quarta-feira, 3 de julho de 2019

OLHOS ABERTOS PARA A MORTE – Rafael Rocha

Primeiro capítulo do livro homônimo lançado no ano de 2012 – Agraciado com Menção Honrosa pela Academia Pernambucana de Letras (APL) – Prêmio Vânia Souto Carvalho (2011)
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Há algum tempo vinham tentando fechar seus olhos, mas eles teimavam em continuar abertos. Terminaram desistindo e puseram um lenço sobre eles que, arregalados, fitavam o teto da casa. Escutou um choro contido. Risadas tristes. Sons de passos chegaram aos seus ouvidos. Cheiro de flores. Muitas flores.
Os olhos se arregalavam cada vez mais. Descobriu-se, portanto, em um caixão apertado com o corpo coberto por flores dos mais diversos tipos, vestido com sua melhor farda de oficial do Exército brasileiro, mãos cruzadas sobre o peito. “Não adianta, dona Expedita, não adianta! Os olhos dele não fecham mesmo!”, escutou uma voz conhecida a falar o nome de sua mulher. “Está morto! Mortinho da silva!”, disse alguém que ele não atinou quem fosse. “Tá morto! E bem morto!” uma voz rouca e gaguejante de algum homem idoso.
Tentaram fechar seus olhos novamente. Baixaram as pálpebras com força. Era uma mão calosa e grossa. Ele não gostou do toque dessa mão. Apesar da força feita para fechar seus olhos, eles continuaram abertos. “Desgraça! Não consigo fechar os olhos dele!”, novamente a voz gaguejante. Escutou a mulher soluçar. Não estava conseguindo mover um músculo. Sabia que estava vivo. Por que não chamavam um médico para observar que ele estava vivo? “Porra! Eu tô vivo! Porra! Tirem-me da merda deste caixão! Eu tô vivo, gente!”, tentava gritar, mas nenhum som chegava aos seus lábios. O corpo estava rígido. Gelado. Duro. Sentiu o bafo de alguém sobre si. Tentou reconhecer quem era. O odor que chegava às suas narinas era conhecido. Algo quente caiu sobre sua face direita, deslizou sobre sua boca. O sabor era salgado. Uma lágrima.
Forçou o corpo a responder aos impulsos do cérebro. Nada aconteceu. “Se morri, por que não me fizeram uma autópsia? Ao menos ficava morto de uma vez”.  Lembrou-se de ter dito à mulher Expedita que quando morresse não desejava ser dissecado por bisturi algum. Que ela desse um jeito, falasse com o médico da família e pedisse o atestado de óbito com a causa mortis, sem necessidade de passar por uma autópsia. “Então, é isso. É isso!” Os olhos viam apenas o teto branco da casa e a luz baça da manhã a entrar por uma das janelas. Sentiu cheiro de velas acesas. O odor das flores começava a incomodá-lo.
“Ai, meu Deus! Por que ele não fecha os olhos?”, escutou. Viu a face enrugada de Expedita a fitá-lo. Tentou forçar algum músculo do corpo para ela notar que ele estava vivo. Sem sucesso. Depois, o rosto do médico da família apareceu na sua frente. “Isso se chama retrocessus cadavericus rigidus”, disse ele. “Acontece muitas vezes antes do corpo ficar teso. Depois de enterrado os olhos fecham facilmente”. Sentiu ganas de pular do caixão e ali mesmo estrangular o médico. “Filho da puta! Não tenho nada disso! Não estou morto não! Estou vivo, porra! Estou vivo!” Nenhum dos seus pensamentos foi concluído pela voz. Continuou inerte, rígido e de olhos arregalados, abertos e a fitar o teto branco da casa.
Dois minutos passados. A mente sentiu a realidade da situação. Ia ser enterrado vivo. Estava em estado cataléptico e ninguém notava. Começou a xingar mentalmente o médico. Nunca imaginara que ele pudesse ser tão ignorante em matéria de defuntos. “Tenho que dar um jeito. Preciso dar um jeito nisso. Não posso deixar que me enterrem vivo”.
Descobriu que o que lhe restava era o cérebro. O cérebro estava a gorgolejar pensamentos para lá e para cá. A vivacidade do seu cérebro começava a incomodar o resto do corpo. Tentou dar ordens ao cérebro e descobriu ser impossível. Ele tinha entrado em trâmites de reminiscências ao descobrir o quanto estava próximo de ser enterrado vivo junto com o corpo inerte e desobediente aos seus impulsos.
Depois desses minutos, o corpo era ele. O cérebro uma personalidade totalmente diversa. Não tinha mais raiva de nada. O comando dos impulsos neurais começou a ser atraído cada vez mais para dentro de suas células mentais. O cérebro estava com medo. Os pensamentos entravam em conflito, turbilhonavam. Como bolas de bilhar batiam uns contra os outros. E recordavam....

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