Segundo
capítulo do romance lançado no ano de 2002
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Os
raios fortes do sol da manhã daquela terça-feira, 31 de dezembro de 1986,
acordaram o major Correia exatamente quando seus olhos tentavam conciliar o
sono da última noite de farra.
Soltou
um palavrão por ver-se acordado, com a cabeça latejando turbilhões de
lancinantes espinhos, ocasionados pela bebida e pelos desvarios noturnos.
−
Cacete! Ora, porra! Quem abriu essa merda? – praquejou.
Levantou-se
da cama e, quase sem rumo, com os olhos entrecerrados para evitar a forte luz
solar, dirigiu-se à janela do quarto.
Quanto
estava prestes a fechá-la, notou a fumaça branca vindo pelos ares matutinos em
sua direção.
Assustou-se
e quase perdia a compostura, mas ainda assim conseguiu fechar a janela e
passar-lhe o ferrolho.
Na
volta à cama, sentiu que sua curiosidade não tinha sido satisfeita e, assim,
retornou, abriu outra vez a janela e olhou para fora. Todas as áreas adjacentes
à casa estavam tomadas por uma bruma branca e cinza, que também trazia odores
de carne queimada, incenso envelhecido e velas de cera esquecidas acesas nas
catacumbas dos cemitérios e nos altares das igrejas.
−
Que merda é essa?
Sentou-se
na cabeceira da cama e pensou em chamar sua mulher. No entanto, lembrou que
Marcionila já devia de há muito estar trabalhando na Assembleia Legislativa,
ultimando os preparativos para a festa de posse de Miguel Arraes de Alencar,
governador eleito naquele ano, a acontecer no dia seguinte, 1º de janeiro de
1987.
Procurou
concatenar melhor as ideias e descobrir como, num dia de verão, nuvens tão
estranhas tentavam encobrir a paisagem do bairro de Santo Amaro, a prenunciar
borrasca ou temporal.
De
repente, seus sentidos ficaram em
alerta. A névoa branca e cinza começava a penetrar pelas
frestas da janela e a invadir seu quarto, gerando um nevoeiro fantasmagórico,
deixando-o quase sem enxergar um palmo adiante do nariz.
Sentiu
os pelos ficando arrepiados com aquela sensação de que estava passando desta
para melhor, quando o perfume suave de lavanda invadiu suas narinas,
trazendo-lhe lembranças carnais e lúbricas de um corpo de mulher.
− Então... Então é isso... Exatamente como ela
disse... É isso... É isso...
O
mistério foi desvendado em segundos.
O
cheiro da lavanda misturado com a fumaça trazia ao seu olfato odores e espasmos
da mulher da vida que ele mais usufruíra em suas andanças de boêmio pelas
pensões do Bairro do Recife.
Sentiu
como se algo de um tempo morto voltasse a incomodar seus pensamentos e
deixou-se navegar no estranho nevoeiro que tomava conta do quarto.
As
lembranças vieram como um filme. E, tal em um filme, ele mergulhava de corpo e
pensamento. Era ator e espectador.
A
mulher se aconchegava contra seu corpo como se em busca de abrigo contra as
dores e enganos do mundo, e ele a enlaçava feito um pastor, protegendo a ovelha
desgarrada do rebanho.
−Num sei, num sei... Acho que num
pega bem.
−Só
uma vez. Você me deixa fazer. Uma vez só. Você nunca fez. Nunca ninguém lhe fez
isso. Tá com medo, é?
−Num sei se é certo. Tenho medo de perder
meus controles. Num quero perder o
controle de nada, visse?
−Você
podia experimentar. Eu sou bom nisso. Não vai fazer mal.
−Num quero sentir nada. Num quero isso. Pode acontecer coisa
errada e quem vai ficar má sou eu.
−
Que nada, Maria! Que nada! Vai ser bom! Eu prometo!
O
beijo na boca foi longo e, ainda agora, podia sentir o gosto hortelã da saliva
da mulher misturando-se com o dele, jatos contínuos de cuspe e suor nas línguas
que se procuravam sôfregas e famintas.
Depois,
as carnes úmidas tentaram se impregnar umas com outras, outras com umas,
dardejando desejos de retornar ao útero materno e buscar abrigo contra as
vicissitudes da vida.
Procurou
usufruir o corpo que se entregava às suas mãos, daquele jeito bem conhecido nas
suas andanças por outras carnes e suores.
Sua
boca principiou a mergulhar nos interstícios e nos labirintos úmidos e
perfumados. Sentia os pelos do corpo feminino eriçados, a carne quase a
saltitar com os loucos espasmos de prazer e, de repente, um gemido mais longo,
um quase grito, e o líquido salgado a deslizar por seus lábios, molhando sua
barba e seu bigode, trazendo o odor maciço das reentrâncias femininas.
Quando
Maria Rosa soltou seu uivo de fêmea na penumbra do quarto do puteiro, Correia
pensou que a mulher tinha passado desta para melhor. Conhecia seus dotes de
amante, mas nunca imaginara poder ocasionar tamanho transtorno numa mulher da
vida.
Ao
uivo de prazer nasceram longos e lancinantes gemidos, que pareciam trazer aos
olhos da fêmea lembranças dolorosas de há muito perdidas. Assustado, sentou-se
na beira da cama, ficando a escutar os entrecortados gemidos, os soluços e os
uivares.
E,
depois, o quarto principiou a se encher de fumaça, uma quente e áspera fumaça a
queimar seus olhos e deixar a carne ressecada.
Ele
procurou suas roupas e, logo após achá-las, vestiu-se com a maior rapidez
possível, louco para fugir daqueles estranhos ritos de prazer nunca vistos ou
sentidos com outras mulheres.
Antes
de sair do aposento, ainda viu Maria Rosa, sentada na imensa cama de casal,
deixando escapar, por todos os orifícios do corpo, grossos rolos de fumaça, e,
pelos olhos, lágrimas de prazer a molhar a fronha do travesseiro, segura por
ela como um lenço gigante, entre os dentes, mordendo-a como se quase pronta a
escapar do mundo terrestre.
Ao
abrir a porta, as outras prostitutas, descabeladas, corriam de um lado para
outro, sequenciadas por uma gritaria infernal vinda de todos os recantos do
puteiro, em busca de baldes de água para apagar o que pensavam ser um incêndio.
A
partir desse dia, ele descobriu o motivo pelo qual a mulher não desejava
mergulhar nas raias dos prazeres do sexo: esses fatos estranhos e insólitos
tinham sido os primeiros orgasmos de Maria Rosa em toda sua vida de dama da
noite.
Só
algum tempo depois Correia apareceu na pensão, recebendo dela a história e a
explicação dos motivos para tais acontecimentos.
E
agora...
Agora
a fumaça trazia apenas a notícia do encantamento. Deixou uma lágrima furtiva
deslizar pelos cantos dos olhos e depois sorriu meio triste e macambúzio.
−Aquela
puta deve estar morrendo, gozando como uma cachorra! – exclamou entredentes,
antes de voltar para a cama e cair no sono, que só acabou quando a mulher
Marcionila disse que o almoço estava na mesa.
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