quarta-feira, 3 de julho de 2019

O ESPELHO DA ALMA JANELA – Rafael Rocha

Conto inserido no livro “O Espelho da Alma Janela e outros Contos” - 2009 - Livro agraciado com o Prêmio Leda Carvalho (1988) pela Academia Pernambucana de Letras (APL)

Debruçou-se na janela para observar melhor o dia.
Lá embaixo, as pessoas andavam apressadas como se em busca de alguma coisa perdida em confins nunca localizados. O perfil retilíneo de uma estrada deslizou nos seus olhos. Na memória navegou um poema. Na retina dos olhos do sonho, pensou numa mulher.
A hora não era tardia assim para ele ficar pensando numa mulher.
Uma mulher é um pensamento doce, mesmo sendo, às vezes, uma fruta tão ácida para os lábios da vida. Uma mulher é o tempero sempre a fazer falta à atitude do homem. É tão insubstituível como o ar a envolver o planeta, como a alma que um dia debandará para algum espaço desconhecido.
Debruçou a alma na janela e a mulher saiu dos seus olhos.
Outras mulheres andavam lá embaixo nas calçadas da avenida e em todas existia o odor e a carne úmida daquela a habitar em seu pensamento. Podia até ser um sonho, mas vivificado sempre em todos os instantes em que sua mente pudesse se acreditar viva dentro dessa confusão planetária.
Perguntou-se onde abandonou aquele prazer de possuir uma carne sem tê-la sentido parte integrante de si próprio.
Perguntou-se se suas atitudes erraram dentro de algum ilógico sentido de tentar ser tudo que nunca pôde e como conseguiria construir uma vida dinâmica assim sozinho.
Perguntou-se de suas mudanças durante todas as temporadas negativas no próprio ciclo vital.
Perguntou-se quem lhe havia ensinado a forma mais simples de viver.
Debruçado na janela, sua alma estava sentada no parapeito rindo de suas perguntas.
Não. Nunca iria conseguir habituar sua forma de observar as coisas dentro do prisma mais sintético do vulgar. O que se perguntava não era e não podia ser considerado vulgar. Ele podia ser vulgar, mas não aquilo que ele perguntava a si próprio.
Perguntou-se então, quem, o que, por qual motivo o ensinaram a viver e ele nunca aprendera a conviver? Nem com a vida, nem com a morte a vir. Ele não sabia como fazer as coisas ficarem mais simples.
Debruçado no parapeito o solo lá embaixo tentava hipnotizar sua mente.
Notou o medo da alma e viu como ela buscava se abrigar dentro do quarto. Ouviu sua voz a dizer: “Não estou preparada para receber as respostas dessa maneira. Não me deixe assim sozinha. Vou tentar fazer com que a vida se ordene de forma mais concreta”.
Agora era ele a sentar no parapeito da janela. Observou a rua cheia de seres humanos indo e vindo, numa ansiedade de busca que só nesse momento entendia um pouco.
O perfil irregular de sua vida deslizou nos seus olhos cheios de lágrimas e assim teve pena da alma que não queria partir ao desconhecido. Teve pena de si próprio e, na sua memória, retratou-se um rosto de criança, da criança que um dia fora. Na retina dos olhos viu as mãos dos seus irmãos acenando um adeus que não desejava. Sua mãe, seu pai, seus tios, seus amigos...
A hora estava ficando tardia para ele pensar nos tantos que tinha amado.
Os tantos que amara eram pensamentos grandes demais para seu cérebro tão cheio de outras misérias mais pegajosas que o amor. Os que amara foram frutas, cujas sementes não germinaram na terra do seu tempo. Partiram para outros horizontes. Aos poucos o substituíram por outras frutas, outras atmosferas, outras águas.
Voltou à posição inicial, debruçado na janela, e a alma penetrou até o fundo de suas vísceras.
De dentro da alma saíram as lembranças e um teor amargo de solidão invadiu seu corpo.
Não perguntou mais nada a si próprio. Não era mais necessário.
Lá embaixo, a rua cheia de seres humanos criava um contraste com a sua solidão.
Não sabia o que lhe fazia falta e para que tentar descobrir? 
Um dia, talvez, tudo se desenrole diante de suas retinas e ele consiga observar melhor as bobagens dos seus pensamentos.

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