segunda-feira, 2 de setembro de 2019

ANDANÇAS – Rafael Rocha

Segundo capítulo do livro homônimo lançado em 2018
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MATANÇA E VINGANÇA
Terêncio Nunes não conseguiu salvar o pequeno povoado de Calumbi naquele dia de março de 1920. Tinha armado todos os seus homens, inclusive os jagunços vindos da Bahia. Distribuíra farta munição, mas os seus comandados não estavam devidamente prontos e aptos para enfrentar os perigosos cangaceiros de Zé Viola.
Apesar da renhida luta entre os homens de Terêncio e os cangaceiros (iniciada com um longo tiroteio, culminando com a invasão da pequena vila por dezenas de homens armados com fuzis, facões e punhais), a resistência dos seus habitantes terminou cessando.
Ainda que todos ou quase todos tenham se rendido, o bandoleiro fez uma carnificina e depois deixou na praça do povoado um círculo macabro de cabeças degoladas. Aqueles que não morreram resolveram ficar ao lado do vencedor.
E tiveram de entregar tudo que possuíam de mais caro, fossem objetos de ouro, prata, dinheiro ou, como o bandido gostava, a entrega, sem protestos, das meninas mais bonitas e tenras para serem descabaçadas por ele e seus lugares-tenentes.
Terêncio foi o último a perder a vida.
Conhecedor das macabras e sanguinolentas ações daquela escória, ele não cedeu em sua luta, mesmo sabendo-a inglória. Na verdade, lutava mais por si próprio e por sua família.
No exato momento em que seu punhal rasgava o ventre de um dos cangaceiros, o choro de seu filho recém-nascido ecoava dentro da casa grande.
O punhal e o facão de Terêncio Nunes respingavam sangue, quando uma de suas criadas, nhá Zefa, enrolou o menino em alguns panos, colocou num cesto de palhinha e se embrenhou pelas ruas escuras do povoado.
Ela enfrentou o perigo com destemor. Embrenhou-se por entre os cactos, os pés de palma, os mandacarus e outras plantas da caatinga, seguindo em direção à fazenda Ingazeira, ali perto, (questão de quinze minutos de caminhada) onde colocou nos braços sexagenários do “coronel” Otaviano Nunes, pai de Terêncio, o pequeno e ainda não lavado corpo do neto.
– O que aconteceu, mulher? – inquiriu o “coronel”.
– Uma tragédia, senhor! Os cangaceiros... eles... eles... foram lá... mataram quase todo mundo.... muita gente morta...
Imediatamente, o “coronel” Otaviano entregou a criança aos cuidados da criadagem, e, a seguir, convocou e armou todos os seus homens.
Aos melhores atiradores entregou alguns modernos Winchesters trazidos da terra dos ianques por seu outro filho Antenor Nunes, já morto pela tuberculose, e partiu para defender o rebento mais velho.
Também enviou um emissário, solicitando ajuda urgente aos Pereira, da vila de Princesa Isabel, na Paraíba, seus amigos e compadres de longa data.
Quando o “coronel” chegou a Calumbi, a vila estava envolta em uma fedentina de corpos mortos, inchados e dilacerados pelos cães de rua, com os seus moradores trancados a sete chaves, temerosos de olhar para o macabro círculo de cabeças degoladas disposto na praça central.
Ele alcançou a casa do filho Terêncio e deu um urro de animal ferido ao ver o corpo da nora ensanguentado e cheio das marcas selvagens de múltiplos estupros. Na cadeira de balanço, na varanda da casa, indo e vindo ao sabor do vento, estava a cabeça de seu filho coberta pelas moscas.
Enquanto rasgava as vestes e urrava como um louco, agarrado ao corpo de Terêncio, chegaram os homens dos Pereira, da vila de Princesa.
Soube, por eles, que o bando de Zé Viola estava acampado nas proximidades das Furnas dos Cavalos, perto da povoação da Baixa Verde e isso bastou para que o sexagenário homem solicitasse vingança aos espíritos infernais da caatinga.
Ajudado por um dos seus capangas, montou em seu cavalo e partiu em busca de sangue para a sua honra:
- Venham comigo! Vamos matar todos aqueles filhos da puta! Todos!
Os cangaceiros de Zé Viola foram (em sua grande maioria) presos e esquartejados nas Furnas dos Cavalos por um bando de homens mais enlouquecidos e sedentos de sangue do que eles.
O chefe foi agarrado, juntamente com a sua mulher Marinalda de Jesus, quando tentava fugir por entre as plantas espinhentas da caatinga. Ambos se arrastavam como ratos sob o sol causticante do sertão, com a mulher maldizendo o marido, chorando e buscando proteção divina para o fruto de seis meses abrigado em seu ventre. De nada adiantou. Presos e levados à presença do “coronel” Otaviano foram supliciados na base do esquartejamento aos miúdos. O cangaceiro Zé Viola ficou por último para ver Marinalda de Jesus sofrer as dores do inferno e a fúria da vingança.
O próprio “coronel” Otaviano fez questão de enfiar seu facão do mato na barriga da mulher, na base do umbigo, rasgando o útero e matando o feto lá no fundo do ventre. Depois, o arrancou das entranhas da cangaceira, elevou o pedaço de carne para o alto como um troféu cobiçado, e o dilacerou com um só golpe do facão, do meio das pernas à cabeça.
Zé Viola, amarrado em quatro estacas enfiadas no chão por vários cordames, com as pernas e braços abertos, a se recortar como um X no solo ressecado, ainda teve coragem para insultar o “coronel”.
 - Velhote, filho de uma puta!
 E quando o facão do coronel decepou os seus órgãos genitais, e depois se enfiou desde o estômago até sua espinha dorsal como faca quente na manteiga, o bandoleiro ainda conseguiu escutar antes de mergulhar nos braços da morte:
 - Morra! Prefiro ser um filho da puta vivo do que um filho da puta morto!
 No restante daquele dia os homens do “coronel” Otaviano se dedicaram ao trabalho de esmigalhar braços e pernas, orelhas e órgãos genitais.
Retiraram dos dedos e dos pescoços degolados dos bandoleiros, joias dos mais diversos tipos. Recolheram as armas brancas, as espingardas e fuzis, os víveres, os jumentos e os cavalos espalhados pela caatinga, fugindo do cheiro de sangue fresco a deslizar pela terra seca e pelas rochas.
Os pedaços de dedos, cabeças decepadas, braços e pernas dos cangaceiros mortos foram jogados e dispersados numa extensão de quase dois quilômetros pelos homens do “coronel”.
Quando o sol começou sua sinfonia do poente, a imensa lua cheia sertaneja nasceu totalmente rubra como se tivesse testemunhado a cruel e sangrenta vingança.
Depois desse dia de fúria, o “coronel” Otaviano iniciou a educação do neto, prometendo a Deus, ao mundo e aos homens, que viveria outros vinte anos para observar o crescimento do rapaz.
Planejou tudo com o único filho que lhe restava, o raquítico João Maria, cujas más línguas sertanejas diziam que ele estava morrendo de sífilis devido às suas reinações com as quengas da velha Maria Peixoto, lá nos cafundós da fazenda Saco, em Vila Bela, atual Serra Talhada.
João Maria recebeu poder nas propriedades do filho de Terêncio para fazê-las prosperar mesmo sob as mais variadas intempéries que sempre assolavam o sertão.
Em contrapartida, o “coronel” Otaviano cumpriu a promessa de viver mais vinte anos e, quando seu neto completou os 19, ele, já penetrando nas sendas da morte, recordou que se esquecera de batizá-lo por causa da fúria acumulada em sua mente naqueles dias de vingança.
Nesses anos todos, ele nunca soube que os habitantes de Calumbi já tinham na ponta da língua o nome do rapaz. Ainda assim, chamou o padre do povoado, o holandês Dickens von Derley, e ordenou que ele batizasse seu neto com o nome de Otaviano Nunes Neto.
No entanto, o rapaz foi inscrito no batistério da pequena igreja de Calumbi como Otaviano Neto do Nunes. 
Tudo porque o religioso estrangeiro preferiu confiar na sabedoria do povo da terra do que na palavra de um homem beirando os 90 anos.

DESDENHO – Rafael Rocha

Do livro “Loucura” - 2018
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À porta da insanidade o homem saudável
canta uma ária feito louco cidadão.
Seu ritmo é repleto de pedidos
por fêmeas cheias de paixões vivazes.

A loucura desdenha o homem são
a pedir uma chave para abrir a porta:
- Não merece entrar em minha casa
e muito menos habitar essa morada.

O homem saudável desejava viver
os instantes de um louco vivaz na terra
buscando a filosofia do nada e do seu deus.
(Ser um divino humano)

Retirou-se assim da esperança
e fez da própria vida um inferno
para ser chamado de louco
no tempo que lhe restava na terra.

A VOLTA DOS RINOCERONTES – Rafael Rocha

Do livro “Farol” – 2019
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Flores cinzentas em jardins suspensos
matam o desejo sexual dos homens.
O odor dessas flores é de enxofre
quando mulheres catalogam orgasmos
e deixam de expandir os gritos
nos lençóis das camas e travesseiros.

Viver está se tornando uma farsa...

Os rinocerontes voltam às ruas,
atropelando sem piedade os pensadores.
Os caminhos até as mulheres amadas
são fechados com cercas de ferro.
Os caminhos até as águas límpidas
são vigiados por capitães-do-mato.

Morrer é mais fácil do que antes...

Os poetas e os idealistas e os sonhadores
esperam flores coloridas nascendo livres
como novas crianças nos jardins suspensos.
A Terra-Mãe está repleta de angústias.
Os vulcões entrando em erupção.
E os rinocerontes marchando pelas ruas.

Permanecer humano passou a ser estranho!