terça-feira, 20 de agosto de 2019

TEMPOS IDOS – Rafael Rocha

Do livro “Marcos do Tempo” – 2010

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Deixando em sal
as minhas águas da península.
Tristeza de ter sido mundo
em tempo exilado.
Como dando sabor
às lágrimas do desterro
o meu outrora da vida
ter-me desajustado.

A dor fluiu!
Os dias ficaram inúteis e vazios.
Tal presença de glória
tanto eu ousei sonhar:
Cabelos brancos
a emoldurar o belo crânio...
A caminho de Caronte
essas geleiras vão passar.

Lembro a voz na mesa do bar:
Eu não te conheço!
Preso o pranto,
enregelou-se em pedra a dor.
Marcante dor a invadir
a espécie de mim.
Eis a voz sorrindo
a desprezar o amor.

Paixão interrompida!
Dá-se e tira! Tudo a se acabar!
Mundo que expira assim
vai para outros mares a flor.
Igual aos versos mais antigos
a sonhar desditas:
“Fonte não me leves,
não me leves para o mar”.

Eis o tempo: a fonte fria!
Sorriso zombador!
A matar o esplendor maior
daquela triste lira.
Antes de ser jogado
ao mar o corpo frágil
salvaram-no as areias
e o perfume de uma ilha.

Braços amplos acolheram
o poeta incendiado.
Deram-se mãos à paixão
na jovem pressa da vida.
O amor fluiu venoso
em novos corpos recriados
e renasceu na glória
da ilusão impressentida.

Cabelos brancos
emolduram o belo crânio.
Tais espessas geleiras
no caminho de Caronte.
E a voz repete na vida:
Não mais te conheço!
Não sei quem és!
Nem imagino de qual lugar de onde...

O DERRAME DA TIA – Rafael Rocha

Do livro “Contos Delirantes com Versos em Bolero” – 2017
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O Fiat Uno vinha correndo loucamente pela Avenida Caxangá, no Recife, cortando todos os carros que lhe apareciam na frente.
As pessoas nas calçadas ficavam assustadas.
Não respeitava nenhum sinal vermelho.
Entrou à direita, seguindo direto para o Hospital Getúlio Vargas, onde estacionou logo defronte.
Desceu do Fiat, olhou para dentro e gritou:
- Calma, tia! Fique calma que eu vou entrar e buscar uma maca pra levar a senhora na emergência.
Entrou correndo esbaforido pelo portão do hospital. Alcançou o hall.
Começou a gritar feito louco:
- Uma maca! Uma maca! Ei, enfermeiro, traz uma maca que minha tia lá no carro teve um derrame e precisa ser atendida.
Os enfermeiros passavam por ele como se ele nem existisse.
Resolveu tomar uma atitude mais agressiva e agarrou o primeiro que passava de jaleco branco.
- Ajude-me! Ajude-me! Minha tia teve um derrame e está lá no carro. Preciso de uma maca pra trazer ela à emergência.
O cara de jaleco branco olhou para ele, desvencilhou-se do agarramento.
- Não sou maqueiro nem enfermeiro, rapaz! Sou médico! Procure os maqueiros por ali!
Ele correu para o lado que o dito médico tinha apontado. Achou uma maca e dois rapazes que eram os maqueiros.
- Ajudem, por favor! Minha tia teve um derrame e está lá no carro e eu não posso trazê-la sozinho. Ajudem!
Os dois rapazes encolheram os ombros, pegaram uma maca sobre rodas e saíram ligeiros com o rapaz até à frente do hospital.
- Cadê? Cadê? - perguntaram.
- Estacionei aqui! Porra! Estacionei aqui! Cadê o meu carro? Cadê ele?
Os maqueiros olharam um a outro. E voltaram com a maca para o hall do hospital.
- Cadê meu carro? Cadê meu carro? - gritava feito um louco o rapaz.
O gorducho dono do fiteiro logo atrás dele resolveu ajudar.
- O seu carro era um Fiat Uno prata?
- Sim! Sim! Cadê ele? O senhor viu? 
- Vi, sim! Rapaz, você estacionou em local proibido e o carro acabou de ser rebocado pelo guincho do Detran.

METEORO – Rafael Rocha - 1967

Do livro “Poemas dos Anos de Chumbo” – 2017
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Nada como dar corda ao relógio
e ocasionar mutações.

Apesar dos pêndulos
ofenderem suas paredes
é preciso aguardar a hora certa.

Um meteoro possui medida exata
ao atravessar a atmosfera
cair na Terra
e se transformar em grão.

Assim também a dor
tem dimensão exata
quando atravessa
a estratosfera
de um coração.

ENCOMENDA – Rafael Rocha

Do livro “Sangramento” incluso na coletânea “Poetas da Idade Urbana” - 2013
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Encomendo minha morte às estrelas da madrugada...

Solicito:
Procurem trazê-la sorrindo calmamente
Eu esperarei
Não sairei do meu lugar.

Vestir-me-ei com roupa nova e colorida
Estarei perfumado com a seiva das ervas noturnas
As mãos perdidas nas amplidões do ser que fui.

Não se apressem, estrelas!

O limite de minha visão tem um longo trabalho
Um longo livro para ler e corrigir.
Minha casa ainda não está de todo terminada.
Tenho tantas tarefas a acabar!
Como se almoçado
Faltasse digerir os alimentos do tempo.

Quando a morte chegar
Que me veja de banho tomado
Meu corpo inteiro limpo e perfumado
Tendo escrito meu último poema.
E o último copo de cerveja
Vazio!

CLAUDETE – Rafael Rocha

Do livro “Felizes na Dor – Tributo ao poeta Charles Bukowski” – 2016
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Claudete era a mais safada
das putas do Pátio do Carmo
no centro do Recife
Claudete bebia cachaça
como se fosse água
e trepava como se
os caralhos oferecessem a ela
uma fome sanguinea

gritava como era gostoso
o gozo pelo corpo dela
ela fazia da foda
uma perpetuação
de todos os relâmpagos
Claudete não tinha
escolha para o tempo
o tempo era dela

Claudete morava
no bairro de Peixinhos
na cidade de Olinda
com a mãe e uma filha
de uns poucos dez anos
de dia Claudete era sã
 só bebia café e água
e não falava palavrão
era uma santa

Claudete matou Valdirene
na pensão de dona Amara
da rua da Concórdia
a filha de Claudete cresceu
com a mãe no presídio
a filha de Claudete hoje
é muito mais que Claudete
é a mais nova puta da cidade