sábado, 31 de agosto de 2024

ARROLAMENTO - RAFAEL ROCHA


O corpo vem de tantos anos

caminhando nos espaços do planeta.

Tem suas guerras perdidas.

Tem suas cicatrizes.

Tem suas dores.

 

O rosto ainda é quase o antigo rosto:

com poucas rugas a marcar o tempo.

Tem suas alegrias íntimas.

Tem seus sorrisos.

Tem suas conquistas.

 

O cérebro caminha com o corpo

lado a lado com lembranças.

O coração ainda bate por amores.

E do intelecto brotam as sementes

prontas para serem colhidas plantas.

 

A boca ainda pede beijos de outras bocas.

Os olhos ainda jorram lágrimas.

Fios grisalhos deixam as marcas

nas têmporas e na barba,

marcando

o caminho para o nada.

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

EU - RAFAEL ROCHA

 

Eu sou ave liberta.

Gavião em voo faminto.

Larápio de palavras.

Primeira pessoa de mim. 

 

Tenho mais de mil segredos

escondidos em um baú sintetizado

vida pelas pessoas!

Tenho dentro de mim

coisas alegres e outras tristes.

 

Eu sou um eu apenas

indecente e vagabundo.

Safenado há pouco tempo.

Glorificado em nada.

 

Sou o homem mais intimo

do homem que me habita

e da mulher que me povoa.

O TEMPO QUE HOUVE - RAFAEL ROCHA

 

já tive épocas

de viver faminto

e de comer

uma batata

no almoço

e de ver as cuecas

e as meias furadas

já tive tempo

de só beber cachaça

cerveja era luxo

tive momentos

de pedir dinheiro

a algumas putas

e de almoçar

biscoito com água

tentando aplacar

a fome natural

tive instantes sim

de viver tudo isso

e de mais a mais

continuar vivo

até hoje

 

fiquei velho

porque tive tempo

para tudo

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

POEMA DE SAUDADE E DE QUASE RAIVA - RAFAEL ROCHA

 

meus amigos todos

acompanhantes de alguma mesa de bar...

o tal que se dizia zeca

– o guran que guardava

a caverna do fantasma –

pensou em ser herói

das verdades em quadrinhos

e após três copinhos

da mais deliciosa cachaça

chorou nos ombros de sebastião

e este fez da raiva

sonho de amor infantil

e de homem para homem

arretou-se com as conquistas

de chico e com os ciúmes de marcus

que era o antônio do grupo.

 

meus amigos todos e todas as mulheres

e todos os carinhos delas

suas variedades de beijos

(conheci muitos com elas)

e de angústias e tpms

hoje ecoam suas vozes encanecidas

dentro das noites

ana, marise, vânia, nina,

sônia, emília, mônica e a isabel

que nada tinha de parentesco

com a rainha espanhola

pois nenhum fernando existia

nesse grupo de loucos

dessa maciça década de bares

  de fuscas brancos e amarelos

e dos pra não dizeres

que não falei das flores.

 

e outros ainda são mais

quentes que as mulheres

evaldo, henrique, durval, gilson,

valdeci, joão maria, márcio...

as amigas agregadas

ana júlia e as tantas outras anas,

as priscilas, as beatrizes, as patrícias,

as lucianas, as simones, as ângelas

que nas mesas dos bares

também falavam dos amores perdidos

dos crochês e dos bordados da vida

e recordavam os conselhos

da mamãe e do papai e dos padres

e dos pastores das igrejas.

 

as mulheres...

essas me lembram hoje

a manteiga e o pão e o café

e a delícia de tê-las no dia a dia

e ver seus sorrisos e suas carrancas...

há uma espécie de saudade

que não é saudade

(é quase raiva)

nos olhos e nas orelhas

e nas narinas e nos dedos

e nos fios de cabelo da cabeça

e nos pentelhos...

puta que pariu!

como o tempo passa!


TRISAL - RAFAEL ROCHA

 

Escrevi um roteiro rebelde

para um filme de vida:

De baixo para cima,

olhando estrelas.

 

No plano geral da tela

criei o consistente

poema indecente

do amor a três.

 

E musiquei os versos

com uma velha valsa

sobre os lençóis vermelhos

do leito dos heróis.

 

Os personagens todos

criaram a paixão

(mas não o amor)

no fim da história.

 

Três sonhos!

Três beijos!

Duas mulheres!

Um homem!

 

O jornalista, escritor e poeta Rafael Rocha Neto ou Rafael Rocha é brasileiro de Pernambuco. Nasceu em Olinda/PE em 1º de Outubro de 1949, mas foi registrado na cidade do Recife/PE. Lançou seu primeiro livro “Meio a Meio” (poesias) em 1979. Em 1986, foi agraciado com Menção Honrosa pela Academia de Letras e Artes de Araguari (Minas Gerais) pelo conto “Grãos de Terra Sobre”. Em 1989, cinco contos de sua autoria foram premiados pela Fundação de Cultura do Estado de Pernambuco (Fundarpe) e lançados numa antologia intitulada “Novos Ficcionistas Pernambucanos”.

Também em 1989 foi agraciado pela Academia Pernambucana de Letras (APL) com o prêmio Leda Carvalho, pelo seu livro de contos “O Espelho da Alma Janela”. Em 2011 foi novamente laureado pela Academia Pernambucana de Letras (APL), dessa vez com Menção Honrosa, prêmio Vânia Souto Carvalho, pelo seu romance “Olhos Abertos para a Morte”.

Em 2020 foi agraciado com Menção Honrosa pela Academia de Letras, Ciência e Artes de Ponte Nova (MG) – ALEPON – no Concurso Literário Prêmio Professor Mário Clímaco, por seu poema “Tempos Sombrios”. Em 2022, ganhou o 3º lugar no XX Concurso Fritz Teixeira de Salles de Poesia, categoria Adulto, da Fundação Cultural Pascoal Andreta, Monte Sião (MG), com seu poema Noite de Bar.

O autor é filho de Irene de Almeida Rocha e Ivanildo Lins Rocha, já falecidos. Casado com Mailde Gomes da Silva Rocha, com quem tem dois filhos Rodrigo Gomes da Silva Rocha e Rafael Gomes da Silva Rocha. Como jornalista exerceu funções de repórter, copidesque, revisor, redator e analista de comunicação no Jornal do Commercio (Recife-1979), Editora Comunicarte (1981), Diario de Pernambuco (1989-2014) e Companhia Editora de Pernambuco – CEPE (2008-2013).

 

33 LIVROS PUBLICADOS

 

Meio a Meio (poesias); A Última Dama da Noite (romance); O Espelho da Alma Janela (contos); Marcos do Tempo (poesias); Olhos Abertos para a Morte (romance); Poetas da Idade Urbana (poesias em parceria com os poetas Genésio Linhares e Valdeci Ferraz); Felizes na Dor – Tributo ao poeta Charles Bukowski (poesias); Contos Delirantes com Versos em  Bolero (contos e poemas); Abismo das Máscaras (poesias); Poemas dos Anos de Chumbo (poesias); Loucura (poesias); Andanças (romance); Farol (poesias); Encíclica dos Homens – Encyclicae Hominum (poesias); Tudo Pode Ser Amor (poesias); Cantares (poema); História sem Fim (romance); Poemas dos Tempos Sombrios (poesias); As Flores de Tomires (novela); A Fecundação de Aryelle e outros Contos (contos); Noturnos (poesias); Ômega & Alfa (poema); Bailado (poema); O Homem na Pedra (romance); Tique-Taques (poesia); Os Quatro Elementos (poesia); Elefantes Brancos Matam Mariposas (contos); Sensações de Inverno (poesia); Viver Olinda e Outros Detalhes (poesias)A Última Dama da Noite – 2ª Edição (romance)Meio a Meio – 2ª Edição (poesias); Poesias livres e um tanto anárquicas (poesias); Momentum (poemas).


quarta-feira, 21 de agosto de 2024

BERÇO ESPLÊNDIDO (1985) - RAFAEL ROCHA

O país do futuro dorme

deitado em berço esplêndido

nas camas dos banqueiros.

É liquidado diariamente

em doses de uísque

e nas surubas

de desembargadores

e juízes e políticos

com notas de milheiros

saindo dos coletes

decorando os decotes

das socialites.

Do outro lado

deitado em camas rústicas

sobre lodaçais

com muriçocas e ratos

e surtos epidêmicos

o povo dorme

doente e pronto

para a escravidão

do dia seguinte

em ordem

e

em progresso. 

PUTA NOSSA - RAFAEL ROCHA

 

puta nossa a viver na rua

bem fudida seja a tua buceta

venha a nós os teus boquetes

nas camas e nas esquinas da cidade

 

teu cu apertado ou frouxo nos dai hoje

e receba o jorro da gala colante dentro e fora

e deixai cair sempre sobre nós

a deliciosa tentação das fodas

 

amém!


domingo, 18 de agosto de 2024

ÁRIA TRISTE - RAFAEL ROCHA

Andei por agrestes e sertões.

Vi a fome a viver nas multidões.

Animais mortos ao sol,

crestando os ossos.

Homens sem ter onde morrer.

Mulheres mortas ao prazer.

 

A cigana jogou os búzios na terra quente,

tentando descobrir caminho de águas.

Apenas a vida sangrava.

Apenas o sol queimava,

enviando raios inclementes,

secando todas as nascentes.

 

Não consegui cantar amor!

Não consegui cantar ódio!

Não consegui nada!

Consegui fazer nascer a ária da tristeza,

enquanto a fome assassina

queimava estômagos vazios. 

MARIPOSAS - RAFAEL ROCHA


 Quando ao redor do meu corpo

voejaram

centenas de mariposas azuis

descobri minha loucura

nascendo em um poema saudável.

 

Não sei se ao meu redor

as pessoas lembram

das centenas de mariposas

dançando alegres

ao redor de minha epiderme.

 

Na verdade eu sei como recordam

as luzes de mim quase apagadas

e os gemidos contínuos

desses insetos morrendo

em um tempo escuro

fora da minha dimensão.

 

Mariposas em carícias esvoaçantes

faziam a loucura dos amigos

quando insinuavam seus pedidos

agitando meus sentidos

solicitando com avidez

um poema novo.

 

Depois esqueciam as palavras

e saíam pelas ruas em zombaria

e apenas o corpo da mulher amada

bafejava em mim o cheiro saboroso

e desassossegado

da paixão.

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

CALENDÁRIO - RAFAEL ROCHA

Das chuvas de janeiro

Às nuvens de abril

Folia em fevereiro

O março já sumiu

Lembrando que no junho

O maio foi vazio

E nos ventos de agosto

Julho é muito frio

Quando setembro vir

Novembro é chegado

Ao fim de um outubro

Nunca sossegado

Tudo permanece dezembrado.


quinta-feira, 15 de agosto de 2024

SONHO - RAFAEL ROCHA

 

De onde vens, sonho viajeiro

Nessas noites depressivas

Voando dentro dos cérebros

Trazendo ações passivas?

De onde vens nessas tardes

Nas noites e dias reais

Trazendo saudade dos mortos

Lembrando os nossos iguais

Ainda vivos na terra

Na espera dos abraços?

Sonho que tira o sossego

Mexendo com meus espaços!

De onde vens, sonho de angústia

Provocando pressão alta

Pelas artérias humanas

Sem falar do amor que falta?

De onde vens, sonho viandante

Atormentar os momentos

Quando os corpos adormecem

Fugindo dos sentimentos?

 

Venho aéreo abrindo as asas

Por sobre todas as casas

Para exaltar o viver!

E trazer o desassossego

Aos que não têm apego

E que só pensam em morrer!

FICÇÃO (1973) - RAFAEL ROCHA

 

A vida não percorre

uma linha reta

ou uma linha curva

é apenas um sonho

tentando ser um horizonte

ve

rt

ic

al


INCITAÇÃO - RAFAEL ROCHA

 

O antigo sonho de paixão seja lembrado

antes de o barco de Caronte aportar no cais.

(Ainda não tenho a moeda da passagem!)

(Apenas recordações várias e sofríveis!)

Lembro como ofertei paixão à vida inteira

e criei penhor em corações rudes e frios

fundando vilas e cidades dentro das carnes.

 

Celebraram tudo isso como utopia!

Uma ilha fantástica sem realidades

quando eu acreditava no veraz da vida!

Pena que as casas sejam de pensamentos

mesmo sabendo caber no interior de todas

um mundo intenso e lúdico e infinito!

Pena que os alicerces sejam de ilusões!

 

Antes de o barco de Caronte

aportar no cais:

- Apareça, amor, apareça! -

Diga se eu tive ou não razão em sonhar!

 

Toda a loucura eu abriguei em devaneios

como se eles fossem cidadelas invictas

criadas por palavras e letras fantásticas

até que os ventos maléficos deram-se a uivar

tentando destruir meus gestos indomáveis.

(Tudo aquilo que me fez viver/sonhar!)

(Tudo aquilo que me levou a ser poeta!)

Ainda hoje esses ventos furiosos renascem

loucos, enraivecidos e prontos

para derrubar minhas frágeis casas.


Eles chegam com ares de psicopatas!

Sopram e derrubam as folhas do arvoredo!

Destroem tudo de humano e de paixão!

Até que do meu cantar sobra uma réstia

pelas ruas vazias das vilas e das cidades

onde eu tentava acreditar na incitação

de um poema e da metáfora desse poema.

 

Antes de o barco de Caronte aportar no cais

desejo caber inteiro na liquidez das palavras

como sendo um imenso lago ou oceano

ou o grandioso estuário de vários rios.

(Como sendo um H2O inimigo do Sol!)

Pecador sem arrependimentos!

Um homem simples na busca do sonho real

mais eternidade que esta curta vida!

 

Antes de o barco de Caronte

aportar no cais:

- Apareça, amor, apareça! -

Diga se eu tive ou não razão em sonhar!

UM DIA - RAFAEL ROCHA

 

Um dia abraçaremos

os heróis de nossas lutas!

Um dia recuperaremos

os ideais assassinados!

 

Sempre existe um dia!

 

Não estarei mais aqui.

Serei estrela exilada,

mas terei luz própria

nos rincões do cosmos.

 

Mesmo a luz do farol estando apagada:

– Um dia o grande barco retornará ao cais!

 

Sempre existe um dia!

 

Antes disso

quero sorver o que me resta de vida

ao lado dos meus amados

de todas as horas.

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

PARANOIAS DE LEONARDO - RAFAEL ROCHA

 
Leonardo tinha um problema grave. Era paranoico e sofria de Transtorno Obsessivo Compulsivo. Ele tinha muito cuidado com a própria sombra e com os caminhos por onde andava e pisava.
Se as calçadas fossem lisas e sem riscos ele caminhava por sobre elas normalmente. Se visse alguma fissura ou algo quebrado, tinha o cuidado de não pisar nessa fissura ou risco, passando os pés cuidadosamente por cima até alcançar o outro lado.
O maior cuidado era com a própria sombra. Por onde andasse, a sombra tinha sempre de ficar atrás dele e jamais na frente. Achava que se desse um passo com a sombra na frente poderia cair em um buraco negro.
Assim quando saía do trabalho, à noite, sempre estava armado com uma lanterna a iluminar o caminho onde a sombra aparecesse.
O horário de meio-dia era o que ele mais gostava, porque não via a sombra nem atrás nem à sua frente.
Isso tudo junto criava para Leonardo problemas variados.
As calçadas do Recife não eram de confiança, pois muitas delas destacavam-se por terem fissuras e outros riscados.
Mas gostava de caminhar durante o dia pela Avenida Guararapes por baixo daquelas marquises dos prédios afrancesados, já que a sombra não aparecia de jeito algum para incomodar.
Leonardo viveu cerca de setenta anos.
Foi cliente de muitos psicólogos e psiquiatras do Recife, município onde morava.
Mas não era louco. Tinha apenas uma paranoia generalizada com a própria sombra e uma obsessão compulsiva com as fissuras das calçadas da cidade.
Um dia Leonardo morreu. 
 
Seu enterro ocorreu exatamente quando um eclipse total do sol escureceu por completo o céu do Recife em pleno meio-dia.