quarta-feira, 14 de agosto de 2019

A ÚLTIMA DAMA DA NOITE – Rafael Rocha

Sexto capítulo do romance lançado no ano de 2002
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Severina Amor olhava a madame Chica D’Amparo a contar e recontar o dinheiro apurado na noite anterior da mais afamada casa de prostituição do Bairro do Recife, naqueles fins da década de 40: o Drink’s Bar, na Rua da Moeda.
O local era ponto de encontro de políticos, jornalistas, juízes de Direito e investigadores de polícia, que ali curtiam todos os tipos de taras e caprichos sexuais sob os olhos condescendentes da mulher.
Severina notou a satisfação nos gestos da madame, imaginando que na próxima noite talvez pudesse ser menos utilizada pelos fregueses da casa, em particular pelo comendador Deusdedith Carvalhal. No entanto, sabia muito bem como isso era um sonho. Um desejo de ver-se livre das correntes que a prendiam nas paredes do estabelecimento, e sair às ruas pedindo ajuda e perdão para seus pecados de criança.
No Drink’s Bar tudo era permitido.
Talvez por isso o local fosse cognominado pelas mulheres das outras pensões de Drink’s Diabo, pelo fato de as sacanagens naturais da zona ali fugirem do lugar comum.
Nos seus 13 anos incompletos, Amor maldizia a ocasião em que penetrara no prédio para furtar uma garrafa quase vazia de guaraná Fratelli Vita, deixada numa das mesas por um dos frequentadores da casa, logo após pagar a conta. Fora descoberta pela madame, aprisionada naquelas grossas correntes de ferro e posta à disposição das taras dos fregueses da casa.
Chica D’Amparo não mostrou piedade para com ela. Quase todas as noites ela fazia leilão com o corpo da menina, e quem pagasse mais a levava para um dos quartos da pensão.
Nunca, porém, a retirava das correntes, pois isso gerava mais atração e desejo.
Permanecia acorrentada, braços e pernas abertas, recortando-se como um xis humano na grande cama e, a seguir, os clientes eleitos começavam os trabalhos de senti-la com a língua, com dedos e mãos suadas, com membros latejantes que a penetravam sem dó nem piedade. Severina, às vezes, pedia ajuda, gritava por socorro, mas apenas recebia bofetadas e judiações as mais variadas.
Só em dois dias da semana a madame não leiloava seu corpo. Nas terças e sextas-feiras, Amor era entregue aos braços do comendador Carvalhal que, ali mesmo - na grande sala/bar do puteiro - retirava-lhe as roupas, ensopava-lhe a carne e todos os orifícios do corpo com mel de abelha e a levava nos braços para o quarto, onde terminava o serviço, lambendo-a por inteiro para, no fim, jorrar sobre seu rosto um sêmen grosso e cheirando a peixe podre.
O Drink’s Bar era um puteiro de alto luxo, cuja fama transcendia o Bairro do Recife, alcançando as lonjuras da Bahia, das Alagoas e do Ceará. Muitos homens da alta sociedade desses estados nordestinos ali se faziam presentes para curtir suas taras com as mulheres de madame Chica.
Não eram mulheres bonitas.
A maioria, já envelhecida pela labuta cotidiana, trazia no rosto e no corpo as marcas das atribulações a que tinham de se submeter para continuar sobrevivendo.
Severina Amor colocou outra vez os olhos em Chica D’Amparo e viu que esta também a fitava. Tentou desviar a vista, mas tinha de jogar fora de si a necessidade de seu corpo:
− Quero fazê xixi! Quero fazê xixi!
− Cala-te, bosta de cadela prenhe! Cala-te, filha de vaca nojenta!...
− Quero fazê xixi! com fome! Quero um pedaço de pão! Quero fazê xixi e com fome, madame!
− Merda! Puta que pariu! Não vá mijar aqui não! Faz favor?...
− Quero fazê xixi! Madame, me socorra madame...
− Espeeeeeraaaaa... Vou pegar o penico. Espera um pouco, filha de uma égua!
Quando Chica D’Amparo saiu da sala, a porta da pensão foi aberta e três mulheres entraram no recinto. A da frente era tão bela e tão branca que Amor ficou com os sentidos aguçados. Nunca tinha visto alguém brilhando tanto dentro da sala penumbrosa daquele puteiro.
As outras duas mulheres acompanhantes da branca/bela ficaram circulando pelo salão, olhando as paredes decoradas com escandalosos motivos sexuais: pênis, mulheres nuas, homens travestidos de carrascos...
Ao retornar à sala, Chica D’Amparo quase esbarra com a mulher branca e bela.
O penico caiu no chão com estrondo e ela recuou até a parede mais próxima. Foi desse modo que Severina Amor conheceu Maria Rosa.
− Queria muito vê seu castelinho, amiga Chica. Realmente... Num é mermo, Eliete? Num é mermo, Marieta? É uma bela casinha, mas...
− O que vocês estão fazendo aqui? Fora daqui, cadelas vadias!
− É uma visita, Chiquinha. Só uma visita! De negócios...
− Não faço negócios com você, branquela! Fora daqui! Foraaa!...
− Mas que recepção feia, querida! Temos tanta coisa a tratá uma com a outra, sabe? Especialmente por causa daquela menina ali amarrada...
− Não se meta nos meus negócios, sua puta branquela! Deixe minha vida em paz, senão...
− Senão o quê, queridinha? O que tu fará com Maria Rosa? Diz... Diz... Eu sou toda ouvido. O que é que tu fará, queridinha?...
Chica D’Amparo fitou Maria Rosa e viu que a única saída possível era ouvir o que a mulher tinha a dizer.
Estava sozinha, as suas outras meninas dormiam e a rival, Eliete e Marieta formavam um pequeno exército. Recuou até a sua mesa de trabalho, onde escondia uma pequena pistola, todavia, Maria Rosa foi incisiva:
Num percisa ir pra tão longe, minha fia! Vamo conversar cá mermo em pé.
− Que é que você quer de mim?
− Aquela menina pra mim! Diz quanto ela custa...
− Ela é minha! É da casa! Não tá à venda!...
− Deixe de ser besta, negra puta! Diz quanto é a menina... Diz logo!
−Ela é minha! É minha melhor afilhada! Não vendo ela pra ninguém!
− Visse, Chica, eu soube que esse teu buraco faz coisas ruins e muitas das mainhas de cá não gosta, visse? Falam que aqui é o cu do diabo e eu nunca tive intimidade com esse da puta. É desgostoso pra mim, visse? Mas já que tu num diz o preço dessa menina, ela vai de graça. Eliete! Marieta! Tirem as correntes dela. Agora! Logo!
− Você não pode fazer isso! Não tem o direito!
Maria apenas olhou de viés para Severina Amor, enviando-lhe um sorriso. As suas companheiras começaram a retirá-la das correntes, quebrando-as com as chaves inglesas trazidas no esconderijo íntimo das saias. Chica D’Amparo ao ver que não podia fazer nada contra a outra, correu até sua mesa de trabalho em busca da arma, porém, Maria Rosa foi muito mais rápida.
Segurou a madame Chica pelos cabelos e a puxou de encontro a si. Severina Amor viu um clarão de prata brilhando na penumbra da sala e, depois, o rosto da madame Chica sangrando com a navalhada precisa e calculada.
O corte, da orelha ao queixo sangrava, enquanto a madame gritava, pedindo ajuda.
− Sabe, querida, já passei por um probleminha iguá ao dessa menina... Também fui sarva do mermo jeito que tô sarvando ela. Com uma diferença: minha sarvação foi paga. Mas benzinho, não quis paga. Assim só te dou isso...
E outra vez o relâmpago brilhou na sala do Drink’s Bar, cortando as carnes de Chica D’Amparo, fazendo o sangue escorrer pelo chão de madeira envernizada.
−Corre prum médico, minha querida! Num é agora que tu vai morrer não! Inda num é hora da madrinha Maria Rosa acabar com tua raça! Vou te dar um tempo, negra da pústula! Corre, fia da puta! 
A madame Chica D’Amparo desceu em desabalada carreira as escadas da sua pensão, gritando, maldizendo e soltando pragas. Maria olhou para as duas companheiras, pôs um braço sobre o ombro de Severina Amor e disse: 
− Já fizemo nossa boa ação do dia. Vamo pra casa, minha fia! Vamo curá as feridas e nos conhece milhó.

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