Do livro “O Espelho
da Alma Janela e Outros Contos” (2009)
Uma casa (?) de madeira caindo aos pedaços
em alguma das margens do rio Capibaribe. Numa das margens? Coisa de grande
monta escrever assim. Talvez alguma área de lama em algum braço morto do rio.
Um pedaço de mangue ainda não aterrado em nome do progresso. E, sobre o
progresso, nestes espaços, para que falar? O mau cheiro das águas parecia
vasculhar o perfil do casebre e dos outros casebres alinhados em torno. Qualquer
olhar a se nortear pelo espaço afora, conseguiria ver ao longe os grandes
edifícios quase envoltos pela penumbra do entardecer.
Um bulício de gente. Ordens. Militares
fardados. Mulheres. Umas em prantos. Outras falando coisas por falar. Homens
maltrapilhos, descalços. Crianças de barrigas inchadas, nuas, magras. Na
realidade, tudo em olhos de espanto. Olhos de comiseração. Olhos de fome e, por
que não dizer, olhos de miséria e desconfiança? Policiais militares. Policiais
civis. Homens de branco saindo do casebre. Um corpo envolto num lençol sujo. Um
rosto de menina. Olhos arregalados injetados de sangue.
E sangue. Tudo sangue nessa periferia
cidadã. E o rio sujo. O braço morto do rio apresentando o trágico: a vida zumbi
de homens e mulheres e meninos e meninas. Contraste com os homens fardados, os
homens de branco, Contraste com o fumo hollywood, carlton em mistura com o fumo
barato e às cachimbadas dos velhos mais distantes, acocorados, catando coisas
invisíveis na lama marginal.
E aos olhos de Inácio, o corpo
ensangüentado de Diná envolto no lençol sujo. Os cabelos de Diná: as tranças
caídas e se balançando ao vento. E aos olhos de Inácio, as imagens do homem: nu
e bestificado em cima do corpo da irmã, subindo e descendo, subindo e descendo,
fazendo o sangue escorrer no chão de lama. Subindo e descendo, sem ligar aos
gritos, sem ligar aos movimentos ásperos de fuga do pequeno corpo de treze
anos.
E, aos olhos de Inácio, o olhar do homem. A
faca nas mãos, gestos rápidos de fuga, vestindo-se, ameaçando-o, batendo-lhe no
rosto com a palma da mão direita, suada, sangrando de alguma mordida da Diná.
Diná se escondendo como um pequeno animal assustado. Um cãozinho que houvesse
sofrido uma grande surra e, depois, o grito, o pulo sobre o homem, a mordida na
garganta e Inácio vendo a faca subindo e descendo, subindo e descendo, subindo
e descendo e o corpo da menina no mole, mole, caindo sobre a lama.
Que fazer com o garoto? Levá-lo. Para onde?
Nada de perguntas idiotas! O menino não tem ninguém por ele. É órfão. É de
menor idade. Para a Fundação? Não. Juizado primeiro. Vamos ver se ele nos diz
alguma coisa.
Dizer o quê? Não conhecia o homem. Se era
dali do meio deles? Não. Nunca o tinha visto. Você está mentindo garoto. Não,
não senhor, nunca vi ele. Primeira vez hoje. Nunca o vi. Nunca vi ele.
Você vai para a escola, falou a mulher toda
cheirosa de perfume. Você vai aprender a ler, escrever, trabalhar. Vai ser um
homem. Vai esquecer tudo isso. Aprenderá tudo na escola.
A escola? Que seria aquela escola para os
seus onze anos? Muitos meninos. Meninos maus. Meninos tristes. O Carola, que
fumava cigarros cheirosos encarrapitado no imenso pé de jaca? O Bonifácio, que
metera um canivete nas nádegas do vigilante? O Enildo, que dormia na cama de
todo mundo e tinha um jeito de menina? O Espiridião, muito alto, negro como
carvão e de quem todos tinham medo e diziam que já “despachara” dois caras da
polícia lá pelas bandas do bairro dos Afogados?
A escola? Ele não podia esquecer a escola.
A mulher cheirosa de perfume ele lembrava pouco. Só a vira uma vez. Mas a
escola ensinara muita coisa. Ensinara a andar macio como um gato. Ensinara a
fumar aqueles cigarros cheirosos. Ensinara a usar um canivete. E o Bonifácio
fora o melhor dos professores. Aprendera com ele a lidar com as ruas da cidade
do Recife, com os edifícios, com as pontes, com os homens, com as mulheres, com
os soldados, com os carros…
E com o rio?...
O rio não. Do rio ele tinha medo. O rio
lembrava Diná. O sangue de Diná na lama. O rio lembrava a morte. Ele não sabia
fazer nada contra o rio. Lidar com homens e mulheres, com os tiras, era muito fácil. Uma vez, um
policial civil quase o prendera. Usou de todas as artimanhas, sabedorias do mestre Bonifácio, ofereceu metade do
apurado do roubo recente e ficou livre. Os homens são fáceis. As mulheres são
fáceis. Mas o rio não é fácil. Nunca o rio, nunca aquele tiro e esse medo de
morrer.
Correu pelo calçadão da Rua da Aurora.
Escutava atrás dele as fortes pisadas dos policiais e gritos de raiva. Uma
sirene aberta fez doer os seus ouvidos. O sangue molhava sua camisa e pingava
sobre o calçadão. Se fossem só os homens! Mas agora era tudo! Os edifícios
pareciam rir dentro da noite. As ruas metiam medo. Pareciam repletas de
fantasmas. Como se apiedando de sua situação a noite escondeu a lua por trás de
uma imensa nuvem. Tinha de se esconder logo. Não agüentava mais. Com um salto
felino se jogou nas águas escuras. O corpo caiu na lama. Arrastou-se
sofregamente e conseguiu se esconder sob a ponte de ferro, deitando o corpo
cansado num dos vãos abertos entre duas colunas.
Dormiu e sonhou com Diná. Sonhou com Diná e
com a cidade. Os edifícios voando sobre sua cabeça, transformando-se em imagens
de demônios. Sonhou com Diná e com o rio. A maré baixa. A maré alta. A maré
subindo e nunca descendo. Subindo e nunca descendo. A água tocando seus pés
descalços. O frio. O frio. O frio…
Com
o corpo meio roído pelos siris ou caranguejos, num dos vãos abertos entre duas
colunas, sob a ponte da Boa Vista, com uma bala nas costelas e um sorriso nos
lábios, foi encontrado morto às onze horas do dia seguinte, o corpo de Inácio
da Diná.
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