Do livro
homônimo lançado no ano de 2002
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O
forte cheiro de madeira queimada entrou pelas frestas das janelas dos
pouquíssimos, velhos e decadentes puteiros da Rua da Guia, exatamente quando o farmacêutico
Samuel Santos acabava de sair de um dos quartos do prédio de nº. 115, abotoando
a braguilha, depois de humana fabricação sexual com uma das afilhadas de dona Didi do Orlando.
De
repente, como se tangido pelo vento, o cheiro mudou de mato verde em chamas à
madeira seca de fogueiras de São João. A seguir, deu-se a penetrar nas narinas com
um odor de almíscar a incenso, de palha de milho a papel velho de jornal, para,
a seguir, dar vez a um cheiro mais parecido com o da naftalina.
Parecia
que centenas de fantasmas começavam a voar dentro do ar frio daquele fim de
madrugada.
Nos
quartos escuros dos antigos e velhos puteiros e pensões, as prostitutas se
enrodilhavam com os fregueses e as madames
discutiam com seus gigolôs, sem imaginar que pelos ares do Bairro do Recife
acontecia o fim de uma era.
Dona Biu, lá nas distâncias da Rua da
Aurora, enrolada em jornais velhos, quase ao lado do mais do que afamado prédio
da Sorbonne (que falem dele os mais
velhos homens e mulheres recifenses), sentiu-se prenhe do fato consumado.
Em
um átimo, acocorou-se, pondo o corpo encostado à parede e viu a fumaça branca
(e as outras cor de cinza que se lhe seguiram), espalhando-se por sobre as
pontes, quase a tocar as águas do Capibaribe.
Os
olhos de dona Biu observaram com
calma o comportamento da fumaça branca que, vinda da área portuária, escoltada
por outras de variadas cores em tom cinza, gerava um nevoeiro fantasmagórico
sobre os rios e as pontes da Veneza brasileira.
Levantou-se,
e, ajeitando no corpo as vestes maltrapilhas, pôs a tiracolo uma velha bolsa de
couro e atravessou a Rua da Aurora, indo até as margens do rio.
Na
iluminação do dia nascente, ficou a olhar o toque brumoso da fumaça na água e o
seu envolver as construções, quase a cobri-las num estranho nevoeiro.
Descobriu-se
a chorar.
Exatamente
no momento em que as duas tonalidades de fumaça se enovelaram numa só, trazendo
o odor de perfumes estranhos e exóticos, dona
Biu começou a debulhar lágrimas de há muito esquecidas.
Quando
a fumaça a encobriu por completo, ela pensava na madrinha Maria Rosa.
Observou-se
menina de quinze anos, recebendo abrigo na pensão da Rua Vigário Tenório
naqueles idos de 1946, sendo iniciada nos maneirismos das putas, nos
fingimentos sentimentais de amores fugazes e sonhos passageiros, em troca de
algum dinheiro para sua sobrevivência.
Parou
de chorar. Um sorriso aflorou nos seus lábios quando as reminiscências se
fizeram mais fortes. Assim, dona Biu
notou ser chegada a hora de agir. Com passados rápidos, seguindo a luz do dia a
clarear as ruas do Recife, dirigiu-se à igreja matriz da Conceição dos
Militares, na Rua Nova.
Lá
chegando, persignou-se em frente ao altar-mor e dirigiu-se ao confessionário.
Era
o início do último dia do ano de 1986 e o padre Luiz Ferrari já se encontrava
pronto para receber, escutar e perdoar os pecados do seu rebanho.
O
religioso sentiu - mais que ouviu - os joelhos de alguém se dobrando ao lado do
confessionário e, afastando a cortina, vislumbrou o rosto macilento e
envelhecido de Severina Amor, olhando-o
do outro lado.
Surpreso
com a presença da mulher, mas muito bem compenetrado das suas funções de
sacerdote, o padre agiu com rapidez, benzendo-a com o sinal da cruz e
inquirindo:
−
Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo! Quais os teus pecados, minha
filha?
A
voz de dona Biu estava bastante
trêmula ao responder:
−
Madrinha Maria Rosa tá morrendo! Vim cobrá
a promessa que o sinhô fez a ela naquele dia.
Um livro que prende o leitor do começo ao fim. Já li uma vez e estou fazendo nova leitura. Recomendo.
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