olhava pela janela e via os outros colegas correndo, atrás de uma bola, jogando gude, lanchando. Fazia um trejeito com os lábios como se tudo aquilo fosse algo maçante e voltava novamente aos cálculos.
Não sabia, porém, o quanto era observado por Vera Lúcia. A única que muitas vezes ficava na sala de aula, no canto mais distante, lendo alguma revista feminina ou um romance. Não olhava para ela, mas a garota de vez em quando punha seus olhos no rosto dele. Ela devorava o corpo dele com os olhos. Ele não sabia de nada disso, apesar de muitos dos seus colegas o invejarem por saberem o quanto Vera Lúcia o olhava. Por saberem que ele era o centro da atenção das fantasias daquela morena, de corpo esbelto, olhos e cabelos a imitar a atriz Elizabeth Taylor.
Um dia, alguns dos alunos resolveram retirá-lo da inação em que ficava durante o intervalo das aulas. Cercaram-no. Tomaram das mãos dele o livro de latim, jogando-o no cesto de lixo. Ele nada disse. Saiu da banca onde estava sentado, dirigiu-se ao cesto de lixo e de lá recuperou o livro. No retorno à banca, escutou a voz de Clodoveu ao pé do ouvido: “Frangote! Franguinho! Veadinho!” Num átimo, um conselho de seu pai também teve eco em seu cérebro. “O maior insulto que um homem recebe é ser chamado de frango sem o ser. Quem chamar tem de receber o troco. Da forma mais violenta possível”.
Clodoveu foi atendido no ambulatório da escola com o lápis de grafite enfiado na altura da face direita. Sangrava bastante. O diretor, padre Ramalho, tentou fazer com que ele falasse. Queria saber quem tinha sido o autor da agressão. Ao lado de Clodoveu estava Fernando, que levara o colega ao ambulatório, logo após ter enfiado com toda força o lápis em seu rosto. “Não seja dedo-duro. Foi um acidente”, dissera Fernando ao pé do ouvido de Clodoveu. “E nunca mais me chame do que me chamou lá dentro”. Os outros alunos tinham visto tudo, mas seguiram o exemplo de Clodoveu e corroboraram a afirmativa do colega quanto ao acidente do lápis. 
Foi a partir desse dia que ele se tornou ainda mais solitário. Mas não reclamava disso. Ficava até satisfeito que os outros o deixassem em paz com seus cálculos matemáticos, com seu latim e seus livros. Até o dia em que seus olhos se cruzaram com os de Vera Lúcia e ele descobriu o quanto tinha de homem e de macho.

RABISCOS PARA UMA EXPLICAÇÃO DE AMOR – Rafael Rocha

Do livro “Abismo das Máscaras” – 2017
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Um poema especial e muito elogiado pelo meu
querido amigo Enoque Vitório. O poema foi
escrito a pedido dele no ano de 1984 e aqui
está de volta na íntegra e dedicado para ele.
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Tudo que conquisto eu mereço
e do amor que ofereço
trago o brinde do começo
sem esperar seu fim.
Sonho iluminado que atravessa
todos os caminhos da promessa
e que nunca cessa
de brilhar dentro de mim.

Não sei se verás como ele vem.
Será que verás o seu também?
Mas não obrigarei ninguém
a sentir igual a mim.
Por isso eu quero agora
ter você a toda hora
sem esperar a aurora,
pois eu não penso em partir.

Portanto estarei presente
no seu abraço quente
ou num beijo diferente
a dizer como sonhar.
Você sentirá minha alma pura,
cancelando qualquer velha amargura,
ouvindo com emoção a minha jura:
- É tão maravilhoso amar!

Você terá de aceitar essa verdade.
Irei fazer o maior alarde,
pois não quero chegar tarde
a lhe envolver no anseio meu.
Eu sei o quanto ele vale a pena
como agora nesta canção pequena
rabiscada naquela noite amena
quando sua ternura me envolveu.

Pode acreditar: serei a sua planta
mesmo a seca no Nordeste sendo tanta
e falsos líderes gritando: Não adianta
tentar sequer plantar!
Serei seu caso de nordestinado!
Mandacaru alado!
Solo esturricado
para você irrigar.

E pássaro num voo libertino
vou ao encontro do seu destino.
Escrevo pelos poros nosso hino
e rabisco de amor a explicação:
- Mulher Nordeste: viva nos meus braços!
- Mulher Recife: vem voar nos meus espaços!
E você envolta em coloridos laços
vem fazer feliz meu coração.

CANTO DE FORÇA – Rafael Rocha

Do livro “Meio a Meio” - 1979
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Minha voz que seja livre.
Não adormeça meu canto.
Tudo isso é precisão máxima
para içar minha bandeira.

O meu grito que voe
até aos pés das casas pobres
e crie pássaros de amplitudes
no que antes dormia.

O meu livre seja doença
às almas dos que caminham
à casa e ao pão e ao suor
e aos cofres dos exploradores.

Meu poema que dance
acordando almas simples
para amadurecer o tempo
de outro tempo maior.