Terceiro
capítulo do livro homônimo lançado em 2018
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O PADRE AMOROSO
Dickens
von Derley, religioso natural da Holanda enviado pela Santa Sé ao Nordeste do
Brasil para pregar a palavra de Deus, era conhecido em todo o sertão do Pajeú
como padre Dicá.
Naquela noite de maio de 1919, durante a
novena em homenagem
à Virgem, na igrejinha de Calumbi, ficou ofuscado com a beleza
de dona Eurídice.
Seus olhos não se despregaram da
figura morena e tímida coberta por um longo véu de seda negra, ajoelhada em um
dos bancos perto do altar-mor.
Por todos os meios ele tentou
fugir dessa visão encantadora.
E como nunca tinha visto antes
aquela pessoa, resolveu, após o ofício religioso, tomar informações sobre ela.
Logo ficou sabendo que Eurídice
Castelo Branco Aragão Martins de Barros tinha chegado há pouco ao pequeno
povoado acompanhada por seu marido Roderico Camilo Castellañeda de Alcântara
Martins de Barros.
Ambos obedeciam a recomendações
médicas, que lhes preconizaram mudanças de ares para curar uma progressiva
inflamação nos pulmões a evoluir perigosamente para uma infecção virótica que,
em questão de poucos dias iria levá-los ao túmulo.
Naturais da província portuguesa
de Trás-os-Montes protagonizaram em sua terra um tempestuoso caso de amor, que
levou suas famílias -inimigas desde quando Isabel e Fernando governavam os
reinos de Castela e Aragão - a um novo e sangrento conflito.
A inimizade entre as famílias foi
a desculpa para o casal realizar uma fuga cheia de peripécias, atravessando o
Oceano Atlântico num barco de imigrantes até alcançar o porto do Recife.
Nesse local, marcados pelo
cansaço, consideraram ser tempo de dar um basta aos percalços que os obrigaram
a conhecer as terras de além-mar.
Na capital pernambucana ficaram
alojados numa pequena casa da Rua Formosa, na freguesia da Boa Vista, onde dona Eurídice tomou conhecimento dos
primeiros sinais da gravidez, incluindo alguns sintomas estranhos de alguma
doença.
Sintomas que incluíam
persistentes tosses seguidas de escarros sangrentos durante as noites.
Os dois foram examinados pelo
clínico-geral da Santa Casa de Misericórdia, o doutor Rômulo Almeida, cujo
diagnóstico dizia o seguinte:
“Devido aos efeitos dos miasmas atmosféricos gerados pelo encontro dos
rios Capibaribe e Beberibe, incluindo a imundície a tomar conta das ruas da
cidade, eles procurassem viver numa região de ares mais secos e sem o
oportunismo dos encontros e desencontros em ambientes semifechados e apertados
dos inúmeros sobrados e águas-furtadas do Recife”.
E, disse o médico, que ambiente
mais seco poderiam encontrar a não ser no sertão do Estado, onde a luz do sol e
o forte calor enchiam de vertigens os seus habitantes, gerando animais e
plantas dos mais estranhos tipos e compleições?
Eurídice e Roderico se instalaram
em Calumbi naquele ano de 1919 e com suas poucas economias buscaram sobreviver
no clima ardente e seco, cultivando o amor nascido dos genes de Castela e
Aragão.
Quando nasceu a filha Madalena
Jesuína, a região estava sendo açoitada pelos cangaceiros comandados pelo
satânico Zé Viola.
O casal, ajudado pelo padre Dicá,
abrigou-se em um porão, nos fundos da casa paroquial, e assim conseguiu
sobreviver à sanguinolenta fúria que quase retirou o povoado do mapa.
Nesse local, Madalena Jesuína
nasceu sob as vistas de enrugadas beatas da congregação do Sagrado Coração de
Maria, inclusive, sob o olhar amoroso do padre.
Dona Eurídice, após o parto, já curtindo a fraqueza dos pulmões
desde a chegada no porto do Recife, foi atacada por uma febre maligna e
intermitente.
Três dias depois do nascimento da
menina, ela fechava os olhos cheios de mensagens amorosas enviadas ao marido
Roderico, ao seu lado ardendo em febre como um carvão aceso, pois não saíra de
sua cabeceira um só minuto.
Quando ambos selaram com um
demorado beijo na boca a passagem dela para a outra vida, na promessa de que o
amor por ele estaria esperando junto das nuvens e dos arcanjos, o padre Dicá
acreditou ter observado um relâmpago de entendimento nas pupilas de dona Eurídice.
Ela parecia querer mostrar o
quanto ele tinha sido para ambos a mão certa a oferecer a certeza da vida e da
paixão em outros espaços.
E o padre Dicá obrigou-se a
oferecer seu amor também à pequena criança colocada em seus braços. Deu
a ela a bênção e o batismo, e, acreditando-se em pecado mortal, tomou a
resolução de criá-la.
Depois de vinte e quatro horas,
gritando o nome da mulher que consigo percorrera terras e águas, Roderico
Camilo Castellañeda Alcântara Martins de Barros também morria.
Nos dias e anos a seguir, a
responsabilidade tutelar sobre a criança da única mulher a trazer amor à sua
vida ligou definitivamente o padre Dicá àqueles seres raquíticos a procurá-lo
para pedir perdão pelos seus pecados.
Tentavam acreditar que as dores
pelas quais passavam na aridez daquela terra eram provenientes dos seus
inúmeros pecados sobre a face do planeta.
Nesse ambiente religioso repleto
de missas e de novenários, com leituras do catecismo e da entrega das almas no
confessionário, cresceu Madalena Jesuína, até que seus olhos pousaram, no
alvorecer dos seus 19 anos, na figura gigantesca de Otaviano Neto do Nunes.
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