Conto inserido no livro “O
Espelho da Alma Janela” (2009) agraciado pela Academia Pernambucana de Letras
(APL) em 1988, com o Prêmio Leda Carvalho e com Menção Honrosa pela Academia de
Letras e Artes de Araguari (MG) no ano de 1986. Dedicado a minha avó materna Lídia
Barros de Almeida (In Memoriam)
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Nós não sabíamos o quanto ela podia ter
feito para explicar a vida.
Agora, quando a olhamos perante o vazio das
suas lembranças – coisas isoladas em parênteses temporais, intervalos fechados
entre duas incógnitas – sentimos entristecidos o enorme tamanho de sua ausência.
Ela vive um espasmo agudo de velhas
estrofes, reminiscências do seu tempo e, quantas vezes, a princípio, seus
gestos e sua voz trêmula pareciam profetizar novas ações e esperanças. Realmente,
se formos observar todas as multidões de orações de seu rosário, na contida
solidão de sua alma nonagenária, quem – possuindo-a em prosa e versos –
escreveria e contaria sua lenda diante do angustiante massacre do tempo?
Então, sempre poderemos vê-la, perdida e
esquecida em algum lugar espaço da casa. Às vezes, deglutindo para si mesma,
sonhos de uma espécie fantasiosa, os quais não somos dignos de conhecer.
A mania de gritar em nossos ouvidos uma
riqueza material nunca existente, ou ainda, de dar-nos as boas-vindas e
inquirir de cada um de nós do tempo, da saúde, do trabalho, da família e, por
incrível que pareça, dos nossos amores.
Seu corpo teima em viver. Seu cérebro, hoje
fútil, quase sempre esquece o fio da meada e estaciona em algum ponto imaginário
de sua vida vagarosa, apertada entre o quarto e um pedaço de sala, na escuridão
para sempre dos seus olhos pequenos.
Foi
preciso, portanto, nosso crescimento vir a ser mental para o nosso espaço
unidade comungar de tudo o que se passava dentro dela. Em primeiro lugar,
notamos o pensamento vivo e ignóbil de nossos cérebros de que ela sempre tinha
sido a mesma, assim velha e enrugada, deslizando para uma esclerose compacta
das artérias.
Nem sequer pensamos: um dia ela também
brincara com algumas bonecas de pano. Nunca imaginamos: sua carne também teve
desejos de sexo. Nem chegamos a crer: seus olhos também derramaram lágrimas por
causa da morte e, por dores da vida, seus lábios sorriram com sua primeira
criança chorando em seus braços. Nunca acreditamos em nada do que ela nos
contara.
Mas nessa nossa estúpida qualidade de quem
possui oportunos meios de viver, ouvir, ver, gritar, correr e amar nas pressas
deste século, e, também apressadamente, tentar transformar o mundo, hoje vimos
seus gestos e ficamos estupefatos a pensar antecipadamente no futuro de nós
mesmos.
Estúpidos, não vimos por onde acreditar que
essa carne flácida, enrugada, feia e velha, teve um dia o desabrochar da
menina-moça e a suavidade veludo perfume da amante.
Então, nesse princípio de entendimento, quando
chegamos a ver o quanto ela representa de humano, quando observamos que sua
presença dentro do nosso mundo ainda é uma presença de carne e respiração como
a nossa e não uma alegoria simbólica do passado - mas uma presença concreta de
nome e gestos mortais - acreditamos em sua revelação de vida.
Realmente, pareceu aos nossos olhos e
ouvidos que esse entendimento, mesmo tardio, tornou-se, ele mesmo, uma
construção erguida por sua presença de carne e espírito.
E, assim, quando naquela tarde de setembro,
seu corpo passou rente aos nossos, buscando refúgio em uma das poltronas da
sala, com as mãos apalpando as paredes e os móveis, sem pedir ajuda a nenhum de
nós, quando a vimos sentada, estávamos tão vivos dentro do seu silêncio, que ficamos
aterrorizados quando ela nos disse:
“É
muita terra lá no quarto. Muita terra. Muita...”
Como nossas bocas não
pronunciaram palavras, assustadas com aquela interrupção dos nossos instantes
de seres presos a um colóquio de sonhos interiores, ela teimou em continuar
falando e, a partir daí, sentimos sua presença tão igual à nossa no túnel do
tempo:
“Acordei coberta de terra. Tive de balançar o lençol da cama para poder
me levantar. Da cabeça aos pés coberta de terra. Vocês têm de achar um jeito de
limpar o quarto. Ele está cheio de terra. Muita terra.”
Assustados, olhamos uns para os outros.
Tudo que ela falara tomou uma forma ágil de pássaro. Algo assim como uma
premonição vaga, porém concreta, de um fim em começo, igual à carne se
envilecendo e, aos poucos, caindo como poeira de dentro de suas vestes,
mostrando o esqueleto numa órbita fixa de satélite a planeta, mistifório de
estrelas ao epílogo do ciclo vital.
Saímos de casa e fomos para a rua. Não nos
olhamos mais e parecia que estávamos vendo a vida de cada um saindo do corpo
indivíduo. Observamos que nossos pensamentos eram uns dos outros e não próprios
a cada um.
Quando voltamos da rua e entramos em casa,
ela ainda permanecia sentada na mesma poltrona, não sabemos dizer se mais certa
com seus pensamentos, puxando e repuxando com o polegar e o indicador da sua
mão direita, uma mecha de fios prateados da cabeleira que deslizava e se
enrolava, deslizava e se enrolava de forma quase contínua sobre a sua orelha e
a sua face.
Nos outros dias, nossos pensamentos estavam
bem mais ligados a todos os comezinhos gestos dela. Ligamos a ela de tal forma
nossas individualidades que os reflexos dos nossos pensamentos saltitavam nas
paredes da casa e, como em um cinema, ficamos estáticos assistindo a sua
história. À noite, nossos olhos observavam seus gestos procurando o sono,
ouvíamos suas conversas com pessoas invisíveis dentro do quarto, suas canções
dos tempos de outrora perturbando a nossa letargia de seres vivos.
A pergunta que mais nos fazíamos era apenas
uma: “Quem está vivo e quem está morto?”
Nós, que de há muito tínhamos desacreditado
em Deus, ficamos espantados com o retorno de milhares de subdivindades à nossa
casa.
Ela rezava as ave-marias de modo tão
ininterrupto que o quarto se enchia de anjos e tresandava a velas de igreja.
Porém, não achamos justo reclamar de nenhum
desses fatos, mesmo quando a ouvíamos, quase aos gritos, pedir perdão por todos
os pecados de sua vida, girando velozmente os dedos pelas contas do rosário em
busca de uma ave-maria mais poderosa que todas ou de um salve rainha mãe de
deus que lhe abrisse as portas da morada celeste.
Um dia houve quando a surpreendemos num colóquio
com a parede do quarto. Falava de sua inutilidade.
Falava de sua solidão.
Chamava pessoas cujos nomes nos eram
estranhos. Fantasmas de sua remota infância talvez estivessem desfilando
perante ela. Rostos que só ela teve oportunidade de conhecer. Sabíamos de sua
cegueira, mas ela estava vendo com os olhos da memória e suas conversas com a
parede do quarto deviam receber respostas, pois existia uma continuidade
assombrosa de questões debatidas.
Ouvimos sua oração para uma subdivindade
feminina protetora dos cegos e o seu pedido de retorno da visão para voltar a
pregar botões em camisas de brim, costurar camisas para os rapazes da rua onde
morava, alinhavar calças e ternos de linho, acertar o acabamento final em palas
e bainhas numa velha máquina de costura Singer.
E, depois, como se uma enorme pedra
desabasse sobre o seu corpo, vimos seus dedos rodopiando nas contas do rosário
e uma oração sem nome chegou aos nossos ouvidos.
Ficamos transidos de medo, ouvindo sua voz
trêmula chamando a morte.
E,
então, quando resolvemos voltar à quadra da infância, vimo-nos garotos em volta
de seu corpo de matrona risonha, a nos ofertar, ao pé da velha máquina de
costura, carretéis de madeira outrora cheios de linhas coloridas, caixas vazias
de sapatos, onde amarrávamos barbantes para arrastar pelos corredores de sua
casa automóveis e trens imaginários, como hoje ela puxa suas recordações
através de uma longa teia de lembranças, em ligação íntima à sua crença cristã
na vida eterna, e ao seu temor humano dos sete palmos abaixo dos grãos da
terra.
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