Conto
inserido no livro “O Espelho da Alma Janela” (2009) agraciado pela Academia
Pernambucana de Letras (APL) em 1988, com o Prêmio Leda Carvalho. No ano de
1989 este foi um dentre cinco contos do autor premiados pela Fundarpe e
publicado no livro “Novos Ficcionistas Pernambucanos”
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O mergulho que ele deu com todos os seus
neurônios no espaço entre o real e a fantasia foi muito profundo. No princípio,
não conseguiu dizer com certeza onde estava. A poeira que envolveu em círculos
suas ideias convergia bem devagar para um estado de consciência contraditório.
Teve ganas de fugir para outro espaço diferente, fato esse que não conseguiu
realizar de forma alguma, pois se encontrava preso dentro de uma cadeia de
átomos e luzes multicores quase cegantes.
Então, para concatenar com mais realidade
as ideias buscou pensar, e seus olhos trouxeram visões de homens em cadeias
sucessivas de átomos. Mulheres e plantas se enrodilhando ao seu redor como
fantasmas. Buscou ouvir e o sentido da
audição se envolveu numa mística de deuses e demônios numa dança alegórica,
secundados por divindades mais simples: gnomos e duendes num valhala
particular. Buscou fechar os olhos, buscou entupir os ouvidos e as coisas se
embaralharam numa torre de babel: vozes, gritos, cheiros e mais cheiros, corpos
se buscando e buscando-o, multidões de pequeninos seres tentando alcançar todos
os tendões imaginativos de sua alma.
Tentou descansar de tudo isso e os portões
dos espaços azuis de algum lugar desconhecido se abriram para os seus devaneios
e sentiu-se transportado a uma terra movediça cheirando a molhado de chuva.
Abriu os olhos. Desentupiu a audição. Descobriu o paladar e o tato e pôde
conseguir observar o que estava procurando desde o início da viagem.
Realmente, a terra se movia aos seus pés de
forma contínua, indo e vindo, paralisando-se, para depois recomeçar a se mover.
Como se existisse vida querendo sair de debaixo das raízes das muitas plantas
exóticas pisadas pelos seus pés. Porém, não ficou com medo. Fascinado, olhava e
sentia os movimentos da terra. O acontecimento iria ser. E sabia que sobre o
fato futuro as coisas não sairiam nunca mais como ele desejasse.
Aos poucos, com o movimento de ir e de
voltar, foi-se abrindo aos seus pés uma cova profunda e ele sentiu, mais do que
viu, alguns braços saindo de dentro de uma caixa negra parecida com um sino.
Braços a acenar pedindo ajuda para que o restante do corpo conseguisse força de
ascender ao espaço ocupado por ele. Temeroso, afastou-se da visão e cruzou os
braços, como temendo que seus próprios braços fugissem do corpo e saíssem ao
encontro da terra em ajuda ao espectro ou espectros. Um odor de carne afetou o
seu olfato e seus ouvidos puderam discernir uma inusitada voz sussurrante,
longínqua, muito pouco afinada musicalmente. Não era um chamado. Parecia-se
mais com o estridular de pássaro novo, despertando no ninho e pipilando a pedir
comida:
– Tein... Tein... Tein... Ih.... Ih…
Ih...
Sua curiosidade o afetava de tal modo que
resolveu sentar-se sobre o primeiro objeto: uma pedra quadrada posta bem junto
à cova que se abria aos seus pés. As ilusões das cores desapareceram por
completo e então ele pôde ver com mais segurança as mãos que deslizavam de
dentro daquele enorme sino negro. Contou uns quatro pares, oito mãos, oito
braços. Dedos que seguravam as bordas do sino, dedilhando de forma bem suave
uma melodia bem parecida. No momento, não cismou que melodia era. Não estava
muito bem preparado para pensar em música.
A
pedra quadrada sobre a qual se achava sentado fez um volteio e o transportou
para o lado oposto de onde se achava e assim conseguiu observar o interior do
sino. Quatro cabeças, cobertas por uma densa névoa negra, batiam suavemente
umas contra as outras. O sino então resvalou para a direita e as mãos que o
dedilhavam se uniram, parecendo que faziam um círculo em torno e ao redor das
cabeças entrevistas. Aos poucos, a névoa se foi dissipando e os seus olhos se
aprofundaram nas quatro visões. Duas cabeças de homem e duas de mulher,
mergulhadas em um êxtase profundo como numa letargia difícil de compreender.
A pedra quadrada se moveu outra vez para a
esquerda, seguindo o movimento do sino, e ele pôde ver os corpos que se
apegavam uns aos outros. Todos estavam nus. Estátuas em contínuo rodízio de pés
e mãos. As testas se tocando de vez em quando. Os olhos fechados num sono
infinito. Os lábios a sussurrarem aquela mesma inicial voz entreouvida, como
estridular de pássaro novo, despertando e dizendo sua fome:
– Tein...Tein...Tein... Ih... Ih... Ih...
Ouviu a voz da pedra vinda de perto. No
início olhou para os lados a tentar descobrir quem falava. Só depois de alguns
minutos conseguiu descobrir quem era.
– As atitudes estão muito difíceis para
eles.
– Quem são eles?
– Os espíritos do tempo.
– Essas coisas existem?
– Você está vendo com seus próprios olhos,
não está?
Ele aprofundou a visão bem lá dentro do
imenso sino negro. Os seres formavam um amálgama unitário. De mãos unidas
criavam um círculo entre si. A nudez não era chocante. O que chocava mesmo era
a cor negra predominantes entre eles com o escarlate dos olhos a fazerem tiques
bem rápidos, como crianças num pisca-pisca ligeiro contra a luz.
– Eles não são nada bonitos. São sempre
negros assim?
– Ilusão de ótica. Eles são brancos. Você
está vendo de seu próprio ângulo. Venha comigo.
A pedra quadrada girou outra vez e o
transportou para o lado mais ermo do sino e ele viu uma espécie de luz azul ou
branca (não soube precisar bem), mas era uma luz.
– Vê melhor agora? São claros. Brancos.
– Mesmo assim, ainda não consigo entender
quem são.
– Os predestinados. Estão iniciando uma
longa viagem. Uma espécie de voo dentro de um espaço fora do limite das nossas
consciências.
– E o que significa esse sussurro?
– É a música do futuro.
– Por que você não explica melhor essas
coisas?
A pedra quadrada se calou. De repente, ele
sentiu-se transportado para bem perto das quatro visões e aspirou o perfume de
cravos e rosas saindo de dentro do sino. As duas cabeças femininas o olharam e
ele pôde ouvir:
– Uma pedra é uma pedra como uma mulher é
uma mulher e um homem é um homem. O conhecimento para cada um vem da vida
própria de cada um.
– O que é a música do futuro?
As duas cabeças masculinas levantaram os
olhos para ele e disseram:
– Todas as sinfonias foram feitas para
aglutinar as raças numa só. Todas as esperanças são filhas de uma esperança
renascente. Os desejos sonhados para o bem e contra o mal. As dores da alma. As
alegrias do corpo.
– Apenas uma coisa: não consigo entender a
música.
As quatro cabeças se uniram outra vez umas
às outras e se calaram. Somente a pedra resolveu responder:
– Se você conseguir entender a vida de
todos os seres humanos, entenderá a música.
– Ninguém consegue entender a vida dos
seres humanos.
– As coisas mais simples podem ser as mais
difíceis. As coisas mais complicadas podem ser resolvidas num abrir e fechar de
olhos. Basta que exista humanidade dentro das consciências. Isto já existe na
natureza. Um beija-flor sabe que a rosa está praticamente à sua disposição e
ambos se desejam. Só a raça humana não sabe o que deseja, pois a única
linguagem que conhece é a da violência e da opressão.
– E o que me diz de você como pedra?
– Você já ouviu dizer que uma pedra é uma
pedra como um homem é um homem. Se você compreende a si mesmo, a pedra se
entende como pedra. Não adianta explicar mais.
E então, tudo aconteceu vertiginosamente.
Uma explosão destroçou a pedra quadrada, seguindo-se uma densa névoa a
envolvê-lo. De repente, se descobriu a voar. Não era mais como um mergulho.
Algo assim para o alto, fazendo a respiração ficar cada vez mais carente. De um
momento para o outro, tudo passou. Observou-se e se viu transformado em uma
mulher.
Estava nua sobre uma cama imensa e vazia.
Todos os bibelôs do quarto rodopiavam ao seu redor. Uma grande estátua,
representando um homem com todos os atributos do macho, estava a observá-la a
meio metro de distância.
Ouviu a estátua falar:
– Parece que você está de volta. Onde
esteve?
– Não sei dizer – respondeu – Estava tudo
muito escuro.
– E não aprendeu nada dentro dessa
escuridão?
– Havia uma pedra...
– Em todos os lugares do mundo existem
pedras.
– Era uma pedra muito especial.
– Aprendeu alguma coisa da pedra?
– Uma pedra é uma pedra como uma mulher é
uma mulher.
– Isso não vem a ser quase nada. Olhe bem
para mim. Sou uma estátua de homem e não sou coisa alguma. Além disso, vim da
pedra. O que pode me dizer de você?
Ela girou o corpo por sobre a cama e se viu
refletida num espelho brilhante no lado oposto. Estava realmente atraente.
Olhos verdes da cor do mar. Cabelos negros e cacheados caindo por sobre os
ombros. Os seios firmes realçando as curvas sinuosas dos quadris. Um triângulo
mínimo de pelos acentuavam a guarita do sexo em seus deslizes de fêmea. Nádegas
bem torneadas, duras e salientes. Particularmente começou a ficar vaidosa de
ser o que era. Voltou-se para a estátua:
– Sou apenas uma pobre mulher descrente dos
homens e do mundo. Não sei muita coisa sobre a vida e sinto que a sei bem
demais. Tento me esclarecer aos poucos, mas tudo gosta de mudar de fisionomia
de minuto para minuto. Que posso fazer?
– As coisas que uma mulher deseja fazer
estão além do meu alcance.
– Mesmo sendo uma estátua você fala como um
homem.
– Sou apenas uma estátua em formato de homem.
Mas tenho sensatez. Por ter sensatez irei sobreviver por séculos.
– Todo homem sensato é covarde.
– Não acredite nisso. Quando um homem é
sensato acaba sempre vencendo.
– E quanto à mulher?
– Uma mulher sabe perfeitamente bem que
todos os seus atributos são armas muito fortes. Todas elas se julgam capazes de
fazer tudo de necessário para exercer domínio sobre os homens.
– Você fala assim porque não possui
espírito feminino.
– Todas as mulheres podem ser promíscuas.
Só que algumas não encontram as oportunidades de fazer tudo que desejam. Na
verdade, existem duas classes de mulheres: as medrosas e as frias.
– Acho essa filosofia obtusa. Você é uma
estátua e isso se desculpa.
– As mulheres frias são assim por causa da
estupidez dos homens. Toda fêmea é carente de um macho e sempre estará
desejando uma aventura dinâmica, desde que haja o perfume do romance.
– Hum....
– É muito enfadonho para o homem estúpido
fazer uma conquista por meio do romance. Busca o acontecimento na hora que bem
deseja, sem criar o clima adequado.
– Parece razoável isso...
– As mulheres medrosas se escondem como o
caramujo: dentro de uma casca. Têm vontade de criar vida nas coisas e sonham
com inúmeras aventuras. Não as realizam porque têm medo do que possam dizer
delas.
– E as mulheres virtuosas?
– Não existem mulheres virtuosas. Todas
elas possuem amantes, seja na vida real ou na privacidade de suas mentes. Não é
o homem a criar o que se chama de fantasia. A mulher também têm as próprias.
Aquelas que se trancam por dentro, muitas vezes estão criando atos e ações
fantasiosas com outros machos. Atos esses necessários à sua satisfação. Na
verdade, nenhuma mulher liga para isso de virtudes, fidelidade, castidade,
essas coisas todas, porque sabem que esses fatores servem apenas para proteger
o interesses dos homens.
– E quanto à beleza numa mulher?
– Para uma mulher a beleza está justamente
no fato de olhando umas às outras, competirem com o desejo de uma ser tanto
mais bela quanto a outra consegue ser. Tudo isso é muito relativo.
– Você me acha bela e desejável?
– Você é uma imagem refletida no espelho e
eu a imagem da pedra. Ainda está com disposição para continuar nossa caminhada?
– Caminhada?
– As quatro aves e espíritos do tempo nos
deram esse prazer a partir do momento em que os vimos.
Ela se olhou no espelho e viu sua forma
começar a se desvanecer. A mesma névoa anterior seguida de uma ensurdecedora
explosão atroou nos seus tímpanos e novamente sentiu-se em transporte através
do espaço. Dessa vez voava em círculos como um parafuso a penetrar fundamente
um pedaço grosso de madeira.
Como antes, de um momento para o outro,
tudo passou e ele se viu um homem muito mais moço: adolescente entrando devagar
na idade adulta. Estava numa sala de aula, cercado de outros da mesma idade,
olhando um envelhecido professor a tentar ensinar como e porque a história
humana reflete toda a grandeza da raça.
– Professor, como podemos acreditar na
História?
– Que pergunta tola! Leia nos livros. Os
livros contêm toda a história da raça humana. As guerras, as vitórias, as
conquistas...
– Professor, a história não fala de amor.
Fala mais de ódio.
– Você não deve se deixar levar por essas
tolices. Observe que se não fossem as guerras, e o que os homens conquistaram
com as guerras, o nosso mundo não estaria tão civilizado como agora.
– As guerras servem para alimentar a
História?
– Quase isso.
– Também os crimes de guerra alimentam a
História?
– Bem...
– E os morticínios em nome das religiões
também são alimento da História?
– Eis aí alguns tópicos interessantes para discutirmos
na próxima aula...
– Mestre, por que todos os homens que nos
ensinam são perfeitamente dogmáticos?
– Não vejo como você possa encontrar dogmas
nos ensinamentos dos professores. Os professores ensinam o que aprenderam nos
livros.
– Os livros foram escritos por homens. Não
estou certo, Mestre?
– Sim. Homens cultos. Filósofos.
Historiadores. Geógrafos. Estudiosos da mente humana...
– Os livros não erram?
– Nunca!!
– E por que os homens erram tanto, Mestre?
Se tudo que eles escrevem nos livros são para nós seguirmos, não acha que
devemos fazer a coisa dentro do riscado?
– Vamos colocar tudo nos seus lugares: você
é que é o aluno e eu...
– Caro Mestre, a liberdade de pensar por
nós mesmos não pode ser ensinada? Devemos ser apenas uma folha em branco onde
os filósofos, historiadores, geógrafos e estudiosos da mente humana possam
inserir suas ideias?
– Vocês estão aprendendo...
– Aprender significa apenas decorar o
ensinamento dos mais velhos? Decorar o ensinamento dos livros? E o que fazemos
com as criações de nossas inteligências?..
– O mundo é cheio de perigos. Nós, os mais
velhos, aconselhamos vocês a vê-los e evitá-los.
– Mestre, acredito nisso, pois vejo que
todos os perigos que existem no planeta não fomos nós, os mais jovens, que
criamos. Quando nascemos o mundo já estava cheio de pedras perigosas.
– Nós também fomos crianças. Nós também
fomos adolescentes. Seguimos as regras dos nossos professores e...
– E como sempre querem que nós continuemos
a dar continuidade ao velho sistema. Os acomodados aceitam e aqueles que não se
acomodam desaparecem, não é isso?
– Uma ideia preconcebida essa...
– Mestre, é claro que nós desejamos
aprender o nosso mundo. Devemos conhecer todas as pedras do mundo. Mas não acha
que deve existir uma certa liberdade ao nosso aprendizado?
– Não estou conseguindo entender a até que
ponto você deseja ir. Existe apenas uma dimensão para tudo que possamos
aprender. Você está aprendendo e aos poucos verá que todas as coisas escritas
tiveram sua razão para serem escritas e mais ainda para serem cumpridas e
seguidas.
– Caro Mestre, um assunto que não se
compromete à discussão não pode ser um assunto. O que está escrito, tudo que
foi criado e descoberto, está impregnado de arbitrariedade. Veja bem, se A é A
e B é B, se dois mais dois são quatro, se um homem é um ser humano e uma pedra
simplesmente uma pedra, sabemos que isso está escrito e que seus nomes são
esses. Eu não posso dizer que dois e dois são cinco. Eu não posso dizer isso
hoje. Mas, se estivesse começando a inventar a matemática, poderia dizer isso
de tal maneira que por todos os séculos dos séculos seria acreditado. É isso
que o senhor nos ensina?
– Sou apenas um professor...
– Um professor não deve analisar o que está
escrito nos livros? Um professor de hoje e que não viu a realidade histórica do
ontem, não deve tentar ser mais do que um simples repetidor de ideias escritas?
Não deve pesquisar?
– Não temos o tempo necessário...
– E o que dizer das nossas ilusões de
adolescentes? Somos obrigados a creditar na História exatamente como as elites
governantes desejam que acreditemos?
– Vamos parar com essas contestações. Tudo
já está escrito e nós temos uma longa caminhada a fazer...
– Mestre, não acha que nós sejamos vítimas
da História?
Um furacão penetrou pela janela e a sala de
aula acabou por ser deglutida pelo poderoso vento. O rugido de mil vozes
ensurdeceu seus ouvidos e sentiu-se içado por mãos firmes. Em menos de segundos
estava outra vez a viajar através da densa névoa, agora num constante
redemoinho dentro de labirintos insondáveis até uma madrugada fria onde se viu
como soldado, vestido apenas com uma sunga em pleno pátio de manobras. Um rude
militar com as insígnias de sargento olhava para as fileiras de homens quase
nus, perfeitamente rígidos sob o frio da madrugada.
– Perfilados! Sem movimento! Quem mover um
só músculo será feito prisioneiro a pão e água por três dias.
Todos continuavam rígidos.
– O inimigo nos espreita a todo instante.
Por todos os lados. Até debaixo das nossas camas. Temos de estar preparados
para o ataque. Firmes. Sem medo. Somos soldados.
Ele pensava com nitidez e até tinha medo
que seu pensamento fosse ouvido: “Para qual ataque me preparar? Quem é o
inimigo? Se eu sou um soldado por que devo ficar no frio?”
– Ordinário! Todos em marcha! Meia volta,
volver!
“Estou morrendo de frio. Estou com medo.
Não consigo entender esses movimentos. Tudo isso é para me defender ou defender
quem? Onde vim parar, meu Deus! Tudo isso é loucura e eu não sei como possa me
defender. Será que alguém virá me matar um dia?”
– Vocês são soldados! A fortaleza da
pátria! Vocês devem estar sempre prontos para o ataque. O inimigo está quase ao
nosso lado! Ordinário! Marchem!
“Para que serve um soldado? Para que é pago
um soldado? O que é a pátria? Quem são os donos da pátria? Quem pode pagar a
vida de um soldado?”
– Vocês estão numa guerra, ouviram? Por
estarem numa guerra devem obediência total aos superiores. Olhem todas as
insígnias.Os soldados não pensam. Obedecem.
“Ele se transforma a todo instante. Agora é
um capitão. Já foi tenente, mas antes era apenas um sargento dando ordens. Será
que as insígnias tornam as pessoas diferentes, assim com o rei na barriga? E
essa autoridade de sua voz de comando? Por que a autoridade sempre sobe à
cabeça e comete tantos desatinos?”
– Descansar! Cinco minutos para descanso!
“Depois deste aprendizado, o que irão fazer
comigo? Não serei então um soldado? Não estarei pronto para defender a minha
pátria? Mas, o que é a pátria? A pátria é do povo ou é do Estado? E os
interesses do Estado estão acima dos interesses do povo? O soldado deve ser
fiel aos interesses do Estado ou aos interesses do povo?”
“Depois de conhecer as coisas ensinadas
pelos superiores, vejo o inimigo em todos os rostos. Por que os meus superiores
me enviaram para guardar os cofres dos banqueiros e dos milionários? Por que os
meus superiores me dão ordens para despejar essa gente humilde de algumas
terras vazias e sem dono onde misturaram suor e sangue para sobreviver? Foi
para isso que fizemos o aprendizado de soldados?”
“Nem temos cabeça para pensar ou responder
às nossas próprias perguntas, pois nossos membros fazem parte de um círculo de
ordens estritas. Somos carne para canhão. Apenas isso. Somos instrumentos de
uma elite dominante, que reduz desde séculos todos os homens do planeta às suas
ideias. Dizem que somos soldados e temos que acreditar nisso. Nossos revólveres
e fuzis, nossas bombas de gás, cassetetes, estão sempre disponíveis para
defender a elite contra seus grandes inimigos. Quais serão esses grandes
inimigos?”
– Ordinário! Marchar! Hoje é proibido
pensar! Meia volta, volver!
Uma granada de mão explodiu aos seus pés e
um forte odor de pólvora invadiu suas narinas. Estava indo outra vez e no meio
do turbilhão que chegava ele ainda não sabia qual a próxima e última imagem do
espírito do tempo a possuí-lo. Não sabia o formato, pois dessa feita a viagem
parecia mais curta do que as outras. Nuvens escuras e brancas e azuis envolvem
seu corpo. Um vento frio agita suas asas...
Um pássaro? No entanto, sente o seu
pensamento como de um ser humano. O mesmo mergulho inicial que deu com todos os
seus neurônios no espaço entre o real e o fantástico começa a absorvê-lo. O seu
estado de consciência deixa-o atônito e observa que está voando sobre uma
planície completamente negra.
Onde as árvores? Onde os animais? Onde os
rios? Onde as cidades com os seus habitantes?
Bem longe, lá no horizonte, um vulto de
mulher abre os braços para o firmamento. Na verdade, nem sequer está viva.
Apenas observa a si própria no voo do pássaro.
Mais adiante ele vê uma cidade feita de
ferros retorcidos. Mãos e braços, pernas e pés, cabeças e olhos rastejam pelas
cinzas da destruição, separados dos corpos que jazem mais além, emparedados
entre as ruínas. Um soldado caminha empunhando um fuzil, empertigado e rígido
como uma estátua, procurando o inimigo.
Um prédio cinzento recheado de prateleiras,
cheirando a mofo e lá dentro um adolescente a ler páginas e páginas de livros,
buscando a verdadeira História. De vez em quando escreve algo num pergaminho
endurecido pelo passar dos anos. Seus olhos se acendem com a chama da loucura
do pesquisador e nem sequer observa que as horas da próxima noite irão trazer a
resposta final a todos os seus estudos. Como se adiantasse alguma coisa tudo
isso...
Um pássaro?..
Se ele é um pássaro onde está o seu ninho?
Nem mesmo sente essa necessidade de achar o ninho, pois tudo que se apresenta
diante do seu voo, demonstra ser ele mesmo o ninho da espécie. E o seu voo?
Para onde o leva esse voo?..
– Tein... Tein... Tein... Ih... Ih...
Ih…
Como conseguir entender a música do futuro?
As coisas são muito limitadas para a imaginação de um pássaro.
Pode ser que tudo seja uma simples ganância
de viver e sentir a vida como possuindo asas para mergulhar ao vento. Na
verdade, essa fome de pássaro novo está enraizada lá bem dentro de sua alma.
Todas as sinfonias foram feitas para aglutinar as raças numa só. Não é preciso
entender a música. Esse é que é o mistério. Por que apenas não senti-la? Por
que apenas não ouvi-la?
********
Pela manhã, ao acordar, sentiu o pênis duro
como pedra. Viu ser tarde o suficiente para enfrentar de novo à vida. Levantou-se,
pôs a toalha sobre os ombros e saiu do quarto. No banheiro, urinou com vontade.
Depois, escovou os dentes, tomou um demorado banho e sentiu fome. O café da
manhã constou de um pão dormido e um copo de leite.
Saiu de casa e se preparou para enfrentar o
cotidiano. Uma grande leva de homens e mulheres esperava o transporte para o
trabalho. Ele não estava com pressa. Ainda era cedo. O céu estava azul. O sol
começava a esquentar. O cheiro do orvalho era pronunciante. De repente,
tropeçou numa pequena pedra quadrada e soltou o primeiro palavrão do dia:
- Puta que pariu! Que merda!
Ele
era apenas um homem sozinho...