quarta-feira, 23 de outubro de 2019

ANDANÇAS – Rafael Rocha


Terceiro capítulo do livro homônimo lançado em 2018
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O PADRE AMOROSO

   Dickens von Derley, religioso natural da Holanda enviado pela Santa Sé ao Nordeste do Brasil para pregar a palavra de Deus, era conhecido em todo o sertão do Pajeú como padre Dicá.
 Naquela noite de maio de 1919, durante a novena em homenagem à Virgem, na igrejinha de Calumbi, ficou ofuscado com a beleza de dona Eurídice.
Seus olhos não se despregaram da figura morena e tímida coberta por um longo véu de seda negra, ajoelhada em um dos bancos perto do altar-mor.
Por todos os meios ele tentou fugir dessa visão encantadora.
E como nunca tinha visto antes aquela pessoa, resolveu, após o ofício religioso, tomar informações sobre ela.
Logo ficou sabendo que Eurídice Castelo Branco Aragão Martins de Barros tinha chegado há pouco ao pequeno povoado acompanhada por seu marido Roderico Camilo Castellañeda de Alcântara Martins de Barros.
Ambos obedeciam a recomendações médicas, que lhes preconizaram mudanças de ares para curar uma progressiva inflamação nos pulmões a evoluir perigosamente para uma infecção virótica que, em questão de poucos dias iria levá-los ao túmulo.
Naturais da província portuguesa de Trás-os-Montes protagonizaram em sua terra um tempestuoso caso de amor, que levou suas famílias -inimigas desde quando Isabel e Fernando governavam os reinos de Castela e Aragão - a um novo e sangrento conflito.
A inimizade entre as famílias foi a desculpa para o casal realizar uma fuga cheia de peripécias, atravessando o Oceano Atlântico num barco de imigrantes até alcançar o porto do Recife.
Nesse local, marcados pelo cansaço, consideraram ser tempo de dar um basta aos percalços que os obrigaram a conhecer as terras de além-mar.
Na capital pernambucana ficaram alojados numa pequena casa da Rua Formosa, na freguesia da Boa Vista, onde dona Eurídice tomou conhecimento dos primeiros sinais da gravidez, incluindo alguns sintomas estranhos de alguma doença. 
Sintomas que incluíam persistentes tosses seguidas de escarros sangrentos durante as noites.
Os dois foram examinados pelo clínico-geral da Santa Casa de Misericórdia, o doutor Rômulo Almeida, cujo diagnóstico dizia o seguinte:
“Devido aos efeitos dos miasmas atmosféricos gerados pelo encontro dos rios Capibaribe e Beberibe, incluindo a imundície a tomar conta das ruas da cidade, eles procurassem viver numa região de ares mais secos e sem o oportunismo dos encontros e desencontros em ambientes semifechados e apertados dos inúmeros sobrados e águas-furtadas do Recife”.
E, disse o médico, que ambiente mais seco poderiam encontrar a não ser no sertão do Estado, onde a luz do sol e o forte calor enchiam de vertigens os seus habitantes, gerando animais e plantas dos mais estranhos tipos e compleições?
Eurídice e Roderico se instalaram em Calumbi naquele ano de 1919 e com suas poucas economias buscaram sobreviver no clima ardente e seco, cultivando o amor nascido dos genes de Castela e Aragão.
Quando nasceu a filha Madalena Jesuína, a região estava sendo açoitada pelos cangaceiros comandados pelo satânico Zé Viola.
O casal, ajudado pelo padre Dicá, abrigou-se em um porão, nos fundos da casa paroquial, e assim conseguiu sobreviver à sanguinolenta fúria que quase retirou o povoado do mapa.
Nesse local, Madalena Jesuína nasceu sob as vistas de enrugadas beatas da congregação do Sagrado Coração de Maria, inclusive, sob o olhar amoroso do padre.
Dona Eurídice, após o parto, já curtindo a fraqueza dos pulmões desde a chegada no porto do Recife, foi atacada por uma febre maligna e intermitente.
Três dias depois do nascimento da menina, ela fechava os olhos cheios de mensagens amorosas enviadas ao marido Roderico, ao seu lado ardendo em febre como um carvão aceso, pois não saíra de sua cabeceira um só minuto.
Quando ambos selaram com um demorado beijo na boca a passagem dela para a outra vida, na promessa de que o amor por ele estaria esperando junto das nuvens e dos arcanjos, o padre Dicá acreditou ter observado um relâmpago de entendimento nas pupilas de dona Eurídice.
Ela parecia querer mostrar o quanto ele tinha sido para ambos a mão certa a oferecer a certeza da vida e da paixão em outros espaços.
E o padre Dicá obrigou-se a oferecer seu amor também à pequena criança colocada em seus braços. Deu a ela a bênção e o batismo, e, acreditando-se em pecado mortal, tomou a resolução de criá-la.
Depois de vinte e quatro horas, gritando o nome da mulher que consigo percorrera terras e águas, Roderico Camilo Castellañeda Alcântara Martins de Barros também morria.
Nos dias e anos a seguir, a responsabilidade tutelar sobre a criança da única mulher a trazer amor à sua vida ligou definitivamente o padre Dicá àqueles seres raquíticos a procurá-lo para pedir perdão pelos seus pecados.
Tentavam acreditar que as dores pelas quais passavam na aridez daquela terra eram provenientes dos seus inúmeros pecados sobre a face do planeta.
Nesse ambiente religioso repleto de missas e de novenários, com leituras do catecismo e da entrega das almas no confessionário, cresceu Madalena Jesuína, até que seus olhos pousaram, no alvorecer dos seus 19 anos, na figura gigantesca de Otaviano Neto do Nunes.

IDIOTAS – Rafael Rocha


Do livro “Loucura” - 2018

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Loucos e bêbados
são pessoas de sorte.

Os loucos agem livres.
Os bêbados dormem.

Os loucos e os bêbados
fogem da realidade.
Mas sabem amar e rir
como crianças.

Os loucos são sortudos!
Os bêbados são felizes!

Os sóbrios e os não loucos
são os idiotas do mundo!

MORTAL HERANÇA – Rafael Rocha


Do livro “Farol” – 2019
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Quando o grande terremoto
varrer a cidade ímpia,
onde os ladrões
fecharam as aves em gaiolas,
tudo ficará gangrenado
e com sangue purulento:
- Mortal herança
pronta para os abutres.

Abismos se abrirão
na crosta da Grande Terra
e homens endemoninhados
recriarão a história,
escrevendo a farsa de mitos
como se fossem heróis,
destruindo
direitos e sonhos
e esperanças.

Quando o imenso tsunami
alcançar a grande baía
os alienados cantarão salmos de medo.

Nenhum deus virá salvá-los.

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

A ÚLTIMA DAMA DA NOITE – Rafael Rocha


Oitavo capítulo do romance lançado no ano de 2002
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Do diário de Jurandir Farias:

Ela não morreu de uma hora para outra como se imagina. Foi uma morte gradual, lenta, como se o tempo não desejasse seu morrer antes que todos os sopros e ventos deste mundo conhecessem melhor seu corpo.
Sabia, sim, estava partindo de vez, mas as únicas reclamações a sair de sua boca diziam respeito ao abandono em que se achava relegada: “Eu, eu, eu, logo eu, a mais famosa, a mais procurada, a mais badalada madama...”
Chamou-me ao seu leito de morte ali mesmo no prédio da Rua Vigário Tenório.
No dia 29 de dezembro de 1986, pus-me em contato com odores acres de velhice, mofo, rato e baratas no antes mais limpo puteiro da zona. Conhecedor daquela pensão em seus melhores dias, fiquei estarrecido ao notar o abandono em que se encontrava a casa.
E recordei ocasiões anteriores... Seresteiros reunidos no grande salão/bar, encantando os fregueses com canções da época e as mulheres da noite vestidas com suas melhores roupas, maquiadas e vivazes... E, com o passar dos anos, devido ao progresso, os violões e cavaquinhos substituídos pela famosa radiola de ficha.
Tudo nesse local falava de amores passageiros, paixões desvairadas e desejos carnais, tentando desobrigar das responsabilidades da vida, homens, mulheres, sapatões, viados e coisas mais.
Porém, era um antro gerador de sonhos e muitos romances criaram asas no ambiente, como o do coronel do Exército, Ernani Mastrogallo e a louríssima Mércia Silene.
Foi uma paixão avassaladora.
A menina da noite contou a Maria Rosa como estava sendo assediada pelo militar e ficou surpresa ao ver a madame sorrir.
Silene perguntou se isso era possível e se a mainha estava disposta a perder sua companhia por ela estar amando, recebendo duas perguntas em troca, às quais nunca conseguiu responder:
− Menina, seus sentimentos são sentimentos de muié ou de puta? E uma puta é bicho ou muié?
Um mês depois, a louríssima Silene abandonava a pensão da Vigário Tenório e, junto com o coronel Ernani partia para a cidade de Florianópolis, onde ainda hoje vive, cercada de filhos, netos, e proprietária de uma fazenda onde se cultiva soja e se faz criação de gado.
Esse foi um dos pormenores contados pela mainha antes do seu encantamento. Uma das coisas a fazê-la rir e chorar ao mesmo tempo, ligada à felicidade alcançada pela afilhada ao partir para essa aventura, e à dor de imaginar que tinha perdido um pedaço de si mesma.
“Por isso me senti iguá a Silene, partindo pro desconhecido. Também fiz isso e só ganhei dissabor”, foi um pedaço de sua confissão.
Vendo assim o seu tempo sendo colocado para escanteio, passou a falar depressa demais, e as histórias criavam liames umas com as outras, quase me levando a imaginar seu cérebro saindo das engrenagens.
De repente, às dez horas da manhã, sentou-se na cama e segurou meu rosto com suas mãos esqueléticas, exclamando: 
− Também matei gente, meu !... Isso incomoda tua mainha! Tenho um medo tão grande de partir p’ôtro mundo com esse pecado... Perciso de um padre pra me sarvar! Oh, Deus!...” 

OLHOS ABERTOS PARA A MORTE – Rafael Rocha

Nono capítulo do livro homônimo lançado no ano de 2012 – Agraciado com Menção Honrosa pela Academia Pernambucana de Letras (APL) – Prêmio Vânia Souto Carvalho (2011)
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A noite estava fria.
Nos morros e campos do quartel do 14º Regimento de Infantaria, Fernando entrava em mais um dia de treinos.
Há alguns meses servia ao Exército.
O pai chefiava o grupo no qual ele e mais cinco rapazes estavam inscritos.
Todos tinham familiares nas Forças Armadas, mas aquele grupo se preparava para ingressar numa tropa especial que viajaria aos EUA dentro de alguns meses, com o objetivo de realizar outro tipo de treinamento.
Fernando Clemens, Glauco, Rômulo, Saraiva e Ximenes, respectivamente, soldados 41, 53, 58, 67 e 72, lutavam para ultrapassar a noite friorenta vestidos apenas de sunga.
Descalços, corriam pelos morros, observados pelo agora general Wellington Clemens, acompanhado nessa ocasião pelo capitão de Exército dos EUA, O’Higgins Leary, que seria dentro de alguns dias o comandante do grupo.
O norte-americano mostrava satisfação com o que via.
Em um português arrevesado disse ao general Clemens: “Eles são bons! O senhor soube treiná-los, general. E o seu filho é muito especial”.
O general mostrou satisfação com o elogio. “Desde pequeno ele vem sendo treinado para ser um exemplo de soldado, capitão”, exclamou.
“Em nossa base eles terão muito trabalho para fazer. Vão aprender também a matar inimigos. Matar sem piedade. Espero que estejam preparados para isso”, redargüiu o ianque.
“Garanto que eles estarão preparados capitão. Bastante preparados”, anuiu o general.
O fim da madrugada encontrou os cinco rapazes com os pés cortados e os corpos dilacerados pelos espinhos do mato. Ainda assim não mostravam resquícios de que estivessem sentindo dores.
Ninguém reclamava. O general Wellington Clemens deu por encerrado o exercício às 5 da matina.
Após tomarem banho e vestirem a farda os recrutas retornaram ao pátio, ficando postados como sentinelas sem mover um músculo durante uma hora, um ao lado do outro. 
Ao fim desse período foram liberados para descanso.