Segundo capítulo do
livro homônimo lançado em 2018
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MATANÇA E VINGANÇA
Terêncio Nunes não conseguiu salvar o
pequeno povoado de Calumbi naquele dia de março de 1920. Tinha armado todos os
seus homens, inclusive os jagunços vindos da Bahia. Distribuíra farta munição,
mas os seus comandados não estavam devidamente prontos e aptos para enfrentar
os perigosos cangaceiros de Zé Viola.
Apesar da renhida luta entre os homens de
Terêncio e os cangaceiros (iniciada com um longo tiroteio, culminando com a
invasão da pequena vila por dezenas de homens armados com fuzis, facões e
punhais), a resistência dos seus habitantes terminou cessando.
Ainda que todos ou quase todos tenham se
rendido, o bandoleiro fez uma carnificina e depois deixou na praça do povoado
um círculo macabro de cabeças degoladas. Aqueles que não morreram resolveram
ficar ao lado do vencedor.
E tiveram de entregar tudo que possuíam de
mais caro, fossem objetos de ouro, prata, dinheiro ou, como o bandido gostava,
a entrega, sem protestos, das meninas mais bonitas e tenras para serem descabaçadas por ele e seus
lugares-tenentes.
Terêncio foi o último a perder a vida.
Conhecedor das macabras e sanguinolentas
ações daquela escória, ele não cedeu em sua luta, mesmo sabendo-a inglória. Na
verdade, lutava mais por si próprio e por sua família.
No exato momento em que seu punhal rasgava
o ventre de um dos cangaceiros, o choro de seu filho recém-nascido ecoava
dentro da casa grande.
O punhal e o facão de Terêncio Nunes
respingavam sangue, quando uma de suas criadas, nhá Zefa, enrolou o menino em alguns panos, colocou num cesto de palhinha
e se embrenhou pelas ruas escuras do povoado.
Ela enfrentou o perigo com destemor.
Embrenhou-se por entre os cactos, os pés de palma, os mandacarus e outras
plantas da caatinga, seguindo em direção à fazenda Ingazeira, ali perto,
(questão de quinze minutos de caminhada) onde colocou nos braços sexagenários
do “coronel” Otaviano Nunes, pai de
Terêncio, o pequeno e ainda não lavado corpo do neto.
– O que aconteceu, mulher? – inquiriu o “coronel”.
– Uma tragédia, senhor! Os cangaceiros...
eles... eles... foram lá... mataram quase todo mundo.... muita gente morta...
Imediatamente, o “coronel” Otaviano entregou a criança
aos cuidados da criadagem, e, a seguir, convocou e armou todos os seus homens.
Aos melhores
atiradores entregou alguns modernos Winchesters trazidos da terra dos ianques
por seu outro filho Antenor Nunes, já morto pela tuberculose, e partiu para
defender o rebento mais velho.
Também enviou um
emissário, solicitando ajuda urgente aos Pereira, da vila de Princesa Isabel,
na Paraíba, seus amigos e compadres de longa data.
Quando o “coronel” chegou a Calumbi, a vila
estava envolta em uma fedentina de corpos mortos, inchados e dilacerados pelos
cães de rua, com os seus moradores trancados a sete chaves, temerosos de olhar
para o macabro círculo de cabeças degoladas disposto na praça central.
Ele alcançou a casa do filho Terêncio e deu
um urro de animal ferido ao ver o corpo da nora ensanguentado e cheio das
marcas selvagens de múltiplos estupros. Na cadeira de balanço, na varanda da
casa, indo e vindo ao sabor do vento, estava a cabeça de seu filho coberta
pelas moscas.
Enquanto rasgava as vestes e urrava como um
louco, agarrado ao corpo de Terêncio, chegaram os homens dos Pereira, da vila
de Princesa.
Soube, por eles, que o bando de Zé Viola
estava acampado nas proximidades das Furnas dos Cavalos, perto da povoação da
Baixa Verde e isso bastou para que o sexagenário homem solicitasse vingança aos
espíritos infernais da caatinga.
Ajudado por um dos seus capangas, montou em
seu cavalo e partiu em busca de sangue para a sua honra:
- Venham comigo! Vamos matar todos aqueles
filhos da puta! Todos!
Os cangaceiros de Zé Viola foram (em sua
grande maioria) presos e esquartejados nas Furnas dos Cavalos por um bando de
homens mais enlouquecidos e sedentos de sangue do que eles.
O chefe foi agarrado, juntamente com a sua
mulher Marinalda de Jesus, quando tentava fugir por entre as plantas
espinhentas da caatinga. Ambos se arrastavam como ratos sob o sol causticante
do sertão, com a mulher maldizendo o marido, chorando e buscando proteção
divina para o fruto de seis meses abrigado em seu ventre. De nada adiantou.
Presos e levados à presença do “coronel”
Otaviano foram supliciados na base do esquartejamento aos miúdos. O cangaceiro
Zé Viola ficou por último para ver Marinalda de Jesus sofrer as dores do
inferno e a fúria da vingança.
O próprio “coronel” Otaviano fez questão de enfiar seu facão do mato na
barriga da mulher, na base do umbigo, rasgando o útero e matando o feto lá no
fundo do ventre. Depois, o arrancou das entranhas da cangaceira, elevou o
pedaço de carne para o alto como um troféu cobiçado, e o dilacerou com um só
golpe do facão, do meio das pernas à cabeça.
Zé Viola, amarrado em quatro estacas
enfiadas no chão por vários cordames, com as pernas e braços abertos, a se
recortar como um X no solo ressecado, ainda teve coragem para insultar o “coronel”.
- Velhote, filho de uma puta!
E quando o facão do coronel decepou os seus
órgãos genitais, e depois se enfiou desde o estômago até sua espinha dorsal
como faca quente na manteiga, o bandoleiro ainda conseguiu escutar antes de
mergulhar nos braços da morte:
- Morra! Prefiro ser um filho da puta vivo
do que um filho da puta morto!
No
restante daquele dia os homens do “coronel”
Otaviano se dedicaram ao trabalho de esmigalhar braços e pernas, orelhas e
órgãos genitais.
Retiraram dos dedos e dos pescoços
degolados dos bandoleiros, joias dos mais diversos tipos. Recolheram as armas
brancas, as espingardas e fuzis, os víveres, os jumentos e os cavalos
espalhados pela caatinga, fugindo do cheiro de sangue fresco a deslizar pela
terra seca e pelas rochas.
Os pedaços de dedos, cabeças decepadas,
braços e pernas dos cangaceiros mortos foram jogados e dispersados numa
extensão de quase dois quilômetros pelos homens do “coronel”.
Quando o sol começou sua sinfonia do
poente, a imensa lua cheia sertaneja nasceu totalmente rubra como se tivesse
testemunhado a cruel e sangrenta vingança.
Depois desse dia de fúria, o “coronel” Otaviano iniciou a educação do
neto, prometendo a Deus, ao mundo e aos homens, que viveria outros vinte anos
para observar o crescimento do rapaz.
Planejou tudo com o único filho que lhe
restava, o raquítico João Maria, cujas más línguas sertanejas diziam que ele
estava morrendo de sífilis devido às suas reinações com as quengas da velha
Maria Peixoto, lá nos cafundós da fazenda Saco, em Vila Bela, atual Serra
Talhada.
João Maria recebeu poder nas propriedades
do filho de Terêncio para fazê-las prosperar mesmo sob as mais variadas intempéries
que sempre assolavam o sertão.
Em contrapartida, o “coronel” Otaviano cumpriu a promessa de viver mais vinte anos e,
quando seu neto completou os 19, ele, já penetrando nas sendas da morte,
recordou que se esquecera de batizá-lo por causa da fúria acumulada em sua
mente naqueles dias de vingança.
Nesses anos todos, ele nunca soube que os
habitantes de Calumbi já tinham na ponta da língua o nome do rapaz. Ainda
assim, chamou o padre do povoado, o holandês Dickens von Derley, e ordenou que
ele batizasse seu neto com o nome de Otaviano Nunes Neto.
No entanto, o rapaz foi inscrito no
batistério da pequena igreja de Calumbi como Otaviano Neto do Nunes.
Tudo
porque o religioso estrangeiro preferiu confiar na sabedoria do povo da terra
do que na palavra de um homem beirando os 90 anos.
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