Primeiro capítulo do livro homônimo lançado no ano de 2012 – Agraciado
com Menção Honrosa pela Academia Pernambucana de Letras (APL) – Prêmio Vânia
Souto Carvalho (2011)
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Há
algum tempo vinham tentando fechar seus olhos, mas eles teimavam em continuar
abertos. Terminaram desistindo e puseram um lenço sobre eles que, arregalados,
fitavam o teto da casa. Escutou um choro contido. Risadas tristes. Sons de
passos chegaram aos seus ouvidos. Cheiro de flores. Muitas flores.
Os
olhos se arregalavam cada vez mais. Descobriu-se, portanto, em um caixão
apertado com o corpo coberto por flores dos mais diversos tipos, vestido com
sua melhor farda de oficial do Exército brasileiro, mãos cruzadas sobre o
peito. “Não adianta, dona Expedita, não adianta! Os olhos dele não fecham
mesmo!”, escutou uma voz conhecida a falar o nome de sua mulher. “Está morto!
Mortinho da silva!”, disse alguém que ele não atinou quem fosse. “Tá morto! E
bem morto!” uma voz rouca e gaguejante de algum homem idoso.
Tentaram
fechar seus olhos novamente. Baixaram as pálpebras com força. Era uma mão
calosa e grossa. Ele não gostou do toque dessa mão. Apesar da força feita para
fechar seus olhos, eles continuaram abertos. “Desgraça! Não consigo fechar os
olhos dele!”, novamente a voz gaguejante. Escutou a mulher soluçar. Não estava
conseguindo mover um músculo. Sabia que estava vivo. Por que não chamavam um
médico para observar que ele estava vivo? “Porra!
Eu tô vivo! Porra! Tirem-me da merda deste caixão! Eu tô vivo, gente!”,
tentava gritar, mas nenhum som chegava aos seus lábios. O corpo estava rígido.
Gelado. Duro. Sentiu o bafo de alguém sobre si. Tentou reconhecer quem era. O
odor que chegava às suas narinas era conhecido. Algo quente caiu sobre sua face
direita, deslizou sobre sua boca. O sabor era salgado. Uma lágrima.
Forçou
o corpo a responder aos impulsos do cérebro. Nada aconteceu. “Se morri, por que não me fizeram uma
autópsia? Ao menos ficava morto de uma vez”. Lembrou-se de ter dito à mulher Expedita que
quando morresse não desejava ser dissecado por bisturi algum. Que ela desse um
jeito, falasse com o médico da família e pedisse o atestado de óbito com a causa mortis, sem necessidade de passar
por uma autópsia. “Então, é isso. É
isso!” Os olhos viam apenas o teto branco da casa e a luz baça da manhã a
entrar por uma das janelas. Sentiu cheiro de velas acesas. O odor das flores
começava a incomodá-lo.
“Ai,
meu Deus! Por que ele não fecha os olhos?”, escutou. Viu a face enrugada de
Expedita a fitá-lo. Tentou forçar algum músculo do corpo para ela notar que ele
estava vivo. Sem sucesso. Depois, o rosto do médico da família apareceu na sua
frente. “Isso se chama retrocessus
cadavericus rigidus”, disse ele. “Acontece muitas vezes antes do corpo
ficar teso. Depois de enterrado os olhos fecham facilmente”. Sentiu ganas de
pular do caixão e ali mesmo estrangular o médico. “Filho da puta! Não tenho nada disso! Não estou morto não! Estou vivo,
porra! Estou vivo!” Nenhum dos seus pensamentos foi concluído pela voz.
Continuou inerte, rígido e de olhos arregalados, abertos e a fitar o teto
branco da casa.
Dois
minutos passados. A mente sentiu a realidade da situação. Ia ser enterrado
vivo. Estava em estado cataléptico e ninguém notava. Começou a xingar
mentalmente o médico. Nunca imaginara que ele pudesse ser tão ignorante em
matéria de defuntos. “Tenho que dar um
jeito. Preciso dar um jeito nisso. Não posso deixar que me enterrem vivo”.
Descobriu
que o que lhe restava era o cérebro. O cérebro estava a gorgolejar pensamentos
para lá e para cá. A vivacidade do seu cérebro começava a incomodar o resto do
corpo. Tentou dar ordens ao cérebro e descobriu ser impossível. Ele tinha
entrado em trâmites de reminiscências ao descobrir o quanto estava próximo de
ser enterrado vivo junto com o corpo inerte e desobediente aos seus impulsos.
Depois
desses minutos, o corpo era ele. O cérebro uma personalidade totalmente
diversa. Não tinha mais raiva de nada. O comando dos impulsos neurais começou a
ser atraído cada vez mais para dentro de suas células mentais. O cérebro estava
com medo. Os pensamentos entravam em conflito, turbilhonavam. Como bolas de
bilhar batiam uns contra os outros. E recordavam....
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