Oitavo
capítulo do romance lançado no ano de 2002
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Do
diário de Jurandir Farias:
Ela não morreu de uma hora para
outra como se imagina. Foi uma morte gradual, lenta, como se o tempo não
desejasse seu morrer antes que todos os sopros e ventos deste mundo conhecessem
melhor seu corpo.
Sabia, sim, estava partindo de
vez, mas as únicas reclamações a sair de sua boca diziam respeito ao abandono
em que se achava relegada: “Eu, eu, eu, logo eu, a mais famosa, a mais
procurada, a mais badalada madama...”
Chamou-me ao seu leito de morte
ali mesmo no prédio da Rua Vigário Tenório.
No dia 29 de dezembro de 1986,
pus-me em contato com odores acres de velhice, mofo, rato e baratas no antes
mais limpo puteiro da zona.
Conhecedor daquela pensão em seus melhores dias, fiquei estarrecido ao notar o
abandono em que se encontrava a casa.
E recordei ocasiões anteriores...
Seresteiros reunidos no grande salão/bar, encantando os fregueses com canções
da época e as mulheres da noite vestidas com suas melhores roupas, maquiadas e
vivazes... E, com o passar dos anos, devido ao progresso, os violões e
cavaquinhos substituídos pela famosa radiola de ficha.
Tudo nesse local falava de amores
passageiros, paixões desvairadas e desejos carnais, tentando desobrigar das
responsabilidades da vida, homens, mulheres, sapatões, viados e coisas
mais.
Porém, era um antro gerador de
sonhos e muitos romances criaram asas no ambiente, como o do coronel do
Exército, Ernani Mastrogallo e a louríssima Mércia Silene.
Foi uma paixão avassaladora.
A menina da noite contou a Maria Rosa como estava sendo assediada
pelo militar e ficou surpresa ao ver a madame
sorrir.
Silene perguntou se isso era
possível e se a mainha estava
disposta a perder sua companhia por ela estar amando, recebendo duas perguntas
em troca, às quais nunca conseguiu responder:
− Menina, seus sentimentos são
sentimentos de muié ou de puta? E uma
puta é bicho ou muié?
Um mês depois, a louríssima
Silene abandonava a pensão da Vigário Tenório e, junto com o coronel Ernani
partia para a cidade de Florianópolis, onde ainda hoje vive, cercada de filhos,
netos, e proprietária de uma fazenda onde se cultiva soja e se faz criação de
gado.
Esse foi um dos pormenores
contados pela mainha antes do seu
encantamento. Uma das coisas a fazê-la rir e chorar ao mesmo tempo, ligada à
felicidade alcançada pela afilhada ao
partir para essa aventura, e à dor de imaginar que tinha perdido um pedaço de
si mesma.
“Por isso me senti iguá a Silene, partindo pro desconhecido. Também fiz
isso e só ganhei dissabor”, foi um pedaço de sua confissão.
Vendo assim o seu tempo sendo
colocado para escanteio, passou a falar depressa demais, e as histórias criavam
liames umas com as outras, quase me levando a imaginar seu cérebro saindo das engrenagens.
De repente, às dez horas da
manhã, sentou-se na cama e segurou meu rosto com suas mãos esqueléticas,
exclamando:
−
Também matei gente, meu fí!... Isso
incomoda tua mainha! Tenho um medo
tão grande de partir p’ôtro mundo com
esse pecado... Perciso de um padre
pra me sarvar! Oh, Deus!...”
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