quarta-feira, 14 de agosto de 2019

FIM DA TRILOGIA – Rafael Rocha

O romance “ANDANÇAS” de Rafael Rocha 
foi lançado no final do ano de 2018
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Dezesseis anos depois de lançar A Última Dama da Noite (2002), incluindo Olhos Abertos para a Morte (2012), o escritor Rafael Rocha encerra a trilogia com este romance denominado Andanças.
Se em A Última Dama da Noite ele trouxe à baila a história marcante da prostituta Maria Rosa, e em Olhos Abertos para a Morte a vida pregressa do capitão Fernando Clemens, um torturador dos anos de chumbo entre 1964/1985, neste Andanças os principais atores fazem parte de uma saga familiar, todos possuindo ligação direta aos mesmos personagens do primeiro e do segundo romance.
O leitor vai rever, de vez em quando, paisagens e trechos das outras histórias e mergulhar nas violências, paixões e loucuras sexuais de muitos dos protagonistas.
Andanças é um romance amarrado à amizade, à paixão e ao ódio entre irmãos por parte de pai e – igual aos romances anteriores – vivencia os conflitos de uma época marcada por torturas e assassinatos  institucionalizados.
O escritor Rafael Rocha fecha com este livro a trilogia ficcional de vidas humanas ambientadas em algumas cidades do sertão pernambucano e em alguns bairros da cidade do Recife.
Que o leitor possa usufruir com carinho este trabalho.
Assim esperamos.
O EDITOR
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PRIMEIRA PARTE – CAPÍTULO 1
OTONIEL

Tomei um gole de cerveja sentado a uma das mesas do bar “Buraco do Sargento” no Pátio de São Pedro, centro do Recife.
Ao levantar os olhos vi o “mendigo”.
Estava a olhar fixamente para mim.
Porém, não pediu esmola alguma.
Ele começou a circular entre as muitas mesas do bar, enquanto meus pensamentos erravam em redemoinhos.
Eu buscava inspiração para escrever alguma coisa diferente.
- Porra! Será que não existe nada diferente nesta cidade? Será que não existe nada de especial para levar ao conhecimento do mundo?
- Existe, sim! Eu tenho o assunto!
Terminei de tomar mais um gole de cerveja e mais uma vez levantei os olhos.
Era ele de novo! Pensei que estava a pedir alguma esmola e ofereci algumas moedas. Ele fechou os olhos e abanou as mãos.
- Não! Não! Nada disso... Você quer uma história diferente! Eu tenho a história diferente!
A seguir, dissertou sobre como era fácil ler os pensamentos das pessoas, bastando olhá-las nos olhos e os meus eram um livro aberto para ele.
Sorri, irônico, e então ele começou a falar sobre mim, como se me conhecesse de há muitos anos. Trouxe à baila a forma como eu nascera; os nomes dos meus pais; dos meus avós; dos meus irmãos; das mulheres e das pessoas que faziam parte da minha vida.
No começo senti medo, mas aos poucos ele foi manipulando minha curiosidade e contando histórias.
Diariamente, no mesmo local, naqueles idos dos anos 1980, bebendo algumas cervejas, com o velho gravador Philips ligado, eu tomava conhecimento da vida de Otoniel, o “profetinha” do bairro de São José, no Recife, do seu pai Otaviano, e de Temístocles, seu irmão por parte de pai, de quem ele tinha ódio e medo.

A ÚLTIMA DAMA DA NOITE – Rafael Rocha

Sexto capítulo do romance lançado no ano de 2002
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Severina Amor olhava a madame Chica D’Amparo a contar e recontar o dinheiro apurado na noite anterior da mais afamada casa de prostituição do Bairro do Recife, naqueles fins da década de 40: o Drink’s Bar, na Rua da Moeda.
O local era ponto de encontro de políticos, jornalistas, juízes de Direito e investigadores de polícia, que ali curtiam todos os tipos de taras e caprichos sexuais sob os olhos condescendentes da mulher.
Severina notou a satisfação nos gestos da madame, imaginando que na próxima noite talvez pudesse ser menos utilizada pelos fregueses da casa, em particular pelo comendador Deusdedith Carvalhal. No entanto, sabia muito bem como isso era um sonho. Um desejo de ver-se livre das correntes que a prendiam nas paredes do estabelecimento, e sair às ruas pedindo ajuda e perdão para seus pecados de criança.
No Drink’s Bar tudo era permitido.
Talvez por isso o local fosse cognominado pelas mulheres das outras pensões de Drink’s Diabo, pelo fato de as sacanagens naturais da zona ali fugirem do lugar comum.
Nos seus 13 anos incompletos, Amor maldizia a ocasião em que penetrara no prédio para furtar uma garrafa quase vazia de guaraná Fratelli Vita, deixada numa das mesas por um dos frequentadores da casa, logo após pagar a conta. Fora descoberta pela madame, aprisionada naquelas grossas correntes de ferro e posta à disposição das taras dos fregueses da casa.
Chica D’Amparo não mostrou piedade para com ela. Quase todas as noites ela fazia leilão com o corpo da menina, e quem pagasse mais a levava para um dos quartos da pensão.
Nunca, porém, a retirava das correntes, pois isso gerava mais atração e desejo.
Permanecia acorrentada, braços e pernas abertas, recortando-se como um xis humano na grande cama e, a seguir, os clientes eleitos começavam os trabalhos de senti-la com a língua, com dedos e mãos suadas, com membros latejantes que a penetravam sem dó nem piedade. Severina, às vezes, pedia ajuda, gritava por socorro, mas apenas recebia bofetadas e judiações as mais variadas.
Só em dois dias da semana a madame não leiloava seu corpo. Nas terças e sextas-feiras, Amor era entregue aos braços do comendador Carvalhal que, ali mesmo - na grande sala/bar do puteiro - retirava-lhe as roupas, ensopava-lhe a carne e todos os orifícios do corpo com mel de abelha e a levava nos braços para o quarto, onde terminava o serviço, lambendo-a por inteiro para, no fim, jorrar sobre seu rosto um sêmen grosso e cheirando a peixe podre.
O Drink’s Bar era um puteiro de alto luxo, cuja fama transcendia o Bairro do Recife, alcançando as lonjuras da Bahia, das Alagoas e do Ceará. Muitos homens da alta sociedade desses estados nordestinos ali se faziam presentes para curtir suas taras com as mulheres de madame Chica.
Não eram mulheres bonitas.
A maioria, já envelhecida pela labuta cotidiana, trazia no rosto e no corpo as marcas das atribulações a que tinham de se submeter para continuar sobrevivendo.
Severina Amor colocou outra vez os olhos em Chica D’Amparo e viu que esta também a fitava. Tentou desviar a vista, mas tinha de jogar fora de si a necessidade de seu corpo:
− Quero fazê xixi! Quero fazê xixi!
− Cala-te, bosta de cadela prenhe! Cala-te, filha de vaca nojenta!...
− Quero fazê xixi! com fome! Quero um pedaço de pão! Quero fazê xixi e com fome, madame!
− Merda! Puta que pariu! Não vá mijar aqui não! Faz favor?...
− Quero fazê xixi! Madame, me socorra madame...
− Espeeeeeraaaaa... Vou pegar o penico. Espera um pouco, filha de uma égua!
Quando Chica D’Amparo saiu da sala, a porta da pensão foi aberta e três mulheres entraram no recinto. A da frente era tão bela e tão branca que Amor ficou com os sentidos aguçados. Nunca tinha visto alguém brilhando tanto dentro da sala penumbrosa daquele puteiro.
As outras duas mulheres acompanhantes da branca/bela ficaram circulando pelo salão, olhando as paredes decoradas com escandalosos motivos sexuais: pênis, mulheres nuas, homens travestidos de carrascos...
Ao retornar à sala, Chica D’Amparo quase esbarra com a mulher branca e bela.
O penico caiu no chão com estrondo e ela recuou até a parede mais próxima. Foi desse modo que Severina Amor conheceu Maria Rosa.
− Queria muito vê seu castelinho, amiga Chica. Realmente... Num é mermo, Eliete? Num é mermo, Marieta? É uma bela casinha, mas...
− O que vocês estão fazendo aqui? Fora daqui, cadelas vadias!
− É uma visita, Chiquinha. Só uma visita! De negócios...
− Não faço negócios com você, branquela! Fora daqui! Foraaa!...
− Mas que recepção feia, querida! Temos tanta coisa a tratá uma com a outra, sabe? Especialmente por causa daquela menina ali amarrada...
− Não se meta nos meus negócios, sua puta branquela! Deixe minha vida em paz, senão...
− Senão o quê, queridinha? O que tu fará com Maria Rosa? Diz... Diz... Eu sou toda ouvido. O que é que tu fará, queridinha?...
Chica D’Amparo fitou Maria Rosa e viu que a única saída possível era ouvir o que a mulher tinha a dizer.
Estava sozinha, as suas outras meninas dormiam e a rival, Eliete e Marieta formavam um pequeno exército. Recuou até a sua mesa de trabalho, onde escondia uma pequena pistola, todavia, Maria Rosa foi incisiva:
Num percisa ir pra tão longe, minha fia! Vamo conversar cá mermo em pé.
− Que é que você quer de mim?
− Aquela menina pra mim! Diz quanto ela custa...
− Ela é minha! É da casa! Não tá à venda!...
− Deixe de ser besta, negra puta! Diz quanto é a menina... Diz logo!
−Ela é minha! É minha melhor afilhada! Não vendo ela pra ninguém!
− Visse, Chica, eu soube que esse teu buraco faz coisas ruins e muitas das mainhas de cá não gosta, visse? Falam que aqui é o cu do diabo e eu nunca tive intimidade com esse da puta. É desgostoso pra mim, visse? Mas já que tu num diz o preço dessa menina, ela vai de graça. Eliete! Marieta! Tirem as correntes dela. Agora! Logo!
− Você não pode fazer isso! Não tem o direito!
Maria apenas olhou de viés para Severina Amor, enviando-lhe um sorriso. As suas companheiras começaram a retirá-la das correntes, quebrando-as com as chaves inglesas trazidas no esconderijo íntimo das saias. Chica D’Amparo ao ver que não podia fazer nada contra a outra, correu até sua mesa de trabalho em busca da arma, porém, Maria Rosa foi muito mais rápida.
Segurou a madame Chica pelos cabelos e a puxou de encontro a si. Severina Amor viu um clarão de prata brilhando na penumbra da sala e, depois, o rosto da madame Chica sangrando com a navalhada precisa e calculada.
O corte, da orelha ao queixo sangrava, enquanto a madame gritava, pedindo ajuda.
− Sabe, querida, já passei por um probleminha iguá ao dessa menina... Também fui sarva do mermo jeito que tô sarvando ela. Com uma diferença: minha sarvação foi paga. Mas benzinho, não quis paga. Assim só te dou isso...
E outra vez o relâmpago brilhou na sala do Drink’s Bar, cortando as carnes de Chica D’Amparo, fazendo o sangue escorrer pelo chão de madeira envernizada.
−Corre prum médico, minha querida! Num é agora que tu vai morrer não! Inda num é hora da madrinha Maria Rosa acabar com tua raça! Vou te dar um tempo, negra da pústula! Corre, fia da puta! 
A madame Chica D’Amparo desceu em desabalada carreira as escadas da sua pensão, gritando, maldizendo e soltando pragas. Maria olhou para as duas companheiras, pôs um braço sobre o ombro de Severina Amor e disse: 
− Já fizemo nossa boa ação do dia. Vamo pra casa, minha fia! Vamo curá as feridas e nos conhece milhó.

OLHOS ABERTOS PARA A MORTE – Rafael Rocha


Sétimo capítulo do livro homônimo lançado no ano de 2012 – Agraciado com Menção Honrosa pela Academia Pernambucana de Letras (APL) – Prêmio Vânia Souto Carvalho (2011)
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“Carnaval, Carnaval, / Deixei a dor em casa me esperando / E pulei e brinquei / Vestido de rei / Quarta-feira sempre desce o pano”. Naquele domingo, 4  de março de 1962, o Recife se achava envolto no turbilhão do reinado de Momo. As ruas e avenidas da cidade, devidamente ornamentadas, explodiam em frevo, samba, maracatu, confetes e serpentinas. A alegria popular contagiava. As mesas da calçada do Bar Savoy, do Brahma Chopp, do Bar Cristal, estavam todas ocupadas pelos foliões. A cerveja rolava solta bem como as doses da cachaça Pitú, Rum Merino e Rum Montilla (bebidas da moda), acompanhados por Coca-cola e gelo, com limões cortados dentro dos copos. As mulheres, fagueiras e lépidas buscavam os olhares dos homens. Muitas moças, vigiadas pelos pais, usando todo tipo de fantasia, faziam gestos sensuais e prometedores em direção aos rapazes mais jovens.
“Se estou ficando com a cabeça branca / Não é velhice, não senhor / É muito talco dos saudosos carnavais / Jogado em meus cabelos pelas mãos do meu amor”. O frevo-canção vindo dos alto-falantes colocados estrategicamente nos postes da Rua Nova e Avenida Guararapes alcançava os ouvidos dos transeuntes. Senhores fantasiados de marinheiros. Outros de piratas. As mulheres da vida bem maquiadas se misturavam com o restante da população feminina, mas eram facilmente reconhecidas pelos machos como sendo damas de fácil conquista.
Vindos da Praça Joaquim Nabuco, tomando a direção da Rua Floriano Peixoto, passando pela Casa de Detenção, Praça Barão de Mauá, Rua do Gasômetro, e retornando pela Rua da Concórdia, até alcançar outra vez a praça Joaquim Nabuco, centenas de carros, capotas arriadas, jipes, caminhões devidamente ornamentados, repletos de foliões fantasiados ou não, faziam o corso. Sempre que estacionavam ocorriam batalhas de lança-perfume, serpentinas, confetes e dava-se início a inúmeros flertes entre ambos os sexos. Tudo em um redemoinho constante, as calçadas repletas de figurantes passageiros, turistas, habitantes, alguns a dançar o frevo ao som que escapava dos alto-falantes.
Na Praça da Independência, um grande palco tinha sido montado, onde os recifenses desafiavam a lei da gravidade, sob os acordes dos frevos de rua. Em uma mesa, um tanto distante do palco, um homem magro de nariz adunco, todo vestido de negro, observava as pessoas. De vez em quando, punha seu olhar em alguém, como se buscando talentos ignorados. Gostava mais de olhar para aqueles que discutiam por qualquer coisa. Ver os gestos sutis das violências que se desenhavam, tanto nos olhos como na linguagem corporal dos foliões. No entanto, sabia muito bem que nessa área nada iria acontecer de especial para o que tinha em mente.
Seus olhos de repente pousaram em alguém. Um imenso e forte rapaz começou a chamar a sua atenção. Ele fumava e bebia comedidamente e estava acompanhado por duas mulheres, que o homem de nariz adunco sabia serem prostitutas da Rua da Praia. Ao lado do rapaz, um homem baixo, moreno e de rosto bexiguento. Reconheceu-o num relance como um dos receptadores de objetos roubados que atuava por todo o bairro de São José. Sorriu. Quando pensava que nada iria acontecer, as coisas começavam a criar raízes. Resolveu esperar. 
Colocou seus olhos de viés no rapaz e notou que este, além de grande e forte, possuía um determinado sentido de autoridade. Algo como um poder vindo de sua força física. Devia ter quase dois metros de altura. “Muito bom! Muito bom!” Prestando atenção na conversa descobriu que eles pretendiam aproveitar a noite na sede do bloco carnavalesco Batutas de São José. Viu que as mulheres estavam apressadas. O homem magro de nariz adunco pagou a bebida que estava sorvendo, acendeu um cigarro e saiu a caminhar em direção à sede do Batutas, com a certeza de que aquele grupo ia terminar a noitada carnavalesca nesse local. Não tinha ainda plano algum. Sabia, porém, que de um momento para outro conseguiria esboçá-lo.

EPÍSTOLA AUDACIOSA E PROFANA

Prefácio escrito pelo jornalista José Carlos Gomes da Silva, Olinda/PE, para o livro “ENCÍCLICA DOS HOMENS – Encyclicae Hominum” do poeta e escritor Rafael Rocha a ser lançado neste mês de agosto de 2019
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Rafael Rocha não é um papa.
Essa constatação óbvia, a rigor não significaria nada, se ele não tivesse cometido a ousadia de escrever uma encíclica.
Isso mesmo, caro leitor!
Neste volume que você tem nas mãos estão escritos os versículos que compõem a Encyclicae Hominum (Encíclica dos Homens). E, no final dela, o poeta ainda nos brinda com belos poemas de sua lavra.
Não considere, em nenhum instante, que o gesto de Rafael Rocha é uma tentativa de aproximação com os pontífices da Igreja Católica. É preciso saber que ele não tem absolutamente nenhuma boa vontade com as religiões, sacerdotes, pastores e seus seguidores, sejam quais forem.
Pelo contrário, em muitos momentos desta Encíclica dos Homens, ele revela todo o seu desprezo pelos que vivem guiados por dogmas religiosos, de joelhos nos templos, rezando e orando pela salvação de suas almas. O poeta/escritor/jornalista desdenha dessas pessoas, chamando-as de “igrejeiros”.
Se Rafael Rocha fosse um papa esta seria a 298ª encíclica publicada. Em latim, “encíclica” significa circular.
Dirigida aos bispos e aos fiéis, é o maior grau das cartas pontifícias. Sua origem são as epístolas do Novo Testamento, e define a posição da Igreja Católica sobre temas importantes para a sociedade.
A primeira encíclica da história, Urbi primum (Primeira Cidade), foi assinada pelo papa Bento XIV, em 1740, e determinava as funções dos bispos na organização da Igreja Católica. Outras, ao longo dos séculos, serviram para denunciar erros e condenar tendências e movimentos como o nazismo, por exemplo.
Nesse sentido, a encíclica Mit Brennender Sorge (Com Ardente Preocupação), publicada pelo papa Pio XI, em 1937, assume aspectos singulares, tanto pela utilização do alemão no lugar do latim (idioma oficial das encíclicas), quanto pela sua oposição corajosa ao regime nazista. Seu conteúdo é permeado pela raiva, desprezo e escárnio, sentimentos raros nas outras encíclicas.
Outros papas também assumiram posições corajosas contra os poderosos de suas épocas, e foram capazes de produzir títulos como Rerum Novarum, Pascendi Dominici Gregis e Humanae Vitae.
Todas essas encíclicas foram publicadas em momentos importantes da história da Humanidade, buscando, de uma forma ou de outra, influenciar os acontecimentos.
Se fosse mesmo papa, Rafael Rocha provavelmente seria excomungado pela Igreja Católica. Mas como poeta e escritor o seu tiro é certeiro. Sua palavra é ácida para os igrejeiros.
Sua encíclica não veio criar regras rígidas de comportamento, não busca avivar a fé de bispos e religiosos, nem procura doutrinar, condenar erros ou ensinar sobre um tema moral de modo a informar os fiéis sobre a necessidade da fé.
Pelo contrário, a Encíclica dos Homens é libertária, terrena. Logo nos seus primeiros capítulos, ela propõe a desobediência aos dogmas religiosos.
Nesta reflexão, Rafael descreve a trajetória humana no planeta. Fala da escravidão provocada pela obediência a dogmas religiosos, do deslumbramento da maternidade, do envelhecimento, da solidão, da morte.
Sua encíclica é carnal! É essencialmente humana, portanto, muito mais divina do que aquelas escritas pelos papas católicos. Aproxima o homem do universo ao constatar que um beijo na boca nos faz vizinhos das estrelas.
Esse posicionamento retoma o eterno debate entre os defensores da salvação do homem na vida eterna, e os que propõem a abolição das diversas formas de opressão humana já na vida terrestre. Rafael não quer impor uma verdade absoluta. Para ele, cada ser humano caminha em busca da própria verdade, mas a realidade nua e crua está na inexistência de um deus.
A Encíclica dos Homens mostra que o voo do homem para as estrelas é feito através da poesia, da música, da dança, do amor, da beleza, do prazer carnal, do gozo sexual. Rafael pretende amainar a dor natural do ser humano e o seu medo da morte, quando ressalta que “a vida é única e passageira, e que apenas aqui neste planeta azul poderemos viver e sonhar e voar para as estrelas”.
Essa epístola, audaciosa e profana, espalha seu evangelho poético nos ventres e nas bocas dos homens, tornando-se uma arma poderosa na luta contra os opressores, sobretudo nestes dias em que o mundo – novamente – é seduzido por ideias totalitárias e fascistas.
O Brasil agoniza, atolado até o pescoço num lamaçal de racismo, ódio, homofobia, mentiras e perseguições. Uma atmosfera sufocante para os amantes da liberdade, que sempre estiveram à frente na luta por um mundo melhor e pela igualdade entre os homens. Não é uma simples coincidência, portanto, a reação em cadeia que é gerada em contraposição aos opressores.
De fato, ao longo da história, todas as vezes em que a sociedade se viu ameaçada em seus direitos e em sua liberdade, os intelectuais, músicos, artistas, escritores e poetas saíram em seu socorro.
Rafael Rocha chama os que participam dessa resistência de guerrilheiros da palavra, quando assinala que eles, e apenas eles, “entram em trâmites de revolta”. A Encíclica dos Homens é uma exortação à luta.
Ela busca pensar a vida dos seres humanos além das paredes e dos altos muros. Encoraja o encontro com os guerrilheiros para criar um exército de homens lúcidos.
Os guerrilheiros da palavra têm plena consciência de que não há um tempo determinado para a execução desse plano de conscientização dos homens.
A Encyclicae Hominum profetiza que uma fome voraz e incontrolável invadirá o planeta, e dinheiro algum conterá sua força destruidora, nem livro sagrado, nem crucificado, nem santos, santas, jejuns ou orações.
Trata-se de um forte e atual alerta sobre as consequências que a vida na Terra sofrerá, caso os nossos destinos permaneçam nas mãos dos que consagram a fé nos fuzis e nas armas brancas; nas mãos dos que exaltam o ódio contra as minorias e contra as classes menos favorecidas; e nas mãos dos igrejeiros que se consideram filhos de um deus onisciente.
Apesar das duras palavras, da atmosfera sombria que nos rodeia, nada de pranto, nem de lamentações. O objetivo desta Encíclica é desbravar novos caminhos. Sem esquecer que a caminhada para a construção da fortaleza da consciência e da liberdade dos homens é feita palavra por palavra, frase por frase.
O propósito de Rafael é colocar os humanos a salvo dos representantes de um deus inexistente e ilusório, e bem longe daqueles governantes que não conseguem conviver com alguém que pensa de forma contrária à deles.
A publicação de uma encíclica, quando ela aponta o dedo contra os poderosos de sua época, é uma atitude corajosa. Traz consigo verdades e acelera o coração na direção da luta, erguendo a espada da liberdade.
Esta epístola de Rafael Rocha não dita regras para bispos e fiéis, pois isso, diz o autor, não ajuda em nada à sociedade, servindo apenas para espalhar falácias e perdões hipócritas.
Sim! Esta encíclica é poderosa! Busca aprisionar os fascistas nos calabouços! Quer ser uma fênix contra a prostituição da pátria!
Sua ideia primordial é juntar centenas e milhares de poetas, e milhões de poemas para encarcerar nas masmorras os gigolôs, vendilhões igrejeiros, políticos e mercenários fascistas.
Mais do que algoz dos inimigos, a Encíclica dos Homens é libertadora. É um manifesto para a criação de um exército de homens lúcidos e livres.
Dentro do atual caos em que vivemos, precisamos criar uma nova consciência, destruir os monstros para sermos cúmplices na criação de um novo tempo neste mundo.
A Encíclica dos Homens ou, em latim, Encyclicae Hominum propõe uma troca: o ser humano deve ser colocado em todos os altares, no lugar dos santos de barro e de cerâmica, e também elevado para muito acima dos ditos livros sagrados.
Cada criatura deve ser dignificada por suas ações: “Nenhum ser humano estará acima de outro. Nenhum ser humano estará abaixo de outro”.
Os guerrilheiros da palavra sabem que para alcançar esse estado de coisas é preciso reconstruir nas consciências as lembranças vivas e naturais da Humanidade.

(JCGS)
Olinda/PE, junho de 2019