Do livro homônimo lançado no ano de 2002
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Ainda recém-nascida, Maria Rosa foi encontrada nos
arredores da então povoação de Salgueiro, no estado de Pernambuco, embrulhada
em panos brancos de algodão e chita, e com o nome preso numa pulseira de prata
num dos pulsos.
Tinha sido abandonada ao sol e aos animais da caatinga.
O mascate Biu dos Leites encontrou a criança ao começar uma de suas inúmeras viagens
ao sertão do São Francisco. Apiedado, levou a menina consigo, começando sua
criação e a educá-la, durante o transcorrer do seu crescimento, nas artes das
compras e das vendas dos mais diversos tipos de quinquilharias.
Maria Rosa cresceu em idas e vindas por tudo que era
cidade, vila e povoado sertanejo, apregoando as utilidades dos objetos que Biu
dos Leites vendia.
Panelas de barro, óleo de amaciar cabelo pixaim,
líquidos que acabavam de vez com as dores de cabeça, de lumbago, das cólicas
pré-menstruais, tecidos coloridos para as mulheres costurarem seus próprios
vestidos, batinas de padre, carretéis cheios de linhas coloridas, agulhas de
coser à mão, bilros para a produção de bicos de renda, redes de enterrar os
mortos, grossas meias de algodão para os vaqueiros e, para a felicidade das quengas mais bem aquinhoadas dos puteiros e casas de tolerância do Agreste e
do Sertão, xales de renda e meias de nylon vindas de alguma província da China.
Ela cresceu em inteligência e entendimento sempre
protegida por Biu dos Leites, recebendo uma educação que incluía contas e mais
contas matemáticas. Tornou-se exímia comerciante nas artes das vendas,
regateios, nos ajustes de compras e pagamentos de dívidas.
Nunca aprendeu a ler, mas compensou isso com uma férrea
vontade de se tornar para o seu protetor – que chamava de “seu” Bibiu desde criança – a tesoureira de todos os
seus ganhos. Sua maior ambição, a partir do momento em que começou a se tornar
adolescente, era a de montar um negócio próprio na capital pernambucana e ser
rica e respeitada.
No entanto, quis o destino que, logo após completar seus
13 anos, quando Biu dos Leites seguira numa barcaça até onde hoje se localiza a
cidade de Juazeiro, na Bahia, e a deixara tomando conta das mercadorias, às
margens do Rio São Francisco, ela adormecesse vencida pelo cansaço.
Para seu infortúnio esqueceu de apagar a vela de cera
que iluminava o interior da grande tenda de lona, onde as mercadorias se
espalhavam em todas as suas diversidades. Foi acordada pelo estrépito
crepitante provocado pelo fogo.
Os bilros, feitos bolas vermelhas, saltitavam no meio da
caatinga. Os xales e as rendas e as meias de nylon subiam ao céu como balões
juninos.
As panelas de barro brilhavam em brasa devido ao poder
das chamas, que se espalharam em questão de segundos em direção às secas
plantas rasteiras. Tentando apagar o inferno em que estava envolvida ela se
agarrou e se enrolou com as batinas de padre e mergulhou nas águas do rio.
A seguir, feito um pequeno fantasma negro, buscou
apagar as chamas, jogando-se com aquele tipo de vestimenta sobre elas, o que só
fez piorar a situação.
Em questão de segundos, o cavalo Faísca, que se achava preso um pouco mais além com o resto das mercadorias na
carroça, começou a corcovear feito um endemoninhado. Repentinamente, saiu num
galope desenfreado em direção às águas do São Francisco, onde mergulhou e
desapareceu para sempre com tudo o que restava das posses do mascate, inclusive
o dinheiro que ele tinha ganho nos últimos meses.
No dia seguinte foi encontrada mais morta que viva por
Biu dos Leites. O homem passou mais de uma semana soltando cobras e lagartos,
reclamando de si mesmo e amaldiçoando a hora em que recolhera a menina do meio
da caatinga.
Lamentava, principalmente, o dinheiro gasto com a
alimentação dela e as horas em claro, ensinando contas de adição,
multiplicação, divisão e subtração.
Quinze dias após realizar um inventário de todos os
estragos e perdas e danos, amarrou os pulsos da menina com os restos dos xales
de seda que escaparam do incêndio e deu início a uma cruel peregrinação.
Levava Maria Rosa de cidade em cidade, de vila em vila,
de povoado em povoado, apregoando em surdina aos homens maduros e aos rapazes
ávidos por novidades o quanto eles iriam usufruir daquele corpo ainda não saído
da puberdade.
Um corpo de menina virgem e incólume e que agora estava
a pagar uma “promessa feita aos seus pais falecidos e que era a de zerar a
dívida de gastos com hospitais e alimentação”.
De vila
em vila, de povoado em povoado, de cidade em cidade de todo o Agreste e Sertão
pernambucano, cearense e baiano, Biu dos Leites ia vendendo o corpo de Maria
Rosa.
Sua única intenção era a de ser ressarcido dos
prejuízos causados pelo fogo em tudo que tinha sido de sua propriedade.
Quando alcançou a periferia da povoação de Carnaíba, no
Sertão de Pernambuco, já locupletado com tudo e com muito mais do que possuíra,
encontrava-se intoxicado e demente com a ideia de que agora poderia ganhar
muito mais dinheiro, utilizando o jovem e belo corpo da menina.
Só que madame Lizonete
Gomes, dona de quatro casas de tolerância na periferia dessa localidade, soube
da história por intermédio de um dos fregueses de suas afilhadas, e sem acreditar no que estavam a lhe
dizer resolveu fazer uma visita à tenda do mascate, questão de dez minutos de
viagem de uma de suas casas.
No local, observou que, ao redor de uma tenda quase
transparente, uns dez rapazes faziam fila esperando pela vez de usufruir dos
dotes da jovem. Mais adiante, o mascate - perto de uma fogueira - contava os
lucros advindos daquela noite.
A revolta de Lizonete se juntou à raiva de saber que
ali (bem perto do seu puteiro) estivesse acontecendo uma versão tão facínora da
mais antiga das profissões. E, também, por causa do sofrimento que viu nos
olhos de Maria Rosa ao perscrutar, através da tenda, sua entrega aos machos
devido ao capricho do fogo e da ambição desmedida de um homem.
No dia seguinte chegou ao local onde Biu dos Leites
montara seu puteiro individual acompanhada por algumas de suas afilhadas.
Todas elas armadas com porretes e facas-peixeiras,
dispostas a defender a vida da madrinha fosse
como fosse e a seguir suas ordens sem refletir sobre suas origens.
Lizonete Gomes fez uma única proposta ao mascate: que
Maria Rosa lhe fosse entregue em troca de uma esmeralda que ela guardava
consigo desde que era menina.
Salientou, ainda, que se ele assim não procedesse iria
se dar mal, pois todas elas estavam ali dispostas a acabar com a vida de um
homem que agia de uma forma tão brutal com uma criança que ainda não acabara de
sair dos cueiros.
Biu dos Leites, que já estava ficando farto daquele
tipo de vida como cafetão ou gigolô sertanejo, apenas pediu a Lizonete que ela
lhe mostrasse a tal esmeralda para que ele pudesse comprovar aos seus olhos se
era verdadeira. Depois, vendo que nada mais tinha a perder, desvencilhou a
menina das cordas que a prendiam pelos tornozelos e pulsos e a entregou à
benevolência da
madame sertaneja.
Nunca mais foi visto por aquelas bandas.
Lizonete e suas afilhadas tomaram
conta de Maria, sentindo o quanto a garota de 14 anos estava depauperada e
cheia de doenças. Levaram a menina a uma das casas, onde a puseram em
quarentena, dando-lhe remédios e banhos, roupas limpas e perfumes baratos, fazendo
com que, aos poucos, ela voltasse à vida natural.
Isso levou certo tempo, pois Maria Rosa, desde o
incêndio, estava mergulhada em um turbilhão de chamas e fumaça, onde pequenos e
ásperos demônios teimavam em queimar suas entranhas, sair por todos os
orifícios do corpo sempre que era alcançada por alguma dor, prazer, tristeza,
raiva e alegrias indizíveis.
Quando completou 15 anos ela confessou a Lizonete seus
desejos de partir para o Recife e ali tentar a vida, mas a madrinha e suas afilhadas fizeram o
possível para demovê-la dessa ideia.
Explicaram que, antes disso, era preciso ela aprender
os truques da mais antiga das profissões, os maneirismos das quengas e as formas de fazer com que os homens as desejassem não só por uma
noite, mas por todas as outras noites.
Nesses ensinamentos, Lizonete e suas meninas prometeram a Maria Rosa que tudo que ela apurasse em dinheiro e
presentes seria só dela. Nenhuma iria querer parte nesses dotes, já que se
desejava partir para a capital, desde logo fosse dando trâmites às liberdades
de angariar o dinheiro necessário para continuar viva.
Durante três anos, ajudada, sempre que era possível,
pelas meninas de Lizonete, Maria foi apurando, com o
prazer dado aos sertanejos no quarto de uma das casas de tolerância, o dinheiro
necessário para fazer uma nova vida na Veneza brasileira. Quando completou 18 primaveras, acompanhada
por Eliete e Marieta, duas outras afilhadas da madame Lizonete que
também desejavam arriscar a vida em outras paragens, partiu para o Recife.
Na capital, sem outro rumo a tomar e cientes de que a
única profissão que sabiam era mesmo a de mulheres de vida fácil, Maria Rosa e
suas duas companheiras se instalaram no Cais do Porto. Envolvidas pelas luzes e
pelos mistérios noturnos da cidade grande iniciaram seus novos caminhos.
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