segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

UMA EM TRÊS POR DOIS

Conto inserido no livro ‘O Espelho da Alma Janela” (2009) agraciado pela Academia Pernambucana de Letras (APL) em 1988, com o Prêmio Leda Carvalho
.................................
A mulher se aconchegava ao corpo do homem e ele sentia uma como nuvem vaporosa de perfume inundar o quarto; os pelos pubianos no se esfregar em suas coxas, umedecidos pelo desejo do sexo. As mãos pequenas acariciando sua face, descendo corpo abaixo, rodopiando no ventre e aí ele sentia, mais quente ainda, a união da carne, entrechoque de corpos suarentos e a dança sob as cobertas dentro do escuro.
Tão pequenas são as horas! A obrigação o mandava ir-se em pouco tempo e deixar a fêmea ainda quente dentro do querer mais. Vestiu-se às pressas olhando o relógio. “Virgem! Quase dez da noite! Tenho de ir!” Abre a janela e uma réstia de luz ilumina o quarto: o corpo nu, moreno e exuberante da mulher ainda a chamar o seu, silenciosamente, ajoelhada na cama imensa, saturnal sacerdotisa sobre o altar do sacrifício.
– Diacho! Já são horas! – resmunga o homem – Deixa estar, volto na quarta-feira!
Pula a janela e cai no beco escuro. Olha em volta para se certificar que não foi visto. Sorri lampeiro e sorrindo se vai. E a vontade que tinha de uma reprise? Entrar novamente naqueles espaços úmidos e macios de carne? Urrar feito um bicho do mato quando o seu sêmen escorresse todo ali dentro?.. Que mulher! Que estouro de mulher! Mas... O diabo ama a própria pele. É um cabra sabido e não iria ficar esperando o dono em chegança e ser surpreendido dentro do harém. Pois não, isso fica lá pra outro... Beber umas cervejas, ora bolas. Bem precisado disso estava. Misturar-se à noite, espairecer o corpo e o espírito quase saturados de traquinadas.
A noite estava fria. Um vento forte açoitava as árvores da estrada. Prenúncio de chuva.
*****
Às 23 horas e mais alguns poucos minutos, o automóvel estacionou em frente ao bar e dele desceram dois homens. A algazarra entre conversas e risadas amainou lentamente até silenciar por completo. Um dos homens, barba fechada e óculos escuros, impróprios para a hora, se dirigiu até Luizinho com as mãos nos bolsos do blusão de couro. O outro homem, cara amarrada, se encostou ao carro sob os olhares dos espectadores (à essa altura tontos e assustados), espingarda 12 nos braços cruzados, pouca exibição, vigiando os movimentos do pessoal.
Tudo aconteceu depressa. Ouviu-se um estrondo como pneu de carro morrendo na estrada, barulho de copos a se quebrar e de algo mais pesado caindo no chão. O homem barbudo se virou de leve, sorriu para todos, guardou o 38 no bolso esquerdo do blusão de couro e voltou serenamente para o carro como se a pressa não existisse ou fosse essa a ocasião mais imprópria para ela existir. Dentro do veículo, ao volante, motor já ligado, estava seu companheiro, esperando. Após a entrada do barbudo, o carro fez meia-volta e sumiu na esquina, deixando atrás de si a poeira da estrada e no bar o corpo de Luizinho no chão de cerâmica, o sangue a escorrer do buraco na testa, gorgolejando lúgubre.
Aos poucos, a algazarra anterior retornou, motivada ainda mais pelo novo assunto. Alguém telefonou à Polícia. Outro alguém ao hospital mais próximo.
– É nisso o que dá trepar com as putas dos outros – sentenciou o dono do bar.
*****
Ela parecia esperar o epílogo de algum fato muito importante. Algo que demorava a chegar viria agora para seu conhecimento e talvez para seu próprio prazer.
Estava parada à janela observando a rua deserta. A hora parecia muito própria para acontecimentos difíceis. As trevas ajudavam a pensar.
Despiu a camisola e a jogou na cabeceira da cama. Segurou os seios nas palmas das mãos, sentindo-os firmes. Sentiu-se orgulhosa. Acariciou o ventre e levou os dedos da mão direita a navegarem em círculos sobre a pele sensível do sexo, fazendo com que sua memória lá por dentro de suas velhas fantasias, sorrisse amplamente. Talvez (poder-se-ia saber?) lembranças de um passado de há pouco.
O que viesse, esperava. Como sempre venceria. Não seria surpresa. Algo sempre de sua natureza vencer. Coisa natural.
A porta do quarto se abriu e a luz ao ser acesa ofendeu os seus olhos acostumados à penumbra. Sorriu de leve para o homem carrancudo andando em sua direção após estrondar o quarto batendo violentamente a porta. Sentiu o hálito na sua face, quente e sabendo a fumo barato. Sentiu as mãos suadas apertando sua garganta e ouviu a voz áspera insultá-la:
– Sua puta! Puta safada!
Continuou sorrindo. As mãos rudes e calosas do homem pouco a pouco, devagarzinho, apertando seu pescoço. Como última instância, deslizou a mão direita para dentro das calças largas do homem e começou acariciando suavemente, destemerosa, o registro adormecido do macho e este, de repente, hesitante, enrijeceu-se ao contato, aos poucos desapertando o aperto, se deixando levar, leve, leve, leve como pluma, cãozinho abandonado, ingênuo palhaço de uma cotidiana opereta urbana. 
O vento assobiou pela janela e a chuva explodiu sobre o telhado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário