PNEU FURADO E SEM MACACO
Como estão hoje os meus companheiros de há quatro décadas?
Lembro de histórias e das mais arrematadas loucuras que fizemos em
bando pelas ruas do Recife e de Olinda lá pelos anos entre 1977 e 1980.
Sei que eles não mais estão a fazer aquelas farras homéricas e
talvez seja uma tolice cair nesse despenhadeiro e relembrar fatos passados, mas
como disse o Zeca, as histórias têm de ser contadas e, além disso, escritas.
- E quem melhor do que você para escrever elas, porra!? -
perguntou Zeca.
Não sei se devo carregar a responsabilidade de escrever essas
histórias, ainda que estivesse participando do grupo e me aventurando em
espaços quase loucos da vida.
- Ao menos uma! - pediu Zeca.
Sentados no bar Mustang, na
Avenida Conde da Boa Vista, numa noite de sexta-feira, logo após sairmos das
aulas na Universidade Católica, matutávamos para onde deveríamos ir.
Éramos cinco. Eu, Marcus, Evaldo, Henrique e Gilson.
Lá pelas tantas, ou seja, já depois da meia-noite quando nem havia
mais ônibus pelas ruas, Henrique tomou a resolução.
- O Zeca disse que depois de sair da aula iria beber em Olinda. Lá
no Bar Maconhão, à beira-mar do Carmo. E que se a gente quiser ir se encontrar
com ele... Vamos?
Não precisou nem de votação. Unanimidade.
O problema agora seria achar transporte. Os ônibus já estavam nas
garagens e não existia bacurau como hoje a funcionar de hora em hora. Ônibus
agora só às cinco da matina
Apenas os táxis notívagos realizavam viagens e esses táxis eram
fuscas de cinco lugares com o motorista.
- Vai ser complicado - disse Evaldo - Somos cinco e qualquer táxi
só leva quatro.
- Vamos tentar com aquele táxi que está ali parado - falou
Henrique – Pode ser que dê certo e ele leve nós cinco. Daqui para Olinda o cara
ganha uma boa graninha.
- Problemático... problemático... - resmungou Marcus.
Eu preferi ficar calado e deixar que eles resolvessem o problema.
Henrique e Marcus foram até o táxi e falaram com o motorista por
alguns minutos. Este, um senhor magro, cabelos grisalhos, olhou para a gente,
pensou um pouco e aceitou.
- Tudo certo - disse Henrique - Eu disse a ele que somos gente
fina, estudantes universitários e que queremos ir até Olinda para continuar a
farra. Ele aceitou levar, mas fez um pedido: a gente paga um extra para ele.
Nossa sorte, naquela época, foi a de não sermos os roliços
senhores que somos hoje devido à idade e às muitas cervejas. A magreza de cada
um ajudou.
- Bom! - disse o motorista - O maior e mais forte de vocês vem na
frente comigo. Os outros quatro se apertam no banco traseiro.
Gilson era o maior e mais forte. Ele se ajeitou na frente.
A arrumação no banco traseiro não foi muito fácil, mas
conseguimos. Fiquei até a perguntar aos meus botões se nós quatro tínhamos
engordado a lataria do carro por mais meio metro. Dito e feito, depois de todos
se arrumarem, o fusca táxi saiu normalmente com sua carga e rumou para Olinda.
Viagem tranquila até que saímos dos limites do Recife e entramos
nos de Olinda, quando, logo depois da Escola de Aprendizes Marinheiros, numa
área erma, o pneu dianteiro direito estourou.
- Porra! - exclamou o motorista - Que azar! Puta merda!
Tivemos de descer do fusca.
- Vamos trocar o pneu! - disse Henrique - A gente ajuda!
O motorista coçou a cabeleira grisalha. Encolheu os ombros e
falou:
- A merda é que estou sem macaco!
- Que beleza! - exclamei - Quero ver agora como vamos sair dessa!
E ainda teremos de pagar a corrida até aqui.
Henrique, porém, era cheio de ideias.
- Nada disso! Com macaco ou sem macaco vamos trocar o pneu e ir
para Olinda - falou.
- Como? - perguntou Evaldo.
Henrique olhou para o motorista e perguntou:
- Tem as ferramentas para desapertar os parafusos?
- Tenho, sim – apressou-se ele a dizer, abrindo o porta-malas
dianteiro, pois o motor do fusca fica na traseira, e de lá retirando um montão
de ferramentas, bem como o estepe.
- Ótimo! - exclamou Henrique, arrematando - Agora, vocês levantam
o carro aqui do lado direito e eu retiro o pneu estourado, mas vejam bem, vejam
bem, fiquem segurando o maldito fusca e não larguem o desgraçado. Não quero que
essa lataria despenque em cima de mim.
Fizemos o que ele mandou fazer.
Eu, Evaldo, Gilson e Marcus erguemos o fusca. O motorista ficou ao
lado de Henrique para ajudar, e este começou a agir.
Deu algum trabalho desparafusar tudo e retirar o pneu estourado
porque o local estava bem escuro e o motorista usava apenas um isqueiro para
clarear. De vez em quando o vento que vinha da orla marítima apagava a chama.
Mas Henrique conseguiu retirar o pneu e quando estava prestes a
colocar o novo, um automóvel Galaxie preto parou ao lado e dele desceram dois
homens com revólveres apontados em nossa direção.
- Parados! Polícia Federal! Fiquem parados e levantem os braços!
- Ninguém levanta os braços, porra nenhuma! - gritou Henrique,
deitado no chão ao lado do pneu dianteiro tentando encaixar o pneu novo.
O motorista do táxi saiu do lado de Henrique, levantou-se e se
encaminhou até os dois homens. Falou com eles durante algum tempo que pareceram
longas horas. As armas continuavam apontadas para a gente.
Mas não largamos o carro. Afinal de contas, o Henrique estava lá embaixo
e...
- Eles estão ajudando a colocar o pneu que estourou - explicou o
motorista - Estou sem macaco e eles tiveram que levantar o carro.
Um dos homens fez a volta e foi confirmar o que o motorista
falava. Olhou, guardou a arma num coldre axilar e disse para o companheiro:
- Relaxa e guarda a arma! Estão mesmo trocando o pneu! Vamos dar
uma mãozinha.
Os dois vieram, e ajudaram a levantar ainda mais o fusca,
facilitando o trabalho de Henrique.
Depois de tudo pronto, pneu novo colocado, carro no chão...
- Bom, vocês são rapazes corajosos. Ainda bem que fomos nós a
passar por aqui. Estamos perseguindo quatro comunistas que fugiram do quartel
general lá do Derby. E quando vimos vocês...
Lembro que o regime de governo da época era a ditadura
civil/militar.
- Foi isso... Foi isso... - disse o outro homem - Tiveram sorte de
sermos nós. Outros teriam atirado primeiro e perguntado depois.
A seguir, entraram no Galaxie preto e partiram.
Ficamos a olhar uns aos outros. Até que o motorista quebrou o
silêncio.
- Como é? Vão ou não vão para Olinda?
Voltamos a nos ajeitar dentro do veículo e rumamos para a Marim
dos Caetés. Já estávamos loucos para beber.
Chegando na frente do Bar Maconhão, descemos, fizemos a vaquinha e demos o dinheiro ao Henrique
para ele pagar a corrida.
O motorista do táxi recebeu o dinheiro, contou, viu tudo certo,
deu uma risada gostosa e exclamou para Henrique:
- Imagina! Imagina! Achar que vocês eram comunistas!
E o Henrique, com o rosto escurecido de graxa, inclusive as duas
mãos, disse:
- Nunca mais você vai encontrar comunistas iguais à gente!
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