sábado, 28 de setembro de 2019

ITINERÁRIO – Rafael Rocha

Do livro “Abismo das Máscaras” 2017
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O tempo não tem horário
é um itinerário
onde apenas há passado
coisas gastas
e antigas
como o espaço onde estamos
a esperar:
o último terminal.

O poeta aguarda
ainda com esperanças
e vive entre homens
e mulheres
dentro de uma abóbada vazia
respeitando
o trâmite silencioso
das coisas transmudadas em nada.

Ele é dono de tantas esperas
está aqui como criança nua
(tristemente nua)
quase no fim do itinerário
e quase a ser passado.

A vida ofereceu coisas para chorar
e outras pequenas para alegrá-lo
mas todo poeta tem dessas coisas
antes do esvanecimento.

Sobram terra e vegetais.
Sobram recordações.

MESCLAS ANTERIORES – Rafael Rocha

Do livro “Meio a Meio” - 1979
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 “Ontem, na tarde loura de aquarela
Alguém me perguntou – como vai ela?
Como vai o teu amor? – Eu respondi:
Não sei. Uma mulher passou na minha vida...
Não me lembro... E nessa hora comovida
Como nunca lembrava-me de ti”.
Menotti Del Picchia

Ainda sobraram uns pedaços da tua presença:
O cheiro do teu corpo em algumas camisas.
O teu jeito cotidiano de mostra-se má.
Coisas tuas que o tempo não apaga
tais como um gesto de carinho
um imenso desejo do meu sexo
as veracidades da tua natureza de mulher.
Restou o teu retrato em três por quatro,
completamente intato
na minha bolsa capanga.
Um pouco do teu jeito
espalhou-se nos meus jeitos
coisas tuas que emolduraram
meu desespero desequilibrado.
De ti restou um pouco
de nossa viagem aos mercados
das coisas que compramos juntos
tentando um mundo novo
a nossa imensa amizade,
as nossas rusgas no jardim.
Ainda restou a tua graça no meu pensamento.
Escrínios de teu rosto bonito
nos rostos dos camaradas.
Restaram vozes tuas
quando cantavas ao meu ouvido
canções que falavam do amor na terra
e acima dela.
Depois de tudo isso eu restei-me
com todos os teus restos.
Com o teu modo de me ouvir falar
de um futuro ilusório.
De um canto só nosso.
De algumas crianças.
De relações integrais
– teu corpo no meu corpo –
E assim quem restou fui eu mesmo,
eu inicialmente
que sabia as lutas que travaste
com o mundo e com tu mesma.
Que sabia de cor as tuas vestes mais íntimas.
Que sabia o ponto de partida
e chegada do teu êxtase.
Restou, antiga amada,
as cores das nossas almas.
Nossos frêmitos, nossas fugas, nossas dores.
Restou na realidade tua completa ausência.

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

GRÃOS DE TERRA SOBRE... – Rafael Rocha

Conto inserido no livro “O Espelho da Alma Janela” (2009) agraciado pela Academia Pernambucana de Letras (APL) em 1988, com o Prêmio Leda Carvalho e com Menção Honrosa pela Academia de Letras e Artes de Araguari (MG) no ano de 1986. Dedicado a minha avó materna Lídia Barros de Almeida (In Memoriam)
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Nós não sabíamos o quanto ela podia ter feito para explicar a vida.
Agora, quando a olhamos perante o vazio das suas lembranças – coisas isoladas em parênteses temporais, intervalos fechados entre duas incógnitas – sentimos entristecidos o enorme tamanho de sua ausência.
Ela vive um espasmo agudo de velhas estrofes, reminiscências do seu tempo e, quantas vezes, a princípio, seus gestos e sua voz trêmula pareciam profetizar novas ações e esperanças. Realmente, se formos observar todas as multidões de orações de seu rosário, na contida solidão de sua alma nonagenária, quem – possuindo-a em prosa e versos – escreveria e contaria sua lenda diante do angustiante massacre do tempo?
Então, sempre poderemos vê-la, perdida e esquecida em algum lugar espaço da casa. Às vezes, deglutindo para si mesma, sonhos de uma espécie fantasiosa, os quais não somos dignos de conhecer. 
A mania de gritar em nossos ouvidos uma riqueza material nunca existente, ou ainda, de dar-nos as boas-vindas e inquirir de cada um de nós do tempo, da saúde, do trabalho, da família e, por incrível que pareça, dos nossos amores.
Seu corpo teima em viver. Seu cérebro, hoje fútil, quase sempre esquece o fio da meada e estaciona em algum ponto imaginário de sua vida vagarosa, apertada entre o quarto e um pedaço de sala, na escuridão para sempre dos seus olhos pequenos.
 Foi preciso, portanto, nosso crescimento vir a ser mental para o nosso espaço unidade comungar de tudo o que se passava dentro dela. Em primeiro lugar, notamos o pensamento vivo e ignóbil de nossos cérebros de que ela sempre tinha sido a mesma, assim velha e enrugada, deslizando para uma esclerose compacta das artérias. 
Nem sequer pensamos: um dia ela também brincara com algumas bonecas de pano. Nunca imaginamos: sua carne também teve desejos de sexo. Nem chegamos a crer: seus olhos também derramaram lágrimas por causa da morte e, por dores da vida, seus lábios sorriram com sua primeira criança chorando em seus braços. Nunca acreditamos em nada do que ela nos contara.
Mas nessa nossa estúpida qualidade de quem possui oportunos meios de viver, ouvir, ver, gritar, correr e amar nas pressas deste século, e, também apressadamente, tentar transformar o mundo, hoje vimos seus gestos e ficamos estupefatos a pensar antecipadamente no futuro de nós mesmos.
Estúpidos, não vimos por onde acreditar que essa carne flácida, enrugada, feia e velha, teve um dia o desabrochar da menina-moça e a suavidade veludo perfume da amante.
 Então, nesse princípio de entendimento, quando chegamos a ver o quanto ela representa de humano, quando observamos que sua presença dentro do nosso mundo ainda é uma presença de carne e respiração como a nossa e não uma alegoria simbólica do passado - mas uma presença concreta de nome e gestos mortais - acreditamos em sua revelação de vida.
Realmente, pareceu aos nossos olhos e ouvidos que esse entendimento, mesmo tardio, tornou-se, ele mesmo, uma construção erguida por sua presença de carne e espírito.
E, assim, quando naquela tarde de setembro, seu corpo passou rente aos nossos, buscando refúgio em uma das poltronas da sala, com as mãos apalpando as paredes e os móveis, sem pedir ajuda a nenhum de nós, quando a vimos sentada, estávamos tão vivos dentro do seu silêncio, que ficamos aterrorizados quando ela nos disse:
“É muita terra lá no quarto. Muita terra. Muita...”
Como nossas bocas não pronunciaram palavras, assustadas com aquela interrupção dos nossos instantes de seres presos a um colóquio de sonhos interiores, ela teimou em continuar falando e, a partir daí, sentimos sua presença tão igual à nossa no túnel do tempo:
“Acordei coberta de terra. Tive de balançar o lençol da cama para poder me levantar. Da cabeça aos pés coberta de terra. Vocês têm de achar um jeito de limpar o quarto. Ele está cheio de terra. Muita terra.”
Assustados, olhamos uns para os outros. Tudo que ela falara tomou uma forma ágil de pássaro. Algo assim como uma premonição vaga, porém concreta, de um fim em começo, igual à carne se envilecendo e, aos poucos, caindo como poeira de dentro de suas vestes, mostrando o esqueleto numa órbita fixa de satélite a planeta, mistifório de estrelas ao epílogo do ciclo vital.
Saímos de casa e fomos para a rua. Não nos olhamos mais e parecia que estávamos vendo a vida de cada um saindo do corpo indivíduo. Observamos que nossos pensamentos eram uns dos outros e não próprios a cada um.
Quando voltamos da rua e entramos em casa, ela ainda permanecia sentada na mesma poltrona, não sabemos dizer se mais certa com seus pensamentos, puxando e repuxando com o polegar e o indicador da sua mão direita, uma mecha de fios prateados da cabeleira que deslizava e se enrolava, deslizava e se enrolava de forma quase contínua sobre a sua orelha e a sua face.
Nos outros dias, nossos pensamentos estavam bem mais ligados a todos os comezinhos gestos dela. Ligamos a ela de tal forma nossas individualidades que os reflexos dos nossos pensamentos saltitavam nas paredes da casa e, como em um cinema, ficamos estáticos assistindo a sua história. À noite, nossos olhos observavam seus gestos procurando o sono, ouvíamos suas conversas com pessoas invisíveis dentro do quarto, suas canções dos tempos de outrora perturbando a nossa letargia de seres vivos.
A pergunta que mais nos fazíamos era apenas uma: “Quem está vivo e quem está morto?”
Nós, que de há muito tínhamos desacreditado em Deus, ficamos espantados com o retorno de milhares de subdivindades à nossa casa.
Ela rezava as ave-marias de modo tão ininterrupto que o quarto se enchia de anjos e tresandava a velas de igreja.
Porém, não achamos justo reclamar de nenhum desses fatos, mesmo quando a ouvíamos, quase aos gritos, pedir perdão por todos os pecados de sua vida, girando velozmente os dedos pelas contas do rosário em busca de uma ave-maria mais poderosa que todas ou de um salve rainha mãe de deus que lhe abrisse as portas da morada celeste.
Um dia houve quando a surpreendemos num colóquio com a parede do quarto. Falava de sua inutilidade.
Falava de sua solidão.
Chamava pessoas cujos nomes nos eram estranhos. Fantasmas de sua remota infância talvez estivessem desfilando perante ela. Rostos que só ela teve oportunidade de conhecer. Sabíamos de sua cegueira, mas ela estava vendo com os olhos da memória e suas conversas com a parede do quarto deviam receber respostas, pois existia uma continuidade assombrosa de questões debatidas.
Ouvimos sua oração para uma subdivindade feminina protetora dos cegos e o seu pedido de retorno da visão para voltar a pregar botões em camisas de brim, costurar camisas para os rapazes da rua onde morava, alinhavar calças e ternos de linho, acertar o acabamento final em palas e bainhas numa velha máquina de costura Singer.
E, depois, como se uma enorme pedra desabasse sobre o seu corpo, vimos seus dedos rodopiando nas contas do rosário e uma oração sem nome chegou aos nossos ouvidos.
Ficamos transidos de medo, ouvindo sua voz trêmula chamando a morte. 
E, então, quando resolvemos voltar à quadra da infância, vimo-nos garotos em volta de seu corpo de matrona risonha, a nos ofertar, ao pé da velha máquina de costura, carretéis de madeira outrora cheios de linhas coloridas, caixas vazias de sapatos, onde amarrávamos barbantes para arrastar pelos corredores de sua casa automóveis e trens imaginários, como hoje ela puxa suas recordações através de uma longa teia de lembranças, em ligação íntima à sua crença cristã na vida eterna, e ao seu temor humano dos sete palmos abaixo dos grãos da terra.

GARGALHADAS – Rafael Rocha

Do livro “Marcos do Tempo” – 2010
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Amada, quando a dor bater em tua porta
Tenta lembrar de mim e gargalhar comigo
Recordando os instantes das desditas
Acabadas em anseios gloriosos

Nos teus momentos de escuridão
Recorda de mim e deixa o riso voar
Lembrando quando eu dizia que teus olhos
De tão pequenos eram pétalas de flores desconhecidas

Amada, quando ficares sem meu corpo
Não deixe as lágrimas deslizando na face
Ria, pois a tua risada sempre foi para mim
Uma das ganâncias maiores de minha vida

Em qualquer lugar onde eu ficar, amada
E escutar teu riso cristalino
Estarei dinâmico e buliçoso
E transformado em vento virei rir contigo

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

PEDAÇO DE MAU CAMINHO - Rafael Rocha

Do livro “Contos Delirantes com Versos em Bolero” – 2017
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O condomínio Parque das Camélias fica situado no bairro do Janga, na cidade de Paulista,  Pernambuco. É um lugar calmo e pacífico. Dentro do condomínio existe o pequeno boteco de seu Lula, espaço onde, depois de uma boa caminhada ou um jogo de futebol no campo de grama sintética ali existente, os jovens e os mais velhos vão beber umas “geladas”.
Em um sábado, adentrou no condomínio um caminhão de mudanças e os trabalhadores começaram a retirar móveis e caixas e a levá-los ao bloco 13 (exatamente onde mora um amigo meu, o Antônio) para um apartamento do segundo andar, desocupado já há três meses.
Quando não tinham mais móveis ou caixas para levar ao apartamento, os carregadores, já bem suados, dirigiram-se até o boteco de seu Lula e pediram água e refrigerantes para aplacar a sede e o calor.
- E a dona disse que vinha atrás no carro dela, seguindo a gente. Até agora nada! - falou um deles.
Aquele que parecia o motorista, porque não carregou para dentro nem um mísero alfinete, encolheu os ombros.
- Ela vem, sim! - rebateu - E a gente espera, porque temos de receber o pagamento pelo serviço, né? 
Não demorou muito tempo para um Toyota de cor prata adentrar o condomínio e parar logo atrás do caminhão de mudanças.
Dele desceu uma mulher muito, muito bonita.
Todos os homens puseram os olhos naquele pedaço de mau caminho, como bem salientou seu Lula, o dono do boteco.
Morena clara, olhos amendoados e verdes, cabelos castanhos deslizando pelos ombros, indo quase até o meio das costas. Nariz arrebitado. Boca carnuda.
A jovem usava um curto short jeans colante, a mostrar um traseiro empinado e saliente, a beleza das coxas e das pernas.
Uma blusa branca completava a indumentária, destacando os seios, e esquentando ainda mais o quente sábado, fazendo com que os homens que a olhavam ficassem mais suarentos ainda.
Com um andar semovente de fêmea no cio ela começou a transtornar os machos ao redor. Dirigiu-se ao motorista do caminhão, tirou da bolsa um maço de notas e uma folha de papel, pagou e recebeu do motorista o recibo assinado.
A seguir, agradeceu, e sem olhar para ninguém encaminhou o esguio monumento ao bloco 13 onde entrou e desapareceu.
- Vamos ter confusão por aqui dentro de alguns  dias! - profetizou seu Lula.
- Será que ela vai morar sozinha por aqui? – indagou Oriosvaldo, que morava no bloco 10,  um pouco mais longe.
- Esquece Oriosvaldo, essa daí não é carne pra teu prato brincou Valteir, que morava no bloco  9.
Antônio se dirigiu ao motorista do caminhão de mudanças e fez algumas perguntas. Depois de receber as respostas, ele retornou, encheu o copo de cerveja, tomou um gole e calmamente acendeu um cigarro.
- Diz, cara! Fala! Quem é aquele pedaço de mau caminho? - perguntaram todos quase em uma só voz.
- Ela vai morar sozinha no bloco 13. Alugou o apartamento em frente ao meu por seis meses. Foi o que o motorista do caminhão disse.
- Vamos ter confusão por aqui! Vamos ter... - continuou a profetizar seu Lula.
Antônio, do alto de seus 50 anos, era casado e de bem com a vida, filhos já adultos e esposa bonita e bem conservada.
Porém, como qualquer macho, não deixava de olhar para os atributos de uma mulher, principalmente se a mulher   fosse especial como essa que acabava de chegar. Mas ficou calado e não disse uma só palavra.
Todos sabem como é o ser humano em matéria de querer se meter na vida dos outros. Portanto, em menos de duas horas...
- O nome dela é Camila. Tem 28 anos. Solteira. Trabalha como modelo. Já foi capa de revista. Figurou em um filme nacional. É carioca. Torce pelo Flamengo. Vai passar seis meses aqui entre Olinda e Recife para posar para uma revista masculina – espalhou Pedro Paulo, morador do bloco 12 e que era conhecido por saber da vida de todos os moradores, ainda que esse mérito não fosse dele, mas da mulher e da sogra, que morava com ele.
- Vai posar nua? Pra qual revista? - perguntaram todos ao mesmo tempo.
- Que pedaço de mulher! Puta que pariu! Quero saber em que revista ela vai sair nua, Pedro Paulo! - pediu seu Rogério, o septuagenário do condomínio - Uma mulher desse tipo é puro Viagra.
- Tira o corpo, seu Rogério! - zombou  Oriosvaldo - O senhor não tem mais nada duro não!
- Tás pensando o quê, rapaz!? Quer experimentar pra ver? - conclamou seu Rogério, levando a mão à virilha.
- Esse troço vai dar em merda! Ora, isso vai! - continuava a profetizar seu Lula.
Os dias e semanas foram passando e a linda Camila pouco era vista pelos moradores. Tudo porque ela saía às cinco da manhã e só retornava perto da meia-noite, diariamente. E, nos fins da semana, ninguém a via, pois o apartamento ficava fechado.
Dois meses se passaram. Nenhum  acontecimento digno de nota e de comentários envolvendo Camila.
Até que dona Neusa, uma viúva de 80 anos, fofoqueira como ela só, e que morava sozinha no apartamento logo ao lado do de Camila resolveu entrar em ação.
Juntou toda a mulherada do bloco 13 e dos outros blocos em um sábado à tarde, no pátio, pertinho do lugar de onde os maridos bebiam no boteco de seu Lula depois do jogo de futebol e abriu o verbo:
- Escuto e vejo com esses ouvidos e olhos que a terra há de comer. É uma piriguete bem safadinha. Eu observo, eu escuto...
- Mas dona Neusa, pelo que me disseram, ela sempre chega tarde do trabalho. E acorda cedo... - falou a esposa de Pedro Paulo.
- E geme, minha filha! Geme na cama de uma maneira que só deus sabe...
- Eu nunca escutei gemido algum, dona Neusa! - disse a mulher de Antônio.
- Eu acho que vocês têm é de vigiar seus maridos. Essa mocinha deve ter seduzido todo mundo. Ela geme porque tem homem na cama. Deve estar levando um por um de seus maridos para a cama dela. Cada noite fica com um.
- Que vergonha! Que safadeza! - exclamou a sogra de Pedro Paulo.
A mulher de Pedro Paulo não gostou da entrada da mãe na conversa e falou ríspida:
- Não se meta nisso, mamãe!
- Com falta de respeito eu me meto, filha. Eu me meto! E concordo com a Neusa! Tem cipó duro no meio! Ora, se tem!
Na mesa do boteco de seu Lula, os solteiros e os casados observavam a reunião especial das mulheres.
- Chamo isso de inveja! - exclamou seu Lula - Por isso que eu disse que vai ter confusão. E já começou!
- Quando um monte de mulher feia, mal resolvida e mal amada se junta, pode apostar que vem merda por aí!... – disse seu Rogério, o septuagenário, batendo no chão com a bengala.
- Que é isso, seu Rogério? Minha mulher não é desse tipo não. Minha mulher é bonita e bem resolvida. Que é isso? - reclamou Pedro Paulo.
- Também não concordo com o senhor não, seu Rogério! - falou Antônio.
A acalorada discussão entre as mulheres sofreu uma pane repentina. Os homens levantaram-se das cadeiras onde estavam sentados no boteco de seu Lula e ficaram a olhar a beleza de Camila, em um short minúsculo e pequeno sutiã de praia, a descer do Toyota que tinha estacionado ao lado de onde as mulheres estavam reunidas.
Os olhos dos machos brilharam de excitação, observando a linda mulher encaminhar-se direto para o local de reunião das matronas do condomínio.
Todas se calaram, mas Camila ficou no meio delas. Ela pediu para falar. As mulheres fizeram um círculo em volta de Camila, como os jogadores de futebol fazem antes de começar o jogo e ficaram a escutá-la.
- Que diabo está acontecendo? - perguntou seu Lula.
Dez minutos depois...
Burburinho! Exclamações de júbilo! Gritinhos excitados!
A seguir aplausos e mais aplausos e todos vendo as mulheres dando beijinhos umas nas outras e se abraçando e rindo satisfeitas como nunca. Dona Neusa abraçou a linda Camila e ambas se encaminharam enlaçadas e alegres para o bloco 13, seguidas pelas outras.
Aparvalhados e sem ter como explicar o motivo daquela radical mudança de comportamento, os homens começaram a beber e a fumar cada vez mais depressa. Apenas seu Lula estava com uma pulga atrás da orelha. Chamou Pedro Paulo e pediu:
- Vai lá no bloco 13 e espiona. Pergunta à tua mulher. Depois volta e conta pra gente o que significa essa coisa toda.
 Pedro Paulo aquiesceu e foi.
Vinte minutos depois, eis que ele volta e agora todos os solteiros e casados estão de olhos e ouvidos atentos.
- Fala, homem! Diz! O que anda acontecendo?
Pedro Paulo soltou uma sonora gargalhada.
- Não dá para acreditar! - exclamou.
- Fala! Fala, homem! - gritou seu Lula.
- Aquele pedaço de mau caminho tem nome. Chama-se corrupção. Ela comprou toda a mulherada daqui, principalmente dona Neusa.
- Que história é essa? - gritaram todos a uma só voz.
Pedro Paulo não parava de rir. Pediu uma cerveja e bebeu até a metade pelo gargalo.
- Um filme! Um filme que ela vai fazer! Um comercial para TV! Dona Neusa vai ganhar um papel no filme como a mãe dela, e minha sogra vai ser a tia. A mulher de Antônio vai ser diarista.
- Que porra de filme é esse? - todo mundo agora estava morrendo de curiosidade - Explica, Pedro!
- Os gemidos noturnos eram treinos de voz e fazem parte do roteiro do filme. E dona Neusa e minha sogra vão atender à filhinha e à sobrinha doente no filme com o remédio salvador, enquanto a diarista traz um copo com água. E cada uma vai ganhar um cachê pela participação no valor de cinco mil reais.
Pedro Paulo voltou a cair na risada, arrematando:
- E avisaram que precisam de um velhinho para fazer o papel do vovô dela!
Os olhares de todos os homens recaíram, invejosos, sobre seu Rogério.