segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

A ÚLTIMA DAMA DA NOITE – Rafael Rocha

Oitavo capítulo do romance lançado no ano de 2002
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Do diário de Jurandir Farias:

Ela não morreu de uma hora para outra como se imagina. Foi uma morte gradual, lenta, como se o tempo não desejasse seu morrer antes que todos os sopros e ventos deste mundo conhecessem melhor seu corpo.
Sabia, sim, estava partindo de vez, mas as únicas reclamações a sair de sua boca diziam respeito ao abandono em que se achava relegada: “Eu, eu, eu, logo eu, a mais famosa, a mais procurada, a mais badalada madama...”
Chamou-me ao seu leito de morte ali mesmo no prédio da Rua Vigário Tenório.
No dia 29 de dezembro de 1986, pus-me em contato com odores acres de velhice, mofo, rato e baratas no antes mais limpo puteiro da zona. Conhecedor daquela pensão em seus melhores dias, fiquei estarrecido ao notar o abandono em que se encontrava a casa.
E recordei ocasiões anteriores... Seresteiros reunidos no grande salão/bar, encantando os fregueses com canções da época e as mulheres da noite vestidas com suas melhores roupas, maquiadas e vivazes... E, com o passar dos anos, devido ao progresso, os violões e cavaquinhos substituídos pela famosa radiola de ficha.
Tudo nesse local falava de amores passageiros, paixões desvairadas e desejos carnais, tentando desobrigar das responsabilidades da vida, homens, mulheres, sapatões, viados e coisas mais.
Porém, era um antro gerador de sonhos e muitos romances criaram asas no ambiente, como o do coronel do Exército, Ernani Mastrogallo e a louríssima Mércia Silene.
Foi uma paixão avassaladora.
A menina da noite contou a Maria Rosa como estava sendo assediada pelo militar e ficou surpresa ao ver a madame sorrir.
Silene perguntou se isso era possível e se a mainha estava disposta a perder sua companhia por ela estar amando, recebendo duas perguntas em troca, às quais nunca conseguiu responder:
− Menina, seus sentimentos são sentimentos de muié ou de puta? E uma puta é bicho ou muié?
Um mês depois, a louríssima Silene abandonava a pensão da Vigário Tenório e, junto com o coronel Ernani partia para a cidade de Florianópolis, onde ainda hoje vive, cercada de filhos, netos, e proprietária de uma fazenda onde se cultiva soja e se cria gado.
Esse foi um dos pormenores contados pela mainha antes do seu encantamento. Uma das coisas a fazê-la rir e chorar ao mesmo tempo, ligada à felicidade alcançada pela afilhada ao partir para essa aventura, e à dor de imaginar que tinha perdido um pedaço de si mesma.
“Por isso me senti iguá a Silene, partindo pro desconhecido. Também fiz isso e só ganhei dissabor”, foi um pedaço de sua confissão.
Vendo assim o seu tempo sendo colocado para escanteio, passou a falar depressa demais, e as histórias criavam liames umas com as outras, quase me levando a imaginar seu cérebro saindo das engrenagens.
De repente, às dez horas da manhã, sentou-se na cama e segurou meu rosto com suas mãos esqueléticas, exclamando:
− Também matei gente, meu !... Isso incomoda tua mainha! Tenho um medo tão grande de partir p’ôtro mundo com esse pecado... Perciso de um padre pra me sarvar! Oh, Deus!... 

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