quarta-feira, 14 de agosto de 2024

PARANOIAS DE LEONARDO - RAFAEL ROCHA

 
Leonardo tinha um problema grave. Era paranoico e sofria de Transtorno Obsessivo Compulsivo. Ele tinha muito cuidado com a própria sombra e com os caminhos por onde andava e pisava.
Se as calçadas fossem lisas e sem riscos ele caminhava por sobre elas normalmente. Se visse alguma fissura ou algo quebrado, tinha o cuidado de não pisar nessa fissura ou risco, passando os pés cuidadosamente por cima até alcançar o outro lado.
O maior cuidado era com a própria sombra. Por onde andasse, a sombra tinha sempre de ficar atrás dele e jamais na frente. Achava que se desse um passo com a sombra na frente poderia cair em um buraco negro.
Assim quando saía do trabalho, à noite, sempre estava armado com uma lanterna a iluminar o caminho onde a sombra aparecesse.
O horário de meio-dia era o que ele mais gostava, porque não via a sombra nem atrás nem à sua frente.
Isso tudo junto criava para Leonardo problemas variados.
As calçadas do Recife não eram de confiança, pois muitas delas destacavam-se por terem fissuras e outros riscados.
Mas gostava de caminhar durante o dia pela Avenida Guararapes por baixo daquelas marquises dos prédios afrancesados, já que a sombra não aparecia de jeito algum para incomodar.
Leonardo viveu cerca de setenta anos.
Foi cliente de muitos psicólogos e psiquiatras do Recife, município onde morava.
Mas não era louco. Tinha apenas uma paranoia generalizada com a própria sombra e uma obsessão compulsiva com as fissuras das calçadas da cidade.
Um dia Leonardo morreu. 
 
Seu enterro ocorreu exatamente quando um eclipse total do sol escureceu por completo o céu do Recife em pleno meio-dia.

O BICHO DENTRO DO QUEPE DO GENERAL - RAFAEL ROCHA

 

 Essa história me foi contada em 1971 pelo meu tio Sílvio, de saudosa memória. E ele disse ter sido um fato real, de quando servia no Centro de Preparação dos Oficiais da Reserva (CPOR), do Recife. Tudo aconteceu na época do governo do presidente Eurico Gaspar Dutra.
O comandante do Centro, um general – cujo nome não vou citar por questão pessoal –, tinha acabado de visitar o presidente Eurico Dutra no Palácio do Catete, Rio de Janeiro, na época Capital da República, e só depois, quando já estava no Recife, deu pela ausência do seu quepe.
Estava tão acostumado a usar o dito cujo na cabeça que nem sentiu que não estava usando. Só deu pela falta do quepe quando chegou no Recife para uma reunião com outros oficiais do Centro.
– Qual o problema? - perguntei.
– Problema sério! – explicou Sílvio - O general guardou dentro do quepe um papel especial...
– Que papel?
– Bom... Depois você sabe...
– Tá certo!
– Não se pode contar uma história começando do meio nem do fim, visse?
– Concordo, mas... O general achou o quepe?
– Não achou logo. O quepe sumiu por uns dias.
– Ele não tinha um quepe reserva?
– Tinha! E como não achou o quepe original, começou a usar o reserva.
– Então?... Qual o problema?...
– Ele continuou procurando o quepe feito um doido. Fez ligações telefônicas para o Catete. Falou com cabos, sargentos, tenentes, mandou que fizessem um pente fino dentro e fora do gabinete do presidente. Fez de tudo!
– O quepe ganhou fama! Ah, ah, ah!
– Isso!
– Será que o presidente Eurico Dutra encontrou o quepe e descobriu o papel com algo perigoso escrito nele? Talvez nomes de conspiradores?!
– Tudo é possível aqui no Brasil! Mas o quepe foi encontrado cinco dias depois na casa do general, no bairro do Parnamirim, aqui no Recife.
– Porra! Mas por que o general estava tão preocupado?
– Simples, o presidente Eurico Gaspar Dutra, em 30 de abril de 1946, proibiu os jogos de azar no Brasil. Entre eles, o jogo do bicho.
– E o que isso tem a ver com o quepe do general, tio?
– Aí é que está a questão... ah, ah, ah!
– Está contando uma piada, tio?
– Que piada que nada! Estou contando um fato! Mas se é engraçado é!
– E como soube de tudo isso, tio?
– Na caserna a gente sabe de muitas coisas.
– Mas... Por que a graça?
– O general tinha o papel escondido dentro do quepe. Era uma guia do jogo de bicho do dia 29 de abril, onde dizia que ele tinha ganho uma “bolada” jogando no veado. Ele nunca achou a guia para ir receber o dinheiro.
– Quem achou o quepe achou a guia, né?
– Pegasse o fio da meada!
– Então, tio... Quem achou o quepe do general?

  – Sei lá! 

PONTOS CARDEAIS - RAFAEL ROCHA

 

lembrando meu amigo poeta Valdeci Ferraz

(1949/2021)

 

trago a cerveja amarga das amargas

para a mesa deste bar

quando a saudade em doses homeopáticas

começa a embriagar

 

eis no violão ele tocando um som dorido

que não pôde nunca ter

era sutil o toque de amigo mais querido

lembrando o bom viver

 

neste momento eu recordo as serenatas

cantadas aqui no bar

as cervejas eram espumas de cascatas

fazendo-nos chorar

 

ele era o seresteiro dessas tardes

– este poeta tanto o amou! –

era o meu companheiro dos alardes

que a poesia enviou

 

em seu violão ponteava as verdades

do amor e das tristezas

hoje só restam as futilidades

dos sons e das sutilezas

 

com enorme audácia ele vestia

o vermelho sobre o azul

cantando o amor em plena luz do dia

do norte ao leste e do oeste ao sul