Quinto capítulo
do romance lançado no ano de 2002
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Marco
Cícero soube da proximidade do encantamento de Maria Rosa exatamente quando
deslizava em sua cadeira de rodas do quarto para a sala de estar em busca do
café da manhã.
A
fumaça branca o alcançou na sala e um cheiro adocicado de ameixas invadiu suas
narinas. As lembranças o acordaram ainda mais.
Adiantou
a cadeira de rodas até a varanda e ali se deixou ficar imóvel com as
lembranças.
Sua
filha Marly o alcançou e ficou a seu lado. Ao olhá-la, ele viu nos olhos da
moça o espanto de quem não entende mistérios e muito menos realidades
fantásticas. Um sorriso bailou imperceptivelmente nos lábios e fê-lo acariciar
as mãos da filha. Assim, ambos ficaram envoltos pela fumaça e por odores
estranhos exatamente às seis da matina.
O
semblante de Marly buscava enfrentar os olhos de Marco, mas ele os fechara para
mergulhar nas reminiscências. Respeitando o pai e sua história de vida, ela
acariciou levemente o rosto do homem e o deixou solitário na varanda.
Recordava...
Quem eu quero não me quer/ Quem me quer
mandei embora / E por isso já nem sei / O que será de mim agora...
Os
dedos percorriam o violão com grande intimidade. O instrumento musical era o
corpo da mulher amada, e as cordas os sentidos.
A
música a voejar no ar se esvaía no prazer de ter sido criada, manipulada e
acariciada com a experiência de dedos e mãos tão mágicas.
Os
frequentadores do bar se deixavam levar pela voz de Marco Cícero, como
hipnotizados.
As
mulheres da vida esqueciam, por instantes, que estavam a vender o corpo e se
entregavam por inteiro ao prazer da melodia triste e plangente, levada às
janelas dos puteiros, onde desaparecia sobre os clamores de gemidos, ais e uis e dos rangidos das molas das velhas camas patentes.
Passo as noites meditando / Revivendo
meu castigo/ No meu quarto de saudade / Solidão mora comigo...
Os
olhos de Marco pousaram na linda mulher de pele branca e grandes olhos
castanhos a espiá-lo na mesa defronte, e seus dedos quase esqueceram a melodia
a dar sequência nas cordas do violão.
Soube
naquele instante: tinha alguém para usufruir a noite consigo.
Viu,
num relance, os olhos da fêmea oferecendo a mensagem de que seria sua companhia
noturnal até as estrelas desaparecerem do firmamento.
Por onde anda quem me quer? / Quem não
me quer onde andará?/ O que será da sua vida? / Da minha vida o que será?..
Levantou-se e, dedilhando o violão, dirigiu-se para os
olhos de Maria Rosa que o fitavam embevecidos, com brilhos insinuantes de
lubricidades inconfessáveis. Ambos saíram do bar lado a lado, dobrando numa das
ruas transversas à Avenida Marquês de Olinda, em direção à Vigário Tenório.
Os
fregueses do boteco de Tião Marinheiro ficaram a escutar a voz de Marco Cícero
a se distanciar, e depois deram vazão aos seus instintos, levando os copos
cheios de cerveja às bocas, acendendo cigarros, dando risos pueris e fazendo sinais
às meninas da noite, que só então
começavam a “fazer sala” para eles.
Não sou capaz de ser feliz / Nos braços
de um amor qualquer/ Ah, se uma fosse a outra/ Que eu amo tanto e não me quer.
Porém,
os desvarios sexuais na grande cama de casal da madame quase põem Marco Cícero em pandarecos. Acordou
na manhã seguinte com os raios do sol a entrar pela janela do quarto da pensão.
Vendo-se
sozinho e nu, com a carne do corpo lacerada pelas unhas cortantes da mulher,
amaldiçoou a hora em que a conhecera e se deixara levar pelos seus encantos.
“Devia estar muito bêbado! Ora, porra!
Que papel de burguês de merda estou fazendo! Caralho!”
A
porta se abriu inundando de luz o aposento, e Marco Cícero ficou embevecido com
a aparição.
Nua,
com os seios de mamilos pontudos e arrebitados, Maria adentrava o quarto com
uma bandeja cheia de comida nas mãos, onde também se via um estojo de primeiros
socorros.
A
pele macia e branca da fêmea mostrava ao homem que ele não tinha se enganado na
escolha da beleza para aquela última noite.
E,
ainda mais, o cheiro a sair do corpo feminino começava a deixá-lo em transe ou,
melhor dizendo, como um animal no cio.
Maria
Rosa notou tudo isso.
−
Coma primeiro pra ficá mais forte. Que ôme!
Quase me mata na noite passada. Fudedô
do cacete tu é, visse?
−
Esquece a comida. Não tenho fome alguma. É você...
−
Eu sei... Sei... Mas será muito mió cumê
o que eu trouxe e deixar que eu faça uns consertos nesses arranhões. Desculpe,
mas fui obrigada a enfiar as unhas em tu antes da minha perseguida cair abaixo,
visse?
−
Você é linda! Você é...
− Dispois... dispois... dispois... Seje
bonzinho e coma pra fica fortinho. Sou tua sobremesa, certo?
A
sobremesa, na realidade, foi um “repasto” nunca experimentado por Marco Cícero.
As
carícias feitas em seu corpo pela experiente mulher colocaram o rapaz em estado
de excitação tão desesperado, que via até formigas deslizando nas paredes e
entrando em trabalhos sexuais.
Quando
se compenetrou que deveria dar sequência aos trâmites da verdadeira paixão,
sentiu a mulher tentando por todos os meios fugir do seu contato. Mesmo assim
ele a buscava, sedento e faminto, querendo conhecer seus ardilosos segredos,
mergulhar nos recônditos mistérios. Sabia-se um bom amante, mas naqueles
instantes matutinos estava se superando em todos os sentidos. O desejo escorria
por suas vísceras como as águas do Capibaribe no encontro com as do Beberibe,
buscando as espumas do mar.
De
repente, notou como a mulher enfraquecia suas defesas, enfiava-se com tudo e
quase toda dentro dele, agoniada, molhada, deslizante, suada e praticamente
vencida.
Escutou
o grito furioso de fêmea no cio, o gemido longo e gutural, seguindo-se o
orgasmo mais fantástico que ele nunca vira na vida. Pela boca, pelos olhos,
pelas narinas e pelos outros orifícios do sinuoso corpo, Maria Rosa soltava
longos e odoríficos vapores de fumaça branca e o envolvia num abraço mágico e
atordoante.
Voltando
de suas reminiscências, Marco Cícero, antes de chamar sua filha e pedir que
pusesse a mesa para o café da manhã, exclamou:
− E
agora ela está morrendo! Como é que pode morrer uma mulher como essa? Como é
que morre uma mulher como essa?...
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