sábado, 31 de agosto de 2019

OLHOS ABERTOS PARA A MORTE – Rafael Rocha

Oitavo capítulo do livro homônimo lançado no ano de 2012 – Agraciado com Menção Honrosa pela Academia Pernambucana de Letras (APL) – Prêmio Vânia Souto Carvalho (2011)
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Tirar boas notas e sobressair-se além dos outros colegas na escola, tornou-se uma obsessão para Fernando Clemens. Essa obsessão foi criada no ambiente familiar por intermédio do seu pai, o coronel de infantaria Wellington Clemens, caxias por natureza e instinto. Os castigos corporais que ele infligia ao filho, caso suas regras não fossem obedecidas, tornaram-se fatores específicos para que o jovem seguisse à risca tudo que lhe era ordenado. Assim foi desde que iniciou o curso primário, aos sete anos de idade, até o término do colegial, aos 17 anos. Suas notas em todas as disciplinas eram as maiores. Tanto que terminou sendo apelidado de “enciclopédia” pelos colegas.
Além disso, sempre seguindo os conselhos do pai, era mão fechada em tudo que dizia respeito aos estudos. Não repartia seus conhecimentos com ninguém. Não fazia parte de grupos de estudo. Tudo era para ele mesmo. Na ocasião das provas buscava sempre ficar bem distante dos colegas para fugir da cola. Sabia que muitos buscavam com os olhos descobrir o que ele colocava em resposta às questões. Ninguém descobria nada porque ele escondia muito bem com as mãos, debruçando-se todo sobre a carteira escolar, dando as costas aos colegas. Deixou de ser conhecido como “enciclopédia” para tornar-se “livro lacrado”.
Por causa desse comportamento, não tinha amigos. Era um solitário na ida para as aulas e no retorno para casa. Enquanto grupos de alunos se juntavam no recreio para todo tipo de brincadeiras, ele ficava em um canto a ler ou a rever seus apontamentos escolares. Não sabia, porém, que, fora os meninos, as meninas gostavam de debater entre si sobre aquele comportamento diferente e a apostar, qual seria aquela a conseguir tirá-lo do sério.
Ele gostava muito de olhar para uma delas, mas na sua circunspeção não fazia mais nada. Vera Lúcia, a mais bela e namoradeira, colocou sua fama em jogo, ao apostar que conseguiria a conquista. O caso chegou ao conhecimento do restante dos alunos e as apostas começaram a ser feitas. Fernando tinha 14 anos e cursava o quarto ano ginasial, equivalente hoje à oitava série do fundamental.
Foi nesse espaço de tempo que um novo aluno ingressou no educandário. Tratava-se de Eric Souza. Logo que Fernando o viu antipatizou com ele. O sentimento foi recíproco. Atrasado nos estudos, galanteador e excêntrico, Eric tentou se envolver com Vera Lúcia. Ao saber da aposta feita por ela junto com os colegas da escola, não gostou, dizendo que seria muito melhor dar uma lição especial em Fernando, fazendo com que os professores perdessem a fé no rapaz. Para isso ele, Eric, estaria disposto a ir até às últimas consequências.
Os outros alunos mostraram ao Eric o quanto Fernando era diferente. Tinha o perigo enraizado nas veias. Não era uma pessoa normal como eles. Mas o novato fez ouvidos surdos a todos os conselhos. Contaram o que ocorrera com Clodoveu. Eric riu e disse que se fosse com ele a história seria outra. Na verdade, Eric se aproveitava do seu avantajado porte físico de praticante de pugilismo. Além disso, sua idade estava muito à frente da idade dos outros alunos. Eric já tinha completado os dezoito anos.
Um dia, quando o professor de História faltou à aula por motivo de doença, Eric estava na sala cercado pelos outros alunos, a tagarelar. Um pouco distante, em sua carteira, Fernando escutava. Descobriu então que as ideias de Eric estavam ligadas ao socialismo e ao comunismo. O rapaz não escondia de ninguém que participava de um grupo ligado ao Partido Trotskista. Sem querer, Fernando escutou elogios a Lênin, a Trotsky, descobriu-se a conhecer pela voz de Eric o Manifesto Comunista, livro que o rapaz sempre levava no bolso. Ouviu maldições e todos os tipos de condenações aos Estados Unidos da América do Norte.
Eric viu que seu discurso estava alcançando os ouvidos de muitos dos colegas e continuou a catequese. Ao virar o rosto para trás, seus olhos encontraram os de Fernando. Fixaram-se olhos nos olhos. Cada um descobriu naquele exato momento como estavam em lados opostos. Eram inimigos. “E você, livro lacrado, não vai falar nada? Vai ficar calado só escutando, é?”, perguntou Eric agressivamente, e como não recebesse resposta, saiu do lugar de onde estava e se aproximou de Fernando. “Você não acha que já está na hora de o Brasil deixar de ser o quintal dos norte-americanos, livro lacrado?”, perguntou Eric.
Como sempre, Fernando não estava com afinidade alguma para discutir. Virou o rosto para o livro que estava lendo, tentando fazer Eric deixá-lo em paz. Nesse momento, Clodoveu entrou de gaiato na conversa. “Não adianta, Eric. Ele é um dos tais. Ele é dos verde-oliva. O papai dele é coronel do Exército”. Fernando pousou seus olhos frios nos olhos de Clodoveu que, assustado, baixou a vista, mas logo recuperou a dignidade ao escutar Eric dizer. “Que surpresa! Então o papai dele veste farda, é? Faz mal não. Muita gente que veste farda também vai apoiar a revolução. Quem sabe o papai dele possa apoiar a gente. Quem sabe, não é?”
Fernando resolveu deixar de escutar a conversa. Sentiu mais do que descobriu que a situação iria descambar para alguma agressão e queria ficar longe disso. Não estava querendo ser agredido. Olhando o perfil de Eric descobriu que não iria longe como na briga com Clodoveu. Levantou-se da carteira para sair. Porém, Eric o segurou pelo pulso e com toda força o obrigou a sentar-se de volta. Os outros alunos ao verem que Fernando dessa vez estava em apuros, riram e o cercaram, com Eric na frente a comandá-los.
“Não saia do lugar, livro lacrado! Hoje é tudo muito diferente. Não sou Clodoveu, nem você vai enfiar lápis no meu rosto”, disse Eric. “Agora, responda para mim. Eu perguntei a você e quero que você responda. Você não acha que o Brasil deve apoiar o comunismo e deixar de ser o quintal dos ianques? Vamos, livro lacrado, responda!” Fernando levantou os olhos e olhou Eric. “Não sei nada disso! Só quero estudar. Quero ficar em paz”, reclamou. Notou como Eric franzia o cenho. Tentou se levantar de novo e foi empurrado de volta à carteira. Dessa vez com violência. Sua cabeça bateu contra a parede. A dor foi forte, mas fez de conta que nada sentira.
Do outro lado da sala de aula, as meninas olhavam de vez em quando para o grupo de rapazes. Não sabiam o que estava acontecendo, mas também sabiam não ser da conta delas, não era da alçada delas se meter naqueles assuntos. Apenas Vera Lúcia, mais afastada, punha seu olhar tanto em Eric como em Fernando. A seguir, ela se esgueirou e saiu da sala. “Quero ficar em paz!” reclamou Fernando. “Deixem-me em paz!” Tentou outra vez se levantar e ninguém impediu. Ao tentar dar um passo à frente viu que Eric se pusera em pé e estava fechando com seu corpo todo o espaço. “Deixe-me passar. Deixe-me passar”, pediu.
Além de não ser atendido, teve seu estômago atingido por um formidável soco. A seguir, Eric, com a mão aberta o acertou na altura do peito. Caiu no chão. Depois, ganhou várias bofetadas no rosto. Um soco no nariz. Escutou alguém gritar que a diretora estava vindo. Foi erguido por Eric e posto sentado na banca de estudos. O nariz sangrava. Uma tremenda dor no peito fazia com que sua respiração ficasse opressiva. 
“O que aconteceu por aqui?”, perguntou a diretora auxiliar. “O que há com você menino? Está sangrando. O que houve por aqui?” Como não obtivesse resposta, achou por bem levar Fernando até o ambulatório para medicá-lo. Depois retornou e olhando os alunos um a um disse: “Tenho tempo e vocês também vão ter tempo demais. São dez da manhã e não teremos mais aula, porém ninguém sai desta sala até que eu saiba o que aconteceu”. Quando o relógio marcou meio-dia, a diretora auxiliar suspirou e resignada liberou os alunos para casa. Durante todo esse tempo ninguém dissera nada. No portão de saída, Eric segurou firme no pulso de Vera Lúcia. “Foi você, não foi? Foi você que avisou a diretora, não foi? Não faça mais isso, sua piniqueira safada. Nunca mais faça isso.”

LIGAMENTOS – Rafael Rocha

Do livro “Abismo das Máscaras” - 2017
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Ao vê-la nua e toda aberta em minha cama
anseio pelos seus aromas e sabores
e espalho aos ventos errantes pelo quarto
as convulsões das entranhas e dos espasmos.

As paredes cinzas são agora cúmplices
de quando os corpos se agarram sacolejantes.
De quando as bocas fremem as luxúrias
molhando as fronhas, os lençóis e os travesseiros.

Ela oferta o corpo e como estando enlouquecida
grita em silêncio pela mágica das deglutições
e espalha líquidos quentes por todos os espaços

de onde eu suguei o néctar salgado dela mesma
e de onde penetrei macho sem meios termos
ligando a paixão carnal ao limbo da esperança.

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

VINDA – Rafael Rocha

Poema inserido no livro “Meio a Meio” 
publicado no ano de 1979
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Cheguei perto de vários crepúsculos
e de imensos ventos traiçoeiros
sem saber falar a verdade do amor branco.

No dia em que cheguei fui repartido
em muitas partes distintas.
Deram-me o silêncio e eu recusei.

Cheguei quando a noite
roubava territórios ao dia
e quando vozes fracas
ricocheteavam nos muros:
Deram-me uma solidão perdida e eu recusei.

De tantas outras vezes fui repartido
mas construí minha solidão própria.
Senti-me imensidade de olhos gastos.
Mãos vazias e grandes pés sem conforto.

Disseram-me que eu partisse.
Deram-me o amor gasto pelo dólar.
E então eu decidi ficar e chegar de novo
com os braços abertos
para o vento e às montanhas.

O HOMEM DO ANO-NOVO – Rafael Rocha

Conto inserido no livro “O Espelho da Alma Janela” (2009) agraciado pela Academia Pernambucana de Letras (APL) em 1988, com o Prêmio Leda Carvalho.
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Esperava que chegassem. O dia fora cansativo, mas ele tinha a certeza de que viriam. As histórias que havia contado, tudo aquilo entregue quase sem motivo, slides da vida, solidões comparadas com outras solidões, uma dor de ser com outra dor de ser, e, estando, era de supor que eles viriam nem que fosse para, a uns cem metros de distância dos átomos do seu corpo, acenarem um adeus e sumirem na noite para ele continuar curtindo sozinho a vida.
Esperava que chegassem. A noite era longa e uma amizade despreza distâncias irrisórias e até distâncias de milhares de quilômetros podem ser cobertas pela vontade de sentir novamente o rosto, o abraço do corpo, um beijo e aquela alegria incontida de ser/ter alguém criado dentro da própria lógica. Talvez não falassem de amizade e nem era preciso. Bastava todos estarem bem perto para sentir o rio da vida borbulhando ao redor.
Esperava a chegada deles. Não, não é tarde assim. Não é tarde ainda. O dia é muito importante! E eles sabem tão bem da confiança na promessa. Posso esperar até o sol nascer, já que estamos em plena madrugada e... Avançando as horas... Ora, esperarei mais um pouco. Ainda há tempo.
Os olhos circunavegavam sobre o ar, buscando sentir o odor dos corpos que ele sabia não mais viriam criar aquela atmosfera tão costumeira dos seus últimos tempos. O corpo chamava para a cama, mas dele continuava observando, não mais aquilo que os olhos do cérebro viam com mais força dentro da noite dentro da retina dos seus sonhos.
Frases fugiram lentamente de sua memória: restou-se tão completamente bobo e só na esquina da vida!  Como fazer para que a vida não passasse tão depressa? Não, não queria que ela trouxesse nada de volta, mas que o ocaso ficasse, no mínimo, mais devagar e ele pudesse curtir o último e os próximos instantes. Por favor, vida!
As mãos, os dedos, buscaram um cigarro, depois os fósforos e os lábios jogaram à atmosfera a fumaça branca que se esvaiu no negro da noite. Não! Ele iria esperar um pouco mais. Tudo é possível. Já imaginou que entrando na sua escuridão, eles chegassem e não o vendo ali à espera ficassem mais desapontados do que ele e se fossem dessa vez para nunca mais?
O cigarro escapuliu das suas mãos rolando pela terra vermelha. Um raio de luz brilhou no horizonte e um sol imenso, tão mais imenso que a lua amarela da noite, começou a fustigar seus olhos de forma incansável e ele notou o quanto estava cansado de esperar. Deve ter acontecido algo. Não sei o que possa ter sido. Mas eles prometeram que viriam e não marcaram hora. Talvez, daqui a uns minutos cheguem, gritem meu nome, apenas para fazer uma surpresa.
Seu corpo cansado foi caindo de leve no chão cheio de areia e o sol iluminou sua face barbuda e o sono lentamente foi se apossando de sua carne. Quando deu meio-dia, viu que tinha sonhado e acordou em plena algazarra de garotos na praia, mulheres seminuas, homens curtindo a ressaca do ano-novo e viu que tinha de retornar para dentro de sua casca e cuidar do seu mundo, da sua alma e da sua vida, gêmeas deste sonho louco de homem solitário.
Com um pedaço de graveto prendeu sua angústia no velho torniquete da alma e escreveu na areia molhada: “Para gastar a dor nada como uma estrada vazia e livre”. 
Em instantes, as ondas do mar destruíram essa última filosofia.

terça-feira, 20 de agosto de 2019

TEMPOS IDOS – Rafael Rocha

Do livro “Marcos do Tempo” – 2010

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Deixando em sal
as minhas águas da península.
Tristeza de ter sido mundo
em tempo exilado.
Como dando sabor
às lágrimas do desterro
o meu outrora da vida
ter-me desajustado.

A dor fluiu!
Os dias ficaram inúteis e vazios.
Tal presença de glória
tanto eu ousei sonhar:
Cabelos brancos
a emoldurar o belo crânio...
A caminho de Caronte
essas geleiras vão passar.

Lembro a voz na mesa do bar:
Eu não te conheço!
Preso o pranto,
enregelou-se em pedra a dor.
Marcante dor a invadir
a espécie de mim.
Eis a voz sorrindo
a desprezar o amor.

Paixão interrompida!
Dá-se e tira! Tudo a se acabar!
Mundo que expira assim
vai para outros mares a flor.
Igual aos versos mais antigos
a sonhar desditas:
“Fonte não me leves,
não me leves para o mar”.

Eis o tempo: a fonte fria!
Sorriso zombador!
A matar o esplendor maior
daquela triste lira.
Antes de ser jogado
ao mar o corpo frágil
salvaram-no as areias
e o perfume de uma ilha.

Braços amplos acolheram
o poeta incendiado.
Deram-se mãos à paixão
na jovem pressa da vida.
O amor fluiu venoso
em novos corpos recriados
e renasceu na glória
da ilusão impressentida.

Cabelos brancos
emolduram o belo crânio.
Tais espessas geleiras
no caminho de Caronte.
E a voz repete na vida:
Não mais te conheço!
Não sei quem és!
Nem imagino de qual lugar de onde...

O DERRAME DA TIA – Rafael Rocha

Do livro “Contos Delirantes com Versos em Bolero” – 2017
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O Fiat Uno vinha correndo loucamente pela Avenida Caxangá, no Recife, cortando todos os carros que lhe apareciam na frente.
As pessoas nas calçadas ficavam assustadas.
Não respeitava nenhum sinal vermelho.
Entrou à direita, seguindo direto para o Hospital Getúlio Vargas, onde estacionou logo defronte.
Desceu do Fiat, olhou para dentro e gritou:
- Calma, tia! Fique calma que eu vou entrar e buscar uma maca pra levar a senhora na emergência.
Entrou correndo esbaforido pelo portão do hospital. Alcançou o hall.
Começou a gritar feito louco:
- Uma maca! Uma maca! Ei, enfermeiro, traz uma maca que minha tia lá no carro teve um derrame e precisa ser atendida.
Os enfermeiros passavam por ele como se ele nem existisse.
Resolveu tomar uma atitude mais agressiva e agarrou o primeiro que passava de jaleco branco.
- Ajude-me! Ajude-me! Minha tia teve um derrame e está lá no carro. Preciso de uma maca pra trazer ela à emergência.
O cara de jaleco branco olhou para ele, desvencilhou-se do agarramento.
- Não sou maqueiro nem enfermeiro, rapaz! Sou médico! Procure os maqueiros por ali!
Ele correu para o lado que o dito médico tinha apontado. Achou uma maca e dois rapazes que eram os maqueiros.
- Ajudem, por favor! Minha tia teve um derrame e está lá no carro e eu não posso trazê-la sozinho. Ajudem!
Os dois rapazes encolheram os ombros, pegaram uma maca sobre rodas e saíram ligeiros com o rapaz até à frente do hospital.
- Cadê? Cadê? - perguntaram.
- Estacionei aqui! Porra! Estacionei aqui! Cadê o meu carro? Cadê ele?
Os maqueiros olharam um a outro. E voltaram com a maca para o hall do hospital.
- Cadê meu carro? Cadê meu carro? - gritava feito um louco o rapaz.
O gorducho dono do fiteiro logo atrás dele resolveu ajudar.
- O seu carro era um Fiat Uno prata?
- Sim! Sim! Cadê ele? O senhor viu? 
- Vi, sim! Rapaz, você estacionou em local proibido e o carro acabou de ser rebocado pelo guincho do Detran.

METEORO – Rafael Rocha - 1967

Do livro “Poemas dos Anos de Chumbo” – 2017
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Nada como dar corda ao relógio
e ocasionar mutações.

Apesar dos pêndulos
ofenderem suas paredes
é preciso aguardar a hora certa.

Um meteoro possui medida exata
ao atravessar a atmosfera
cair na Terra
e se transformar em grão.

Assim também a dor
tem dimensão exata
quando atravessa
a estratosfera
de um coração.

ENCOMENDA – Rafael Rocha

Do livro “Sangramento” incluso na coletânea “Poetas da Idade Urbana” - 2013
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Encomendo minha morte às estrelas da madrugada...

Solicito:
Procurem trazê-la sorrindo calmamente
Eu esperarei
Não sairei do meu lugar.

Vestir-me-ei com roupa nova e colorida
Estarei perfumado com a seiva das ervas noturnas
As mãos perdidas nas amplidões do ser que fui.

Não se apressem, estrelas!

O limite de minha visão tem um longo trabalho
Um longo livro para ler e corrigir.
Minha casa ainda não está de todo terminada.
Tenho tantas tarefas a acabar!
Como se almoçado
Faltasse digerir os alimentos do tempo.

Quando a morte chegar
Que me veja de banho tomado
Meu corpo inteiro limpo e perfumado
Tendo escrito meu último poema.
E o último copo de cerveja
Vazio!

CLAUDETE – Rafael Rocha

Do livro “Felizes na Dor – Tributo ao poeta Charles Bukowski” – 2016
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Claudete era a mais safada
das putas do Pátio do Carmo
no centro do Recife
Claudete bebia cachaça
como se fosse água
e trepava como se
os caralhos oferecessem a ela
uma fome sanguinea

gritava como era gostoso
o gozo pelo corpo dela
ela fazia da foda
uma perpetuação
de todos os relâmpagos
Claudete não tinha
escolha para o tempo
o tempo era dela

Claudete morava
no bairro de Peixinhos
na cidade de Olinda
com a mãe e uma filha
de uns poucos dez anos
de dia Claudete era sã
 só bebia café e água
e não falava palavrão
era uma santa

Claudete matou Valdirene
na pensão de dona Amara
da rua da Concórdia
a filha de Claudete cresceu
com a mãe no presídio
a filha de Claudete hoje
é muito mais que Claudete
é a mais nova puta da cidade