sábado, 1 de fevereiro de 2020

A ÚLTIMA DAMA DA NOITE – Rafael Rocha

Décimo capítulo do romance lançado no ano de 2002
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Severina Amor em seus primeiros meses de convivência com Maria Rosa nunca conseguiu descobrir quais os objetivos a nortear a vida pregressa da mulher.
Só depois de algum tempo, quando a madame se locupletou inteira de força e poder, os neurônios do seu cérebro deram para funcionar adequadamente, até conseguir descobrir o motivo pelo qual ela criava ao seu redor uma verdadeira seita de obedientes seguidores.
No dia em que recebeu o apelido de Amor, os olhos da madrinha se encontraram com os seus, brilhando de estranha satisfação. Vigiava o encontro de Severina com um vivaz rapagão recém-chegado à pensão, atraído pela fama do local e pela beleza das mulheres.
Chamava-se Marco Cícero e era estudante de engenharia.
Na pensão de Maria ele se engraçou com Biuzinha, como era chamada na ocasião a afilhada de menos idade da casa. Aos olhos dela, Marco Cícero trouxe o prazer de sentir a beleza e a juventude de um homem. O Recife, e, em particular, a zona, enfeitiçou e viciou sobremaneira o rapaz, fazendo com que ele esquecesse quase por completo de que ali tinha vindo dar asas a estudos revolucionários e marxistas, e não às suas fantasias sexuais.
Tudo porque seus sentidos ficaram ligados às artimanhas sedutoras da negra adolescente da casa. Por outro lado, Biuzinha se envolveu de tal forma com ele, ficando sem atinar para qual prato da balança pendia mais seu coração. Se o desejo pela carne jovem do homem ou a dívida para com a madrinha, que a salvara da situação atribulada nas mãos da Chica D’Amparo. Enrodilhou-se nos liames da sedução e quando tentou escapar e voltar a ser a mesma mulher da vida de antes, notou como isso estava ficando complicado. Confidenciou seu problema a Maria Rosa:
Mainha, o que tá tendo comigo? Não quero a sióra, mainha, mas ficando com um quente cá dentro de mim por aquele menino... O que faço?
Num se avexe, fia! Vá pelo coração, tá? Seje paixão! Seje desejo! Seje boa muié! Seje Biuzinha Amor. Severina Amor! Isso!
− Mas... Tô meia morta de medo. Ele...
− Ele é um ôme, minha fia! Apenas um ôme. Trate ele assim, bem assim, porque não se deve disandá, tendeu? Deixe de ser Biuzinha, hoje. Digo e falo pr’esse mundo de putaria: agora tu é Severina Amor, minha fia!
− Num entendo isso, madrinha...
− Entenderá logo! Se envolva no pedaço desse bicho. No melado dele, minha fia! Ame o ôme! Deixe que ele ame você. Faça a teia, arainha Severina Amor. O resto... Bem... Deixe com o tempo... O tempo ajuda, minha fia...
− O que a sióra quer que eu...
− Tudo! Quero tudo de tu, fia! Tu sabe como faço o bem pra todas meninas, num sabe? Num sou boa pra tu? Mas quero muito ver os ômes nas mãos da gente... Em nossas camas... Percisando de nossa carne... Quero eles presos, minha fia! Eles pensa que pode mandá na gente! Temos de fazer eles se despregá no fiofó deles. Os ômes são uns palhaços! Pensa que sabe de tudo!
Luzes trouxeram algumas claridades ao cérebro de Biuzinha (agora Severina Amor) quando observou a frieza metálica nos olhos da madame.
Pensou como a madrinha deveria ter sofrido em outros tempos e ocasiões nas mãos dos homens maus. E agora andava cultivando a planta macabra do despeito, e, quem sabe, da vingança.
Marco Cícero, por seu turno, nunca se abriu completamente com Severina. Tinha relações sexuais com ela em quase todas as quartas e sextas-feiras e, quando sentia falta das carícias da mulher, vinha ao seu encontro até mesmo aos sábados e domingos, negligenciando os estudos.
Dentro dele, porém, nunca deixou de arder o fogo do revolucionário, pois tinha aderido à doutrina marxista fazia pouco tempo, e dentro dos ditames dessa ideologia queria se aprofundar nos corações e nas almas de homens e mulheres que não fossem burgueses.
No entanto, quando seus olhos pousavam em Maria Rosa, sentia como a Amor era um fardo leve, tal o de um pássaro, para o seu corpo e sua alma.
Enquanto a madame pensava que a afilhada o estava conquistando para retirar dele todos os poderes físicos e financeiros da paixão, Marco se enrodilhava em olhos e sonhos, visando, em suas fantasias, a carne branca e os longos cabelos louros da mulher.
Nesse desatino, mesmo continuando a curtir noites variadas com Severina, Marco Cícero deu para fazer serestas em quase todos os afamados bares e botecos da zona. Até mesmo quando chegava à pensão da Vigário Tenório, cansado de dedilhar o violão e cantar velhas ou novas canções, falando de sonhos fugazes e amores passageiros, não perdia o tino de pôr os olhos de sua mente e os desejos de sua alma na dona da pensão.
“Parece tão distante como uma estrela”, pensava. “Como poderei alcançá-la tal e qual aquela primeira vez e fazê-la sentir como vivem os caminhos e descaminhos de minha alma?”
Severina Amor só começou a notar algo fora do comum, quando Maria Rosa sentou-se à sua mesa em um daqueles dias em que Marco buscava sua companhia. Notou como o rapaz ficava nervoso e, de despreocupado, dava-se por inteiro a gaguejar e grunhir coisas desconexas.
A madame, sem desconfiar de nada, acariciou com seus longos e bem cuidados dedos a cabeleira de Marco Cícero, olhando ironicamente para a Amor, como se esta tivesse muito mais a ganhar daquele homem do que a simples curiosidade e luxúria do sexo:
− Minha fia, ele tá muito bom pra tua perseguida. É um pedaço de ôme mermo como tu disse. E como é forte! Bom proveito, menina! Bom proveito!
E, naquela noite, Marco Cícero deu o recado depois de mais de três horas sendo usado e reusado, e também utilizando e reutilizando o corpo de Severina no quarto destinado à mulher na pensão da Vigário Tenório. Após mergulhos e mais mergulhos um dentro do outro, conhecendo as alternâncias e discrepâncias de todos os orifícios corporais, adormeceram, suarentos.
No meio da noite/madrugada a Amor acordou surpreendida com os movimentos estranhos vindos do corpo do rapaz a dormir a seu lado. Sentou-se à beira da cama, acendeu o abajur e viu Marco Cícero enrodilhado no recanto mais longínquo do leito, resmungando entredentes, a paixão tolhida dentro de sua carne: 
− Maria! Maria! Maria! Minha loucura! Maria da minha poesia!

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